A historicidade do cenário da corrupção na América do sul: custos indiretos que drenam recursos e comprometem os direitos humanos The historicity of the corruption scenario in south America: indirect costs that drain resources and undertake human rights
O Brasil é a quarta maior democracia de massas do mundo. Este ano, a Constituição da República Federativa do Brasil completou 32 anos. E por mais que o país se encontre respaldado por uma norma de ordem superior, que dispõe sobre a organização do Estado, garantias e direitos individuais dos cidadãos, desde a primeira década dos anos 2000 o país vem sendo alvo de revelações acerca da corrupção. Há um grande debate acerca da temática da corrupção sistêmica que ocorre no país, que, além de precarizar as prestações do Estado, afetam a aplicabilidade de respaldos legislativos sobre direitos humanos. A partir das conceituações supra explanadas e do método de pesquisa bibliográfico, caracterizamos como problema de pesquisa e como o questionamento essencial, que motiva a elaboração do presente estudo, a seguinte indagação: é possível considerar a problemática da corrupção como um obstáculo para a concretização dos direitos humanos no Brasil?
Brasil es la cuarta democracia de masas más grande del mundo. Este año, la Constitución de la República Federativa de Brasil cumplió 32 años. Y por mucho que el país se apoye en una norma de orden superior, que prevé la organización del Estado, garantías y derechos individuales de los ciudadanos, desde la primera década de los 2000 el país ha sido blanco de revelaciones sobre la corrupción. Existe un gran debate sobre el tema de la corrupción sistémica que ocurre en el país, que además de precarias prestaciones estatales, afecta la aplicabilidad de los respaldos legislativos sobre derechos humanos. Con base en los conceptos explicados anteriormente y el método de investigación bibliográfica, caracterizamos la siguiente interrogación como un problema de investigación y como la pregunta esencial que motiva la elaboración de este estudio: ¿es posible considerar el problema de la corrupción como un obstáculo para la materialización de los derechos humanos en Brasil?
Le Brésil est la quatrième plus grande démocratie au monde, en termes de population. Cette année, la Constitution de la République Fédérative du Brésil a fêté ses 32 ans. Et, bien que l’organisation du pays repose sur une règle d'ordre supérieur, qui prévoit l'organisation de l'État, des garanties et les droits individuels des citoyens, depuis la première décennie des années 2000, le pays fait l’objet de révélations sur des cas de corruption. Il y a un grand débat sur la question de la corruption systémique qui se produit dans le pays, qui, en plus de précariser les prestations de l’État, affectent l'applicabilité de soutiens législatifs relatifs aux droits de l’homme. Les conceptions ci-dessus formulées, à partir d’une méthode de recherche bibliographique, nous poserons la question essentielle selon nous et objet de notre étude : est-il possible de considérer le problème de la corruption comme un obstacle à la réalisation des droits de l'homme au Brésil ?
Brazil is the fourth largest mass democracy in the world. This year, the Constitution of the Federative Republic of Brazil completed 32 years. And as much as the country is supported by a higher order rule, which provides for the organization of the State, guarantees and individual rights of citizens, since the first decade of the 2000s the country has been the target of revelations about corruption. There is a great debate on the issue of systemic corruption occurring in the country, which, in addition to precarious state benefits, affects the applicability of legislative backings on human rights. Based on the concepts explained above and the bibliographic research method, we characterize the following question as a research problem and as the essential question that motivates the elaboration of this study: is it possible to consider the problem of corruption as an obstacle to the realization of human rights in Brazil?
Introdução
Os anos que precederam a década de 50 delinearam marcos internacionais da historicidade social e jurídica, cujos reflexos são consistentes nos percursos humanos do século XXI. No mesmo cenário histórico em que os nazistas estavam sendo julgados no Tribunal de Nuremberg, por crimes que haviam cometido durante a Segunda Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU) abria as portas para a realização da Assembleia Geral de 1948, na cidade de Paris, proclamando a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).
