Os territórios midiáticos e a territorialização do movimento dos povos indígenas no bios midiático Media territories and the territorialization of the indigenous people movement in the media bios

Bryan Chrystian Araújo 
y Vilso Junior Santi 

https://doi.org/10.25965/trahs.4810

Tomando os meios de comunicação digitais não como instrumentos de organização das dinâmicas cotidianas, mas como parte da estruturação do social (GOMES, 2017), esta pesquisa pretende pensar a constituição dos Territórios Midiáticos nas práticas comunicacionais do Movimento Indígena. Para tanto, valendo-se da midiatização como conceito-chave, trabalhamos a definição do que chamamos de Territórios Midiáticos através de duas frentes: 1) como conjunto de representações sobre o território (RAFFESTIN, 1993); e 2) como espaço/bios midiático (SODRÉ, 2002). O estudo pautase na realização de uma análise diacrônica dos processos de midiatização do território nas práticas de etnocomunicação do Conselho Indígena de Roraima a fim de acompanhar o movimento de instalação dos processos de midiatização do território e/ou dos chamados Territórios Midiáticos.

Prenant les médias numériques non pas comme des instruments d'organisation des dynamiques quotidiennes, mais comme des éléments de structuration du social (GOMES, 2017), cette recherche entend penser la constitution de Territoires médiatiques dans les pratiques de communication du Mouvement indigène. A cette fin, en utilisant la médiatisation comme concept clé, nous travaillons sur la définition de ce que nous appelons les Territoires Médiatiques à travers deux fronts : 1) comme un ensemble de représentations sur le territoire (RAFFESTIN, 1993) ; et 2) comme espace/bios médiatique (SODRÉ, 2002). L'étude se base sur la réalisation d'une analyse diachronique des processus de médiatisation du territoire dans les pratiques d'ethno-communication du Conseil indigène de Roraima afin de suivre le mouvement d'installation des processus de médiatisation du territoire et/ou des dits territoires médiatiques.

Tomando los medios digitales no como instrumentos de organización de las dinámicas cotidianas, sino como parte de la estructuración de lo social (GOMES, 2017), esta investigación pretende pensar la constitución de Territorios Mediáticos en las prácticas comunicativas del Movimiento Indígena. Para ello, utilizando la mediatización como concepto clave, trabajamos en la definición de lo que llamamos Territorios Mediáticos a través de dos frentes: 1) como conjunto de representaciones sobre el territorio (RAFFESTIN, 1993); y 2) como espacio/bios mediático (SODRÉ, 2002). El estudio se basa en la realización de un análisis diacrónico de los procesos de mediatización del territorio en las prácticas etnocomunicativas del Consejo Indígena de Roraima, para acompañar el movimiento de instalación de los procesos de mediatización del territorio y/o de los llamados Territorios Mediáticos.

Taking digital media not as instruments of organization of daily dynamics, but as part of the structuring of the social (GOMES, 2017), this research intends to think about the constitution of Media Territories in the communication practices of the Indigenous Movement. To this end, using mediatization as a key concept, we work on the definition of what we call Media Territories through two fronts: 1) as a set of representations about territory (RAFFESTIN, 1993); and 2) as media space/bios (SODRÉ, 2002). The study is based on a diachronic analysis of the processes of mediatization of territory in the ethno-communication practices of the Indigenous Council of Roraima in order to follow the movement of installation of the processes of mediatization of territory and/or the so-called Media Territories.

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Introdução

É comum que quando falemos de Território, pensemos em um espaço físico, concreto, geograficamente delimitado e relacionado a uma certa norma legal do Estado que reconhece e homologa a ocupação do espaço. Não é um erro pensar dessa forma, já que, conforme Haesbaert (2004), isso se deve, principalmente, a tamanha carga de materialidade que o termo “território” parece carregar, assim como ao fato que, desde a origem do sintagma, ele possui um sentido vigorosamente relacionado ao espaço físico. Essa noção, segundo Haesbaert (2004), é denominada como perspectiva materialista e durante anos esteve no centro dos debates sobre território, inclusive a nível acadêmico.

