Movimento indígena e descaso da saúde Yanomami na Amazonia: análise sobre a falta de assistência do governo federal e as consequências do garimpo em reportagem do G1 Roraima Indigenous movement and neglect of Yanomami health in the Amazonia: analysis of the lack of assistance from the federal government and the consequences of mining in a report by G1 Roraima

Josué FERREIRA 
e Tatiane HILGEMBERG 

https://doi.org/10.25965/trahs.5003

O movimento indígena em Roraima tem sido pioneiro em discutir pautas para melhorias nas comunidades. Busca-se discutir como esse movimento social levou à imprensa - Portal G1 RR - denúncia importante sobre o surto de malária e casos de desnutrição nas crianças na maior reserva indígena do país, a Terra Yanomami. Neste artigo, traçamos um panorama sobre movimentos sociais e indígena, indicando-os como caminho para conquistas de direitos no Brasil, discutimos o direito à saúde conquistado pelos povos originários após anos de lutas, e analisamos a reportagem especial “Terra Yanomami e o retrato do abandono: desnutrição, surto de malária e frascos de dipirona”, publicada no Portal G1 RR, em novembro de 2021, para discutir elementos que configuram a resistência dos Yanomami. Concluímos que por mais que a reportagem em alguns momentos use termos inadequados, apele na narrativa ou não aprofunde em determinadas questões, ela estabelece um novo momento sobre o movimento indígena enquanto notícia e simboliza um fruto da atuação do movimento indígena.

Le mouvement indigène de Roraima a été un pionnier dans la discussion de lignes directrices pour améliorer la vie au sein des communautés indigènes. Il expose la façon dont ce mouvement social a conduit la presse – Portal G1 RR – à dénoncer l’importante épidémie de paludisme et des cas de malnutrition chez les enfants, dans la plus grande réserve indigène du pays, la Réserve Yanomami. Dans cet article, nous dressons un panorama des mouvements sociaux et indigènes et indiquons qu’ils constituent un moyen de conquérir les droits au Brésil, notamment le droit à la santé conquis par les peuples indigènes après des années de lutte. Nous partons de l’analyse du documentaire intitulé “La Réserve Yanomami, portrait d’un abandon : malnutrition, épidémie de paludisme et flacons de dipyrone”, publié sur le Portal G1 RR, en novembre 2021, pour discuter des éléments qui caractérisent la résistance des peuples indigènes. Nous en concluons que, même si le documentaire utilise parfois des termes inappropriés, fait appel au récit ou n’aborde pas certaines questions, il présente une nouvelle étape dans le mouvement indigène et incarne la dynamique de ce mouvement.

El movimiento indígena en Roraima ha discutido asuntos para mejorar el vivir de las comunidades indígenas. Nuestro objetivo es discutir cómo este movimiento social llevó a la prensa – Portal G1 RR – una denuncia importante acerca de la epidemia de malaria y casos de desnutrición en los niños de la mayor reserva indígena de Brasil, la Tierra Yanomami. En este artículo, trazamos un panorama acerca de los movimientos sociales e indígenas, indicando que son como caminos para la conquista de derechos en Brasil, o sea derechos conquistados por los pueblos originarios después de años de lucha (el derecho a la salud, en especial) y analizamos el reportaje “Tierra Yanomami, retrato de un abandono: desnutrición, epidemia de malaria y frascos de dipirona”, publicado en el Portal G1RR, en noviembre de 2021, para discutir elementos que muestran la resistencia de los Yanomami. Concluimos que, por más que el reportaje utilice en algunos momentos palabras inadecuadas, busque una narrativa paralela o no profundice el debate acerca de algunas cuestiones, éste establece un nuevo momento para el movimiento indígena y simboliza la actuación de los indígenas.

The indigenous movement in Roraima has been a pioneer in discussing some important subjects to improve communities. The aim is to discuss how this movement led to the press – Portal G1 RR – important denunciation about the malaria outbreak and cases of malnutrition in children in the largest indigenous reserve in Brazil, the Yanomami Indigenous Land. In this article, we outline an overview of social and indigenous movements, indicating them as a way to conquer rights in Brazil, we discuss about the right to health conquered by indigenous people after years of struggle, and we analyze the special report “Yanomami Land and the portrait abandonment: malnutrition, malaria outbreak and bottles of dipyrone”, published on Portal G1 RR, in November 2021, to discuss elements that configure the resistance of indigenous people. We conclude that although the report may sometimes use inappropriate terms, be clumsy in its narrative, or not go deeply into certain issues, it establishes a new moment about the indigenous movement as news and symbolizes a fruit of the indigenous movement's actions.