Legitimando a promoção e o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações e os povos que se encontram sob sua jurisdição, o respeito universal aos direitos e liberdades humanas, o progresso social e melhores condições de vida, a DUDH contempla essencialmente o que intitulamos direitos humanos fundamentais. Com seu advento, a humanidade passou a considerar a existência de direitos mínimos assegurados a toda e qualquer pessoa humana, garantidos e sob a tutela do Estado ao qual é partícipe, por meio do implemento de políticas públicas e atuações no plano concreto.
Sobre a declaração, é possível identificá-la como um produto da percepção de falhas e desavenças humanas, que propiciaram solidamente com que o homem enxergasse a sociedade internacional como um todo e percebesse a necessidade de uma proteção legislativa sobre direitos que lhes são intrínsecos por natureza. Uma expressão do filósofo Thomas Hobbes – “o homem é o lobo do próprio homem” – nos propõe uma melhor compreensão sobre esse pensamento, a partir do entendimento de que se não existir um Estado que imponha leis, o ser humano se torna o maior inimigo de si mesmo e vive em uma “guerra de todos contra todos”.
Isto é, por mais que a força normativa exista, o passar dos séculos demonstra que as mesmas ações humanas que deram lugar à guerras e sacrifícios sociais, hoje não estão deslocadas: fazem ascender forças corruptivas mundialmente, sejam elas de cunho político ou econômico, capazes de atingirem o plano dos direitos humanos.
Com um olhar específico ao que ocorre atualmente no maior país da América do Sul – o Brasil –, façamos um aparato histórico. O Brasil é a quarta maior democracia de massas do mundo (Barroso, 2018). Este ano, a Constituição da República Federativa do Brasil completou 32 anos. E por mais que o país se encontre respaldado por uma norma de ordem superior, que dispõe sobre a organização do Estado, garantias e direitos individuais dos cidadãos e temas considerados de maior relevância pelo contexto da nação (por acordos e declarações internacionais), desde a primeira década dos anos 2000 o país vem sendo alvo de revelações acerca da corrupção.
Há um grande debate acerca da temática da corrupção sistêmica que ocorre no país, que, além de precarizar as prestações do Estado, impondo desafios para a Administração Pública, com o fim de criar instrumentos que objetivem cessar a sua prática e prevenção, cria uma relação inversa com a taxa de investimentos econômicos, políticos e sociais, que seriam destinados aos cidadãos, afetando a aplicabilidade de respaldos legislativos sobre direitos humanos. Em outras palavras, os custos indiretos da corrupção acabam por suprimir a efetividade da aplicabilidade prática de direitos humanos nas democracias.
Fazendo emergir as sustentações teóricas que norteiam este trabalho acadêmico, a partir das conceituações supra explanadas e do método de pesquisa bibliográfico, caracterizamos como problema de pesquisa e como o questionamento essencial, que motiva a elaboração do presente estudo, a seguinte indagação: é possível considerar a problemática da corrupção como um obstáculo para a concretização dos direitos humanos no Brasil? Para responder a essa demanda, utilizar-se-á o método de pesquisa de abordagem dedutiva e o procedimento monográfico, tendo em vista a realização de um breve panorama sobre a doutrina e a historicidade dos direitos humanos, para, então, adentrar-se na temática das violações de direitos frente à corrupção.
1. Breve aceno sobre os direitos humanos
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Tradução do latim: indispensável, essencial.
O marco histórico da transição brasileira à democracia e do início de uma caminhada que vá ao encontro da efetivação dos direitos humanos no Brasil está consolidado, constitucionalmente, na redação do artigo 5º da Constituição de 1988. Os direitos e garantias fundamentais contemplados no artigo foram o marco histórico da transição para a democracia e o início da efetivação dos direitos humanos no país. De fato, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, ter por preceito a observância desses direitos tornou-se condição sine qua non1, seja no direito interno, seja no âmbito da política externa do País.
Por terem natureza essencialmente universal, os direitos humanos englobam demais direitos – tais como o direito dos refugiados, o direito ao desenvolvimento, o direito à filiação partidária, entre outros. São eles merecedores do privilégio de proteção, no intuito de acompanhar as transformações socioeconômicas e políticas, que, apesar de lentas e paulatinas, são inerentes ao processo evolutivo dos Estados. Evidentemente, a deferência aos direitos humanos faz parte da estrutura de um Estado Democrático de Direito. Nesse viés, a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização dos Estados Americanos (OEA), a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e outros organismos internacionais, em conjunto com os Estados-membros, têm somado esforços para, no plano universal e regional, fazer valer tanto as leis de cada um de seus Estados-membros, quanto os demais instrumentos de proteção dos direitos fundamentais.