Contudo, nas últimas duas décadas, cresceu o número de pesquisadores que chamam a atenção para a fluidez do conceito, superando uma visão materialista de território. Dentre as diversas definições, uma das mais difundidas e que marcam o campo de estudo parte da concepção de território enquanto marcado por uma relação de poder a partir da chamada perspectiva relacional. Claude Raffestin (1993) foi um dos pioneiros e principais teóricos a se debruçar sobre essa linha de investigação.

O território, na perspectiva de Raffestin (1993), é resultado de uma ação social de poder (econômica, política e cultural) expressa em um determinado espaço. Espaço é aqui entendido como algo anterior ao território, como sua “matéria-prima”. Nesta concepção, supõe-se que o território é um espaço ocupado por uma relação social de poder. Isso significa dizer que além de ser estruturado de forma concreta – relacionável à posse da terra, por exemplo – o território também é estruturado por uma lógica simbólica, relacionado à ideia de pertencimento e apropriação.

Frente a isto, considerando os espaços digitais, informatizados e tomando os meios de comunicação não como instrumentos de organização das dinâmicas cotidianas, mas como parte da estruturação do social e das relações de poder inerentes às sociedades (GOMES, 2017), pretendemos, neste estudo, pensar a constituição dos territórios midiáticos nas práticas etnocomunicativas do Movimento dos Povos Indígenas - referência na luta pela demarcação e homologação das terras tradicionais no Brasil (Vieira, 2007; Santi & Araújo, 2022).

Diante disso, à luz dos processos da midiatização, entendidos aqui, conforme Gomes (2017:127) como “um novo modo de ser no mundo”, trabalhamos, neste artigo, a definição do que compreendemos como território midiáticos através de duas frentes: 1) como conjunto de representações midiáticas sobre o território (Raffestin, 1993); e 2) como espaço/bios midiático propriamente dito (Sodré, 2002).

Por último, realizamos uma análise diacrônica dos processos de midiatização do território nas práticas de Etnomídia do Conselho Indígena de Roraima (CIR) a fim de acompanhar o movimento histórico de transformações comunicacionais e de instalação dos processos de midiatização do território e/ou dos chamados Territórios Midiáticos.

Midiatização: um novo modo de ser no mundo

A fim de refletir sobre dinâmicas midiáticas contemporâneas, nas quais as relações sociais e práticas comunicacionais midiatizam-se e caminham em direção aos territórios midiáticos, mobilizamos como aporte teórico, neste estudo, a observação dos elementos que constituem parte da discussão sobre os processos de midiatização. Tal debate é realizado com base nas contribuições de autores como Braga (2006; 2012), Hepp (2014), Gomes (2017) e Ferrara (2020).

Segundo Braga (2012), a midiatização é um processo que ultrapassa a ideia de penetração tecnológica em determinada sociedade. Para ele, apesar das tecnologias digitais serem um componente importante e merecedor de investigação, a midiatização envolve um elemento diretamente social.

A midiatização, nesse sentido, está relacionada a um processo que ocorre em dois âmbitos. O primeiro, de acordo com Braga (2006), diz respeito à midiatização dos processos sociais, como a virtualização das esferas da política e da economia. Já um segundo âmbito tem relação a midiatização da sociedade. Esse último, explica Braga (2006), significa tomar as relações constituídas no campo midiático como parâmetro e referência para os demais processos sociais.

De forma semelhante, Ferrara (2020) salienta que midiatização não é um conceito vinculado ao desenvolvimento das tecnologias digitais de comunicação. Por outro lado, enquanto processo, a midiatização diz respeito ao “território organizado ambientalmente pela troca e evolução da mente e dos valores humanos” (Ferrara, 2020: 282). O que se midiatiza, assim, são as nossas relações e práticas cotidianas em consequência do uso dessas tecnologias, mas as tecnologias em si não se midiatizam. A midiatização, portanto, refere-se a nossa capacidade de reinventar o mundo e nossas relações a partir desses dispositivos.

Seguindo os apontamentos de Braga (2006; 2012) e Ferrara (2020), a midiatização é entendida aqui como a capacidade humana de transformar as matrizes socioculturais e as formas de organização dos campos sociais em torno de uma nova cultura midiática produtora de significados. Para Fausto Neto (2006:03) esse processo funciona como um “novo tipo de real” marcado pelo estabelecimento das relações sociais através de ligações sociotécnicas.