Índice
Texto integral

Introdução

Os movimentos sociais sempre fizeram parte da construção da realidade devido às discussões que provocam. Goss e Prudencio (2004: 81) escrevem que esses movimentos têm cunho emblemático, mesmo lutando por particularidades e diferenças, pois o tipo de discussão que suscitam “acaba tocando em temáticas muito importantes que afetam a estrutura social e a própria constituição da sociedade”. As autoras também destacam que os movimentos sociais têm cunho identitário.

No mesmo entendimento, Gohn (2000) afirma que os movimentos sociais não podem ser definidos apenas por grupos que se aglomeram para protestar. É preciso ter uma identidade comum, que surge das experiências culturais de cada um deles, e os leva para um encontro de ideais, que é recriado a todo momento. “Os movimentos realizam diagnóstico sobre a realidade social, constroem propostas” (Gohn, 2011: 336). Araújo e Santi (2019) também afirmam, portanto, que os movimentos sociais são formas poderosas de ação coletiva.

Note de bas de page 1 :

Roraima é o estado mais ao Norte do Brasil, fazendo fronteira com a Venezuela e a Guiana. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), órgão do governo brasileiro, é o menos populoso entre os 26 estados e o Distrito Federal, com população estimada de 652.713 habitantes. Por outro lado, de acordo com o IBGE, concentra a maior população indígena do Brasil, com cerca de 50 mil pessoas.

Partindo desse conceito, desembocamos no movimento indígena, que se encaixa nessas definições. Esse grupo tem defendido causas próprias, mas que impactam na vida de cada cidadão, como é o caso do garimpo, que polui os rios em Roraima1 e coloca em risco a saúde pública. O movimento indígena, acima de tudo, exige garantias previstas na Constituição Federal após anos de lutas. Aliás, uma luta que tem se intensificado e não desaparecido com o tempo. Logo, é um grupo que exige na prática que o dever do Estado de proporcionar tratamento digno aos povos originários seja visível nas comunidades e fora delas.

Note de bas de page 2 :

A Terra Indígena Yanomami foi homologada pelo presidente brasileiro Fernando Collor de Mello em 1992. Com quase 10 milhões de hectares, fica entre os estados de Roraima e Amazonas, na região Norte do Brasil, onde vivem cerca de 30 mil indígenas em mais de 300 comunidades. Segundo a Hutukara Associação Yanomami (HAY), uma das instituições de maior referência de defesa dos povos indígenas no Brasil, os Yanomami se consideram filho de Omama, a quem denominam criador, e falam nove línguas diferentes. Há presença desse povo na Venezuela, entre os rios Orinoco e Amazonas.

Neste artigo, discorremos sobre o movimento indígena como caminho para se alcançar objetivos em comum para benefício da sociedade, além de elucidar seu conceito. Também falaremos da implementação da Saúde Indígena no Brasil e suas ramificações; enalteceremos o direito à saúde dos povos originários e sinalizaremos que isso tem sido deturpado em Roraima, especificamente na Terra Yanomami2, que se tornou assunto da reportagem alvo desta análise. Evidenciaremos a saúde como pauta nos veículos de comunicação, bem como o espaço que a Saúde Indígena conquistou e a necessidade de se ampliar essa cobertura.

Por fim, apresentaremos uma análise da reportagem “Terra Yanomami e o retrato do abandono: desnutrição, surto de malária e frascos de dipirona”, publicada no Portal G1 RR, em novembro de 2021. O objetivo é mostrar como a narrativa jornalística foi constituída e identificar elementos que sinalizem a atuação do movimento indígena, as denúncias da desassistência de saúde aos Yanomami, e outras situações que transbordam da floresta para a imprensa, como forma de clamar por socorro àqueles que dividem espaço, ainda que forçadamente, com garimpeiros e o abandono do Poder Público.

O movimento indígena em Roraima

Os povos indígenas, desde a chegada dos colonizadores (invasores), sofrem maus tratos, trabalhos forçados, confinamentos e sedentarização. Centenas de povos desapareceram com o processo de colonização, onde se destacaram as práticas da escravidão, das chacinas, das guerras, e das epidemias por doenças infecciosas. Desta forma, podemos afirmar que a relação do Estado brasileiro com os povos indígenas sempre foi marcada pelo preconceito e pelo descaso (Altini et. al, 2013: 7).

Garimpo ilegal, falta de assistência médica, demarcação de terras, ataques policiais, e fake news. A luta dos povos indígenas está fincada em diferentes vertentes que, muitas vezes, desembocam do Estado para as comunidades. Isso leva aos atos de resistência, que buscam desmistificar a imagem criada contra os indígenas. O movimento indígena, portanto, tem atuado para cobrar melhorias na Saúde, Educação, Segurança, ao mesmo tempo em que estampam nas ruas palavras de ordens contra as mentiras propagadas sobre eles.