Importante consignar que os direitos fundamentais não são sinônimos de direitos humanos, pois esses “são direitos que necessitam ser considerados em uma dimensão espacial e temporal ou seja, quando e onde se busca a efetivação deles” (Leal; Kaercher, 2016: 273). Por outro lado, os direitos fundamentais são os “direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado” (Sarlet, 2010: 29). Para Boaventura de Sousa Santos:
O conceito de direitos humanos assenta num bem conhecido conjunto de pressupostos, todos eles tipicamente ocidentais, designadamente: existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida racionalmente; a natureza humana é essencialmente diferente e superior à restante realidade; o indivíduo possui uma dignidade absoluta e irredutível que tem de ser defendida da sociedade ou do Estado; a autonomia do indivíduo exige que a sociedade esteja organizada de forma não hierárquica [...] (Sousa Santos, 1997: 112).
Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, consolida um consenso de valores de objetivo universal, a ser cumprido por todos os Estados, após o período da Segunda Guerra Mundial, momento que emerge a necessidade de reconstrução do valor dos direitos humanos, como paradigma ético a orientar a ordem internacional. Essa universalidade dos direitos humanos conclama para o fato de que ser pessoa é o único requisito para ser titular de direitos.
No caso brasileiro, valorosa parte, senão a quase totalidade, dos direitos contemplados pela Declaração Universal foram positivados na Constituição da República, tornando-se direitos fundamentais. Dentre eles, importante destacar os direitos à vida, dignidade, saúde, educação, entre outros. E “é esse contexto que faz com que as normas de direitos fundamentais se encontrem no cerne das constituições atuais, a vincular todos os poderes e a própria espacialidade privada” (Corralo, 2017: 173). Além disso,
é onde os direitos imprescindíveis para o desenvolvimento humano encontram-se presentes, com a obrigação do Estado em garanti-los. É onde a dignidade da pessoa humana toma corpo, a possibilitar a sua concretude factual no mundo vivido (Corralo, 2017: 173).
No plano concreto também tem sido construído o ideário de um direito fundamental à boa Administração Pública, tema que é central para o presente trabalho. Em síntese, é um direito fundamental à boa administração pública, que pode ser assim compreendido:
[...] trata-se do direito fundamental à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas. A tal direito corresponde o dever de a administração pública observar, nas relações administrativas, a cogência da totalidade dos princípios constitucionais que a regem (Freitas, 2009: 220).
Todavia, a efetivação de uma boa governança e dos próprios direitos humanos é comprometida pelo fenômeno da corrupção. A corrupção atrasa a história que é escrita diariamente pelos cidadãos de cada país que é vítima de suas armadilhas. Agir corruptamente nem sempre se assemelha à uma racionalidade condizente e linear que anseia por avanços sociais e civilizatórios no âmbito da condição social evolutiva humana.
2. Cenários da corrupção, conceitos, suas interpretações e fenomenologias
A investigação italiana denominada “Operação Mãos Limpas” revelou ao mundo, pela primeira vez, um esquema de corrupção sistêmica nas relações do poder público com as empresas privadas envolvidas em licitações. O que aconteceu na Itália na década de 1990 guarda inúmeras similaridades com o que acontece hoje no Brasil (Barbacetto; Gomez; Travaglio, 2016).
A primeira década dos anos 2000 foi marcada pelo início de crescentes debates acerca do aumento de casos de corrupção em territórios nacionais. Revelações de práticas ilegais de corrupção no âmbito da Administração Pública do país, além de dificultar as prestações do Estado, impõem desafios à camada social nos mais diversos eixos econômicos e políticos, que estão diretamente ligados aos cidadãos brasileiros. Uma relação inversa entre a verba destinada a investimentos econômicos e políticos, que seriam designadas a um cunho social, para com o montante que concretamente corresponda à tais aplicações, passa a passa existir. E como resultado desse desvio monetário, a aplicabilidade de respaldos legislativos que versam sob direitos humanos passa a ser afetada.