Esse novo real, apontado por Fausto Neto (2006) é, de certa forma, trabalhado por Hepp (2014) através do conceito de “mundos midiatizados”. O conceito de Hepp (2014) é formulado a partir do entendimento de que a midiatização é um processo que vincula tanto as transformações na sociedade e na cultura, quanto as mudanças na mídia e na comunicação.

Os “mundos midiatizados” são entendidos então como partes dos mundos sociais e da vida cotidiana presentes em um espaço midiatizado e que, para funcionar, dependem de uma certa articulação organizada pela comunicação midiática. Nesse quadro, Hepp (2014) afirma que os mundos midiatizados são a forma concreta assumida pelo processo de midiatização.

Nessa mesma trilha, ao referenciar-se ao processo de midiatização, Gomes (2017: 127) define o conceito como “um novo modo de ser no mundo”. Na perspectiva traçada pelo autor, o uso das tecnologias midiáticas, aqui compreendidas não como instrumentos, mas como um novo ecossistema social estruturante da sociedade, permitiu um salto quântico e qualitativo no fazer comunicacional humano, transformando a forma como nos relacionamos e como experenciamos o mundo e a realidade.

Para ele, mais do que uma tecno-interação, as sociedades contemporâneas são caracterizadas por um ecossistema midiático que incide profundamente no tecido social, convertendo-se em campo de referência para os demais campos. Diante disso, a sociedade compreende-se e é compreendida através das lógicas da mídia que imbricam sujeitos e comunicação num crisol de produção de sentidos que toma forma nessa ambiência midiatizada. Como explica Pedro Gomes (2017:130), o espaço midiático “constituiu, nessa perspectiva, útero cultural onde diversos processos sociais acontecem. Essa ambiência, esse novo modo de ser no mundo, caracteriza a sociedade atual”.

Entre representações territoriais e o bios midiático

Se na seção anterior compreendemos o processo de midiatização como uma nova forma de existir no mundo, caracterizado, principalmente, pela virtualização das relações e transformação do modo como experenciamos a realidade social. Na presente seção, à luz desse processo, trabalhamos a definição do que chamamos de Territórios Midiáticos através de duas frentes: – 1) como conjunto de representações imagéticas sobre o território, que transformam a forma como percebemos o mundo/espaço (Raffestin, 1993) e; 2) como espaço propriamente dito, através da ideia de bios midiático, trabalhado por Sodré (2002).

De antemão, explicamos, como exposto na introdução, que o conceito de Território / Territorialidade é tomado aqui a partir da perspectiva relacional. Essa linha de investigação, trabalhada principalmente através das ideias mobilizadas por autores como Raffestin (1993) e Santos (2006) e entende que o território é, antes de um espaço físico, uma área de vivência e reprodução sociocultural, resultado de uma ação de poder expressa em uma determinada ambiência. Já a territorialidade, segundo os autores (1993, 2006) diz respeito a um sistema tridimensional de relações (sociedade-espaço-tempo) espacializadas no território.

Munidos destes sentidos, cabe ponderar aqui como os conceitos de território e midiatização (e seus processos) caminham juntos para a conformação da ideia de território midiático, que nos propomos a fundamentar. Assim, iniciamos pela primeira frente de definição de território midiático, percebido como um conjunto de representações. Esse é um debate, conforme as autoras Reis e Zanetti (2017), recorrente em diferentes trabalhos que discutem questões territoriais e que toma como ponto de partida o entendimento da midiatização como um dispositivo de poder.

Milton Santos (2006), por exemplo, aborda as práticas midiáticas como componentes essenciais na organização de poder na contemporaneidade. Conforme o autor, os territórios se transformam a partir de uma dupla agência entre sujeitos e meios de comunicação. Na perspectiva de Santos (2006), as representações comunicacionais construídas através da mídia são essenciais na edificação das territorialidades, ou seja, da percepção da dimensão física e simbólica que o indivíduo tem dos territórios que habita.