Nas últimas décadas, os direitos dos povos indígenas tornaram-se normas da “ordem política internacional” que cada país precisa colocar em prática (Urquidi; Teixeira; Lana, 2008: 200). Ou seja, falar sobre essa demanda não se restringe a apenas um país, mas, sim, participar de um debate muito mais amplo, como foi a COP26, no ano de 2021. No evento, por exemplo, os indígenas puderam denunciar, em nível global, o desmatamento e o garimpo, como vem ocorrendo na Terra Indígena Yanomami, em Roraima.

Note de bas de page 3 :

A Hutukara Associação Yanomami (HAY) é uma das instituições mais prestigiadas no Brasil em tema de proteção aos indígenas. Foi fundada em 2004, na aldeia Watori, região de Demini. A entidade é composta pela Assembleia Geral, Diretoria e Conselho de Representantes Regionais, e se mantém por meio do apoio de organizações não governamentais. O atual presidente da HAY é Davi Kopenawa, liderança indígena conhecida mundialmente pela sua luta em defesa dos povos originários.

Note de bas de page 4 :

De acordo com o IBGE, há pelos cerca de 900 mil indígenas em todo o Brasil, com destaque para a região Norte, onde vivem quase 40% desse total. O último levantamento feito pelo governo brasileiro, no ano de 2010, indicava 305 etnias e 274 línguas, com destaque para os Tikuna, Guarani Kaiowá, Kaingang, Macuxi e Terena.

Há pelos menos duas décadas os grupos indígenas denunciam a extração ilegal de ouro e a presença, também ilegal, de pelo menos 20 mil garimpeiros na região. Entre abril de 2020 e maio de 2021, uma das mais importantes organizações do movimento indígena em Roraima, a Hutukara Associação Yanomami (HAY3), alertou os órgãos de controle por meio de 14 ofícios sobre a expansão do garimpo ilegal na maior reserva indígena4 do Brasil.

Note de bas de page 5 :

Reportagem do G1 Roraima trouxe uma ordem cronológica de pelo menos nove conflitos. Disponível em: https://www.google.com/amp/s/g1.globo.com/google/amp/rr/roraima/noticia/2021/05/27/relembre/conflitos-recentes-entre-garimpeiros-e-indigenas-na-terra-yanomami.ghtml. Acesso em 4 de dezembro de 2022.

Diferentemente da resposta enérgica que os povos esperavam da União, o governador de Roraima, Antonio Denarium, aprovou, em fevereiro de 2021, uma lei que permitia a atividade garimpeira no estado, o que levou a um aumento na entrada de invasores na Terra Yanomami. Ainda que o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha derrubado a lei quatro meses depois, os reflexos já eram visíveis. Foram dezenas de conflitos armados5 entre os indígenas e garimpeiros, com registro de mortos e feridos.

Durante esse tempo, diversas organizações de defesa dos povos indígenas provocaram o STF e cobraram uma resposta rápida contra o Estado. As entidades buscavam preservar o direito das comunidades por intervenção do Judiciário, tendo em vista a demora na atuação do Governo Federal, responsável pelas regiões. Em maio de 2020, o ministro relator da ação, Luís Roberto Barroso, disse que o governo agia sem transparência e protelava em garantir atendimento de saúde e vacinação contra a Covid-19 nos indígenas.

Note de bas de page 6 :

Os Ye’kuanna são indígenas que estão majoritariamente concentrados na Venezuela. Contudo, um pequeno grupo da etnia vive em Roraima, na Terra Indígena Yanomami. Por isso, eles também são representados pelo Conselho de Saúde Indígena. Os Ye’kuanna fazem roças para produção do próprio alimento e limitam que as comunidades tenham até 500 habitantes (SILVA; BETHONICO, 2010).

À época, ele determinou que o governo retirasse os garimpeiros da região e adotasse todas as medidas de proteção aos povos indígenas. Mesmo assim, após diversas operações da Polícia Federal, em parceria com outros órgãos, a Hutukara e o Conselho de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuanna6 continuaram denunciando não apenas as consequências do garimpo ilegal, que provocou agravamento nos casos de malária e Covid-19, mas também a desnutrição das crianças na região. Percebe-se, assim, que as organizações do movimento indígena são cruciais para que as demandas ganhem espaço principalmente na mídia, onde se escancara à audiência as mazelas sofridas na reserva.

Jesús Martín-Barbero (1987) escreve que os indígenas são símbolo de resistência. Para o autor, as comunidades são o que restou de puro depois de os colonizadores invadirem as terras e deturparem as crenças e culturas indígenas. Resistir, neste contexto, seria a forma originária de não se deixar