No Brasil, os instrumentos de combate e prevenção da corrupção são corolários dos princípios regentes da Administração, positivados na Constituição da República, que imperam que a
administração pública direta e indireta de qualquer um dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (Brasil, 1988).
Além da Constituição, os marcos legislativos perpassam por normas de natureza cível, penal e administrativa, a exemplo da Lei de Improbidade Administrativa, Lei Anticorrupção, Lei de Combate ao Crime Organizado, bem como das disposições da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Ocorre que, na prática, o conceito de “corrupção” e o tratamento dado a ela nem sempre são resolutivos. Ora corrupção carrega o sentido de malversação de verbas públicas, ora como correlato de improbidade administrativa – ou, mesmo, crime contra a Administração Pública, apropriação do público pelo privado. O ato que está por trás da palavra “corrupção” é a utilização de competências legisladas por funcionários do governo para fins privados. Vejamos: o que realmente acontece diante dos esquemas de corrupção sistêmica é que esses envolvem não só “o enriquecimento ilícito de agentes públicos, mas igualmente o favorecimento indevido de agentes privados. ” (Barbacetto; Gomez; Travaglio, 2016: 7). Por este viés interpretativo, uma característica que está intrinsecamente atrelada ao conceito é a ausência de interesse ou de compromisso com o bem comum.
O exemplo de que os crimes de extorsão, corrupção, financiamento ilícito de partidos políticos e falsificação contábil sejam muito mais numerosos do que indicam estatísticas jurídicas, remetem-nos a pensar sobre a dimensão da ilegalidade que está por trás de todo o sistema. Sobreleva-se, portanto, uma justificativa para entrelaçar o conceito de “corrupção” como sinônimo de “ilegalidade”, “decadência”, “devastação”, “deterioração” de uma determinada organização político-social (Fernandes, 2019). Para além dessas conceituações, o surgimento da corrupção pode sobrevir da “ideia de destruição, como a de mera degradação, assumindo uma perspectiva natural, como evento efetivamente apurado na realidade fenomênica, ou meramente valorativa” (Leal; Kaercher, 2016: 279).
São diversos os modos de interpretá-la, compreendê-la e associá-la a práticas que fogem da licitude. As inúmeras possibilidades interpretativas acerca da definição desse ato ilícito não a vinculam a um conceito próprio, correto e pacífico na doutrina. Bem observa o autor Barranco, ao compartilhar em suas obras o seguinte entendimento:
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Tradução nossa: “A verdade é que não existe um conceito unívoco ou unitário de corrupção, que depende da intenção de cada observador. Mesmo que, em geral, em quase todas as tentativas de definição, três elementos normalmente aparecem: o abuso de uma posição de poder, a conquista de uma vantagem patrimonial em troca de seu uso e, embora não esteja explicitamente declarado, a natureza secreta do pagamento.”.
Lo cierto es que no existe un concepto unívoco o unitario de corrupción, que depende de la intención de cada observador. Aunque con carácter general en casi todos los intentos de definición aparecen normalmente tres elementos: el abuso de una posición de poder, la consecución de una ventaja patrimonial a cambio de su utilización y, aunque explícitamente no acostumbra a señalarse, el carácter secreto del pago2 (Barranco, 2016: 4).
As discussões mais recentes sobre o assunto têm vislumbrado elementos comuns que pavimentaram o caminho em direção a uma definição sobre atos corruptos, portadores de condutas vinculadas a uma vantagem do privado sobre o que é público, com violação de normas e deveres (Fernandes, 2019). Seria, pois, o termo adequadamente conceituado como
toda conduta perversa e desleal na gestão de interesses públicos ou privados, que geralmente visa a uma vantagem de natureza econômica, a partir da violação de deveres previstos num dado sistema de referência (Fernandes, 2019: 113).
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Tradução nossa: "Sem dúvida, a corrupção pode ser referida do ponto de vista econômico, ético, jurídico, linguístico, moral, psicológico ou sociológico"
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Tradução nossa: “São muito diferentes as causas que a geram, bem como as estratégias para sua contenção.”.