Na mesma direção, Raffestin (1993) argumenta que as redes de comunicação funcionam como estratégias de poder responsáveis pela organização dos territórios. Nesse sentido, ao trabalhar a questão da representação, o autor pontua que, como o território se inscreve no campo do poder, produzir uma representação do espaço já implicaria uma apropriação, ainda que simbólica, deste território. Raffestin (1993) vai além e destaca que as representações territoriais, como toda relação de poder, são seletivas e excludentes e estão sujeitas as disputas e conflitos, pois ainda que uma imagem de um território possa ser somente uma imagem, ela revela o desejo por este território como um campo de reprodução social. Nas palavras do autor (1993: 204): “(...) redes de circulação e comunicação contribuem para modelar o quadro espaço-temporal que é todo território. Essas redes são inseparáveis dos modos de produção dos quais asseguram a mobilidade”.

Jansson (2005), bem como os autores De Assis e Carniello (2011), também possuem contribuições nesse sentido. Conforme eles, todos os territórios são produzidos por meio de representações, pois a compreensão que temos do espaço que vivemos só é possível através de uma construção de sentidos que ocorre de forma imagética. A comunicação midiática, nesse sentido, é essencial, pois molda nossa percepção e determina como interagimos e criamos territórios. Destaca-se aqui o papel da comunicação na construção de sentidos sobre mundos e espaços.

Diante dessas ponderações afirmamos que, em acordo com a primeira frente de conceituação proposta nesse estudo, o território midiático diz respeito ao conjunto de representações que moldam e estruturam um poder na sociedade, pois atuam com a força expressiva da imagem ao construir uma nova percepção mental para os sujeitos acerca do território e das territorialidades. Implica, nesse cenário, um novo relacionamento do indivíduo com as referencias do ambiente, uma nova condição de percepção do mundo e dos espaços.

Isto posto, em relação a segunda frente de definição de território midiático, entendido como espaço propriamente dito, buscamos aporte teórico no debate sobre midiatização traçado por Sodré (2002), a partir da ideia de bios midiático. O conceito, apresentado pelo autor compreende a mídia como um espaço em contínuo processo de territorialização, ou seja, de conformação de territórios.

Conforme Sodré (2002), nesse novo bios, os sujeitos substituíram uma participação contemplativa, de audiência, por uma participação direta, ativa e transformativa. Nessa perspectiva, o bios midiático proposto pelo autor não é somente um espaço de representação do território ou um conjunto de representações. Por outro lado, ele é um espaço onde os indivíduos são incluídos, constituem e desenvolvem relações novas que virtualizam relações antigas.

Ao trabalhar o conceito de bios midiático de Sodré (2002), Faxina e Gomes (2016) afirmam que esse é um “ambiente” marcado pela integração entre os mecanismos tradicionais de representação imagética e os dispositivos de interação virtual, constituindo com isso um território virtual. Para Faxina e Gomes (2016), esse é um espaço que reordena o mundo, criando uma referência para o que é tomado como real. Ele explica que isso ocorre porque o bios midiático apresenta-se como uma nova natureza, pois dela provem os objetos que são essenciais para o desenvolvimento das relações cotidianas de poder e das matrizes de valores.

Ainda segundo Sodré (2002), um entendimento de bios midiático envolve ainda, para além das inovações tecnológicas e das transformações e reinvenções nas relações sociais entre os sujeitos, transformações na forma como nos organizamos espacialmente e geograficamente. Tal sentido se aproxima da concepção de “mundos midiatizados” trabalhada por Hepp (2014) e apontada na seção anterior.

Conforme Hepp (2014), os mundos midiatizados não obedecem às fronteiras dos Estados, eles se organizam e se conectam conforme as próprias necessidades dos atores imersos neste universo, atravessando vários territórios. Aí, a mídia não é mais responsável por definir o real, ela se converte na própria realidade, estabelecendo novas formas de experenciar o mundo.

Como resultado, a compreensão do bios midiático de Sodré (2002) enquanto território tem relação com a sua capacidade de funcionar como espaço mediador das relações sociais de poder (dominação e apropriação) entre diferentes agentes sociais. Assim, o território midiático pressupõe, à vista disso, territórios que vão além do espaço físico e concreto. Recordamos que, como apontado anteriormente, território não é o espaço, mas sim uma produção a partir dele (Raffestin, 1993).