Seu alcance também atinge variados âmbitos e campos de análise: “Puede sin duda aludirse a la corrupción desde un punto de vista económico, ético, jurídico, lingüístico, moral, psicológico o sociológico”3 (Barranco, 2016: 4), posto que “son muy diferentes las causas que la generan, así como las estrategias para su contención”4 (Barranco, 2016: 4). Além de estar atrelada à diversos eixos de atuações, interpretações e observações humanas, é imperioso referir que o fenômeno da corrupção:
[...] vem se apresentando no âmbito das instituições públicas, privadas e democráticas, assim como, na sociedade civil, a partir de múltiplas faces e interfaces de condutas humanas, às quais, regra geral, está conexa ao abuso de alguma função pública, como por exemplo, um servidor estatutário de carreira (um agente fiscal), no âmbito político (deputado, senador, vereador, prefeito, governador), para atender a interesses corporativos e particulares (seja de um empresário, político ou conglomerado econômico), causando impacto significativo nos direitos individuais de primeira dimensão, nos direitos sociais de segunda dimensão e, ainda nos direitos de terceira dimensão (meio ambiente) e nas políticas públicas, atingindo os setores mais vulneráveis e marginalizados (pobres) (Notari; Oliveira, 2018: 5-6).
Adentrando em uma dessas suas possibilidades analíticas, sob a perspectiva de uma análise jurídica, devendo as instituições judiciárias respeitarem o devido processo legal e punirem aqueles que se valem da corrupção sistêmica, verifica-se como crescente a busca por mecanismos preventivos e de combate a esse feito. O aperfeiçoamento dos instrumentos penais e sancionatórios brasileiros demonstram que há algo sendo feito contra esses tipos de crimes que consomem lentamente com a liberdade das instituições. Mas não somente o campo penal deve estar preparado para lidar com a corrupção.
A corrupção é um crime com vítimas difusas, que não atinge a uma pessoa e a um sistema social específico (Barbacetto; Gomez; Travaglio, 2016), portanto, deve ser interpretada de igual forma.
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Tradução nossa: “Se existe um consenso sobre algo, é na necessidade de enfrentar a mesma tanto de posições repressivas e preventivas, concebendo a corrupção de uma perspectiva global que não a coloca exclusivamente no campo criminal”.
Si en algo existe consenso es en la necesidad de afrontar la misma tanto desde posiciones represivas como preventivas, concibiendo la corrupción desde una perspectiva global que no la ubique de forma exclusiva en el campo penal5 (Barranco, 2016: 4).
Se pudéssemos classificar a corrupção como ciência, interdisciplinaridade seria uma atribuição correta.
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Tradução nossa: “O fenômeno da corrupção, analisado sob uma perspectiva jurídico-criminal e cada vez mais ligado ao mundo do crime organizado, se estende a inúmeros aspectos da vida pública, principalmente na esfera econômica, em relação a questões como a proteção da livre concorrência, sigilo da empresa ou livre desenvolvimento de mercados e política, em relação à tomada de decisões motivadas por interesses fora do exercício adequado da função administrativa. Isso deve ser levado em consideração ao tentar delimitar seu conteúdo injusto, de substantividade difícil sem referências ao campo em que é desenvolvido, na medida em que o uso dessa posição de poder a que foi feita referência terá que adquirir relevância apenas em função dos diferentes interesses que podem prejudicar.”.
El fenómeno de la corrupción, analizado desde una vertiente jurídico-penal y vinculado cada vez en mayor medida al mundo de la criminalidad organizada, se extiende a numerosos aspectos de la vida pública, particularmente en el ámbito económico, en relación a cuestiones tales como la tutela de la libre competencia, el secreto de empresa o el libre desenvolvimiento de los mercados, y político, en relación con la toma de decisiones motivadas por intereses ajenos al correcto ejercicio de la función administrativa. Ello deberá tenerse en cuenta cuando trate de delimitarse el contenido de injusto de la misma, de difícil sustantividad sin referencias al campo en que se desarrolla, en cuanto que la utilización de esa posición de poder a que se hacía referencia habrá de adquirir relevancia únicamente en función de los distintos intereses que pueda menoscabar6 (Barranco, 2016: 5).