Neste quadro, recorrendo a Sodré (2002), entendemos que, em acordo com a segunda frente de definição proposta nesta investigação, o território midiático compreende o conjunto de ambiências virtuais, uma vez que estes espaços, ainda que digitais, possibilitam o desenvolvimento de grupos sociais em uma constante relação de mudanças e permanências. Nesse sentido, na medida que virtualiza as relações sociais e dinâmicas cotidianas, o bios midiático promove e constitui o que chamamos de territórios e territorialidades midiáticas.

Pesquisa diacrônica do território midiático

A partir dos pressupostos apresentados até agora, nos preocupamos com o desafio é como tornar a investigação sobre os territórios e territorialidades midiáticas algo prático. Em outras palavras, nos perguntamos como podemos acompanhar o processo histórico de instalação e constituição dos Territórios Midiáticos nas práticas etnocomunicacionais do Movimento dos Povos Indígenas.

Frente a isto, realizamos, neste estudo, uma análise diacrônica desse processo. De acordo com Hepp (2014), através da pesquisa diacrônica é possível investigar as mudanças comunicativas de determinadas ambiências em diferentes pontos no tempo, comparando os aspectos observados. Uma investigação diacrônica implica a observação das configurações comunicativas de determinados mundos sociais. Isso significa dizer que, caso desejemos captar o movimento de transformações comunicativas de determinado grupo social, não podemos limitar o estudo a apenas um meio de comunicação e seu tempo-espaço.

Para amparar nossa investigação diacrônica, contamos aqui com o auxílio da Análise de Discurso de Souza (2014), mobilizada através de dois movimentos realizados de forma concomitante: o primeiro através da identificação do “dito”, isto é, da forma material e concreta assumida pelo objeto discursivo. Depois, passamos para o estudo do “não-dito”.

Para Souza (2014), a melhor maneira de realizar o estudo do “dito” é através de uma análise descritiva do corpus de estudo selecionado – mas, vale lembrar como afirma Pêcheux (1997), que toda descrição se abre para uma interpretação. No estudo do “nãodito” o intuito é desenvolver reflexões e conexões entre o que foi observado na materialidade discursiva e as teorias e conceitos movimentados sobre o objeto de estudo.

Cremos que é através desses dois movimentos que podemos compreender a estrutura material das práticas etnocomunicativas do CIR e relacioná-la as definições de Território Midiático que propomos.

Nesse sentido, para o acompanhamento desse processo, delimitamos o estudo em torno de três práticas comunicativas ainda ativas administradas pelo Conselho Indígena de Roraima (CIR), representante do Movimento dos Povos Indígenas no estado mais setentrional do país: o informativo impresso “Anna Yekaré – Nossa Notícia”, criado em abril de 1990; o programa radiofônico “A voz dos povos indígenas”, no ar desde 2002; e o portal web do CIR, publicado em 2003.

Para a análise do Informativo “Anna Yekaré – Nossa Notícia”, tivemos acesso a 37 edições do impresso editado pelo CIR, publicadas ao longo de 31 anos e disponíveis no acervo do Centro de Documentação Indígena (CDI) do Instituto Religioso Missionário da Consolata (IRMC). Desse montante, para aproximação analítica, foram selecionados apenas quatro volumes, impressos em intervalos de 10 anos, a contar da primeira edição. Ou seja, os informativos impressos dos anos de 1990, 2000, 2010 e 2020.

Em relação ao programa radiofônico “A Voz dos Povos Indígenas”, o estudo utilizou como base quatro edições da prática comunicacional que foram transmitidas simultaneamente na emissora de radiodifusão Monte Roraima FM 107,9 MHz5 e nas páginas do Facebook da Rádio e do CIR4 entre os dias 21 de março de 2020 e 20 de março de 2021. Nesse período, selecionamos uma edição do programa por trimestre. A escolha desse marco temporal se deu pelo fato de a data marcar o início da transmissão do programa ao vivo nas redes sociais, facilitando o acesso ao material após a conclusão de cada edição.

No que diz respeito ao Portal web do CIR tivemos acesso as versões de 2003, 2010, 2013, 2017, 2019 e 2022. Essas edições foram recuperadas através do Internet Archive, maior acervo digital responsável por armazenar cópias de sites desde 1996, a fim de assegurar que as mudanças em um portal possam ser rastreadas e estudadas.

Territorialização do movimento indígena

Em face do exposto, partimos na sequência, ao detalhamento da vinculação entre o conceito de Território Midiático e as Práticas Etnocomunicacionais do CIR. Nesse sentido, evidenciamos, com base em nossa análise do corpus de estudo selecionado, especificidades presentes nas práticas comunicativas do CIR que demonstram o funcionamento do conceito de Território Midiático, conforme as perspectivas trabalhadas no decorrer do estudo.

Note de bas de page 1 :

O termo “maloca”, conforme Morais (2018), refere-se a uma localidade onde vive uma comunidade indígena. Essa é a uma expressão regional e em outros estados é equivalente ao termo “aldeia”.

No Informativo do CIR, é preciso entender, em acordo com Raffestin (1983), que as práticas etnocomunicacionais representam espacialmente o território como estratégia de poder utilizadas como modo de apropriar-se de forma simbólica ou mesmo concreta de determinada área. Nas páginas e edições analisadas do “Anna Yekaré”, essas narrativas representacionais dos territórios aparecem nos textos que falam sobre a importância da demarcação; depois, nas charges e fotografias que ilustram as malocas1 onde vivem os indígenas, as divisões com as fazendas ou mesmo a paisagem roraimense, marco de determinado espaço geográfico.

Essas representações são ainda, conforme Haesbaert (2004), formas de comunicar a apropriação simbólica do território. Ajudam, nesse sentido, os indivíduos a construir referências sobre o território que habitam ou que é habitado por sujeitos outros. Diante disso, os indígenas de Roraima representam o território no “Anna Yekaré – Nossa Notícia” a fim de se apropriar concreta ou simbolicamente das suas terras tradicionais.

Figura 1 - Edição de abril de 1990 do "Anna Yekaré"

Figura 1 - Edição de abril de 1990 do "Anna Yekaré"

Fonte: Imagem/Centro de Documentação Indígena (CDI)

Em relação ao Programa Radiofônico “A Voz dos Povos Indígenas”, devemos notar que o princípio da territorialidade é mobilizado, segundo Zanetti (2017), como um componente fundamental na organização de poder, mais precisamente das relações sociais de poder. Nas edições alvo de análise, sempre que os apresentadores indígenas falam sobre a questão territorial, demarcação e homologação há um esforço para relacionar às terras mencionadas com a tradicionalidade indígena, ou seja, o direito originário desses sob suas terras. Assim, a comunicação aparece como um dos componentes fundamentais para construir narrativas territoriais que ratifiquem a apropriação dos nativos sob seus territórios.

Ainda sob essa perspectiva, é através dessas narrativas territoriais que os apresentadores constroem uma imagem de território ideal e, com isso, auxiliam indígenas (consumidores dessas práticas comunicacionais) a construírem uma percepção acerca do território midiatizado. Tal fator é essencial para que esses possam converter a ideia de território étnico, isolado regionalmente, em um território indígena, comum aos povos ameríndios.

Além disso, na medida que possibilita a participação do público em diferentes momentos, o programa se constitui como espaço, no sentido de bios midiático proposto por Sodré (2002), uma vez que através dessas participações, os usuários interagem com os apresentadores, constituem laços e mobilizam sentidos para além de uma representação extensiva e unidirecional, mas questionadora, participativa e transformadora.

Figura 2 - Programa “A Voz dos Povos Indígenas” – 05 de dezembro de 2020

Figura 2 - Programa “A Voz dos Povos Indígenas” – 05 de dezembro de 2020

Fonte: Imagem/Facebook do Conselho Indígena de Roraima (CIR)

O mesmo ocorre, no Portal do CIR, nas matérias e publicações sobre a importância da demarcação e homologação das Terras Indígenas (TIs), especialmente da Raposa Serra do Sol, ou, ainda, em relação aos projetos de autossustentação dos povos tradicionais na região.

Frente a isso, para falar sobre o acionamento do princípio da Territorialidade nas práticas comunicacionais do CIR, devemos lembrar que, para Raffestin (1993), o território existe sempre que uma relação de poder é expressa por determinado sujeito com referência à um espaço (físico ou simbólico). A comunicação, nesse sentido, aí funciona como uma prática de poder que pode determinar as estratégias de organização de um território agora midiático / midiatizado.

Como resultado, sempre que o Movimento Indígena utiliza o Portal do CIR para construir narrativas sobre as Terras Indígenas ele está, de certo modo, expressando um desejo sobre como acredita que o território deveria ser organizado ou, ainda, comunicando a posse acerca de determinado espaço geográfico. Nesse cenário, a comunicação aparece como uma ferramenta essencial para construir narrativas sobre território que legitimem a apropriação dos povos étnicos sobre as terras tradicionais.

Figura 3 - Página inicial do Portal do CIR de 2003

Figura 3 - Página inicial do Portal do CIR de 2003

Fonte: Imagem/ Internet Archive

As representações do território formatadas pelo Portal do CIR podem, ainda, ser pensadas como formas de desterritorialização e reterritorialização, uma vez que envolvem a desconstrução e reconstrução das relações que os sujeitos possuem com o espaço. Esse processo é visível quando pensamos as transformações no site do CIR ao longo dos anos e como o território é trabalhado a partir de diferentes perspectivas.

Como exemplo, basta que pensemos na Terra Indígena Raposa Serra do Sol: primeiro, em 2003, ela aparece no site como uma área ainda não demarcada; depois, em 2010, como um espaço conquistado; e, por último, em 2013, 2017, 2019 e 2022, como um lugar que ainda precisa ser utilizado. Assim, esse território é construído e descontruído em diferentes momentos e contextos históricos, originando novas territorialidades através do acionamento das distintas práticas etnocomunicacionais.

Figura 04 – Portal do CIR de 2022

Figura 04 – Portal do CIR de 2022

Fonte: Conselho Indígena de Roraima (CIR)

Da mesma forma, como espaço propriamente dito, o portal do CIR também possibilita a construção de relações entre os sujeitos, o que ocorre quando o conteúdo compartilhado no site é reproduzido em redes sociais de outros atores, como no WhatsApp, Facebook e Twitter, ampliando o alcance dos materiais para outros territórios digitais e convertendo-se em fonte para o surgimento de novas relações sociais também virtuais e/ou virtualizadas.

Considerações finais

As práticas de comunicação, digitais ou não, mudaram a forma como nos relacionamos uns com os outros e, também, com o mundo. Mudaram também a forma como entendemos e compreendemos o território que habitamos – como construímos sentidos sobre ele e como transformamos e nos apropriamos dele. Diante disso, frente a cenário avançado do processo de midiatização, que virtualiza nossos fazeres cotidianos e se converte em ponto de referência para outros campos, pensar como transformamos e nos apropriamos das ambiências midiáticas é tarefa mais do que essencial.

Nesta pesquisa, buscamos apontar frentes teóricas com potencial para a definição do que temos chamado em nossas pesquisas de território midiático (Santi & Araújo; 2020; 2021). Logo, mais do que inovar na produção deste conceito, as perspectivas apresentadas no decorrer da investigação foram ancoradas em problematizações já realizadas sobre Território, Etnocomunicação e Midiatização. Com isso em mente, realizamos aqui uma articulação entre esses conceitos a fim localizar o debate sobre território em tempos de midiatização.

Para tanto, utilizamos as práticas etnocomunicacionais do Conselho Indígena de Roraima (CIR), representante do Movimento Indígena na região, como objeto empírico de análise. Pois constatamos que as disputas pelo território têm sido historicamente palavras-chaves na constituição desse movimento social e de suas organizações - e das formas e práticas comunicacionais acionadas pelo e/ou através do Movimento Indígena (Araújo, 2021).

Como resultado, acreditamos, conforme Zuniga Navarro (1998), que a constituição dos territórios midiáticos nas práticas etnocomunicativas do CIR é expressa pelo menos em duas dimensões: a do espaço e a dos processos. A primeira dimensão (do espaço) manifesta-se como uma demanda desses povos pelo uso dos recursos de reprodução social de uma determinada ambiência, nesse caso o bios midiático. Já a segunda dimensão (dos processos) pronuncia-se através do controle de mecanismos comunicacionais responsáveis pela construção de representações sobre território.

Os dados apontam que a primeira dimensão considera o território midiático como um locus – um lugar com recursos disponíveis para o estabelecimento de relações entre sujeitos. Já a segunda, considera o território midiático como ferramenta de poder, através da qual comunicamos o desejo por acesso a um determinado espaço seja ele físico e/ou simbólico.