Sabidamente, debruçar-se sobre essa temática e analisá-la a partir desses diversos âmbitos traz a evidencia de que os seus efeitos implicam consequências jurídicas, políticas, democráticas, etc. É nesse cenário que as vertentes de análise da corrupção denotam diversas causas, origens e consequências. No entanto, para entender e combater a corrupção, não basta classificá-la como crime. É preciso entendê-la como um fenômeno que envolve a prática de atos inter-relacionados.
Sob esse viés interpretativo, podemos lograr pelo retorno de um desenvolvimento normal e legal das instituições que seja condizente aos direitos da sociedade. (Castañeda, 2012). E as consequências desses ciclos corruptivos devem ser observadas, sem deixar de reconhecer as múltiplas redes de relações que estão imbricadas ao tema da corrupção, pois quando ela se dá enquanto causa de emendas orçamentárias supressivas, aditivas, realocativas, em tese lícitas, esses atos administrativo-legislativos afetam intensamente todos os bens e interesses públicos que sofreram alguma restrição (Leal; Schneider, 2014).
Em que pese o arcabouço de consequências graves geradas pela corrupção, não é possível saber até que ponto suas fenomenologias são capazes de prejudicar os valores básicos de um Estado de Direito social e democrático, afetar a confiança dos cidadãos no sistema ou quebrar a consciência da responsabilidade social (Barranco, 2016). Mas, como se verá adiante, os efeitos da corrupção, além de lesionarem os valores do próprio Estado, são lesivos também para a efetividade dos direitos humanos no Brasil.
3. A existência de uma relação inversamente proporcional entre direitos humanos e corrupção
Diga-se que, por si só, os direitos humanos já enfrentam sérios obstáculos para sua efetivação no plano global, haja vista que
na forma como são agora predominantemente entendidos, os direitos humanos são uma espécie de esperanto que dificilmente se poderá tornar na linguagem quotidiana da dignidade humana nas diferentes regiões do globo (Santos, 1997: 122).
Aliados à corrupção, o problema da efetividade concreta se agrava.
Uma vez que a corrupção pode ser encontrada dispersa no corpo político – e mesmo tolerada pela comunidade – as pessoas mais necessitadas sofrem de forma mais direta com os efeitos (Leal; Schneider, 2014). Soma-se o fato de que
as estruturas dos poderes instituídos se ocupam, por vezes, com os temas que lhes rendem vantagens, seja de grupos, seja de indivíduos, do que com os interesses públicos vitais existentes (leal; schneider, 2014: 416),
deixando de prestar olhares atentos aos possíveis efeitos do fenômeno corruptivo.
Olvida-se, nacionalmente, a importância de se prestar atenção no impacto da corrupção no gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais materializados na Constituição (NotarI; Oliveira, 2018). Notável exemplo de direito humano afetado pela patologia corruptiva é o direito à saúde, tendo em vista que
os recursos perdidos com a corrupção na área de saúde poderiam ser usados para comprar medicamentos, equipar hospitais, contratar equipes médicas, enfim, ampliar qualitativamente o serviço público propriamente dito (Leal; Schneider, 2014: 427),
ao passo que tais recursos são apropriados pelo privado em detrimento do público e efetividade dos direitos.
Esses serviços geram grandes contratos públicos que não só criam oportunidades para a corrupção, mas além da corrupção, eles têm um impacto desproporcional nos grupos vulneráveis e desfavorecidos, especialmente as mulheres. A corrupção generalizada em serviços de saúde ou educação impede as pessoas mais pobres de obter atendimento médico ou acesso à educação, arruína suas oportunidades e reduz seus padrões de vida de pessoas mais carentes e vulneráveis (Notari; Oliveira, 2018: 23).
Diversamente, no plano internacional
os Estados aceitaram, através de uma variedade de tratados internacionais de direitos humanos, em sentido amplo, as obrigações relacionadas à prestação ou regulação de serviços públicos relacionados à saúde, habitação, água potável e educação (Notari; Oliveira, 2018: 23),
indo ao encontro daquilo que conhecemos por “boa governança”. O termo significa “exercício do poder ou da autoridade com eficiência, transparência e accountability” (Barroso, 2018: 2).
A boa governança, nesse sentido, requer um efetivo Estado de Direito, com regras claras e previsíveis para a espacialidade pública, para os cidadãos e para a sociedade civil; requer instrumentos de participação e controle social – cidadãos e organizações da sociedade – na atividade pública, a incluir também os atores do mundo econômico; requer a devida publicidade do que é feito na arena pública, o que é chamado de transparência, a permitir que todos tenham acesso a tudo o que se referir à gestão da coisa pública, salvo as situações excepcionais que possam comprometer a segurança do Estado ou da sociedade, para os quais há a possibilidade de sigilo; requer, também, a devida responsabilização dos gestores, politica e administrativamente, pelo povo e por órgãos técnicos de controle (Corralo, 2017: 180).
Se não existirem olhares atentos que se preocupem com a regularidade de atos cometidos ilicitamente, que concretizam a corrupção sistêmica diante da evolução societária do mundo do século XXI, tornar-se-á esse fato uma grande bola de neve com efeitos irreconhecíveis em diversas áreas do plano humano-social:
A corrupção compromete a boa governança, na medida em que as decisões são tomadas pelos motivos ou para os fins errados. A má-governança, intuitivamente, debilita a capacidade de o Estado respeitar, proteger e promover os direitos humanos [...] (Barroso, 2018).
Conclusão
A democracia é fundada na ideia básica de que todos os cidadãos são livres e iguais, devendo serem assim tratados pela lei e pelas instituições públicas. E um dos pilares da democracia é a confiança que as pessoas depositam nas instituições que, a priori, devem ser íntegras, republicanas e eficientes. A corrupção compromete esses três valores essenciais (Barroso, 2018).
O Brasil que emerge de um passado e de um presente com raízes corruptivas é um exemplo típico da perda de confiança da sociedade, por exemplo, na classe política e, consequentemente, nas instituições por ela representadas. O fato é que a corrupção não somente traz descrédito para tais organizações, como principalmente produz riscos para a democracia. Ser caracterizado como um Estado Democrático de Direito é sinônimo de tornar-se um estado preocupado com seus nacionais – seja no tocante a seus direitos civis, sociais, políticos, etc. – mas, especialmente, no que diz respeito à garantia de seus direitos humanos fundamentais.
É possível demonstrar que países com elevados índices de corrupção são também países com mau desempenho em termos de direitos humanos (Barroso, 2018). Quando parte dos governantes e dos governados agem em interesse próprio, em desrespeito à lei, obtendo, arbitrariamente, enriquecimento ilícito e perpetuação no poder, a maioria social que aparentemente está distante de tal ilicitude acaba por ser diretamente afetada. Inocentes sofrem as consequências de tal irresponsabilidade, pois valores que deveriam ser destinados às necessidades sociais são destinados ao enriquecimento pessoal de agentes públicos e políticos.
Recentemente o Comitê Consultivo de Direitos Humanos das Nações Unidas têm defendido a adoção de uma perspectiva de direitos humanos no combate à corrupção. Sustentam, assim, que o direito de estar livre de atos oficiais de corrupção deveria ser reconhecido como um direito fundamental e inalienável de per se. Ocorre que o empoderamento dessa mudança teria valor simbólico, mas duvidoso efeito prático. (Barroso, 2018).
Ideal seria que o funcionamento de uma democracia moderna, em uma sociedade de massas, e as possibilidades e as limitações dela no enfrentamento da corrupção sistêmica fossem alicerçados na vontade de retornar à primeira democracia existente no país – que alicerçava-se no respaldo concreto de direitos fundamentais, especialmente das minorias.
A base desse combate está no conhecimento. Ter noção crítica dos fatos e conhecer o problema são os primeiros passos para se lutar contra a corrupção. E esta não é uma batalha só do Estado, dos magistrados ou dos atores públicos. Esta é, também, uma luta do cidadão que acredita em um mundo melhor para si, mas, sobretudo, para as próximas gerações. Remédios capazes de combaterem à corrupção só podem ser encontrados na própria humanidade, pois a humanidade que desrespeita, que corrompe, é a mesma que pode combater a esse a outros males (Barbacetto; Gomez; Travaglio, 2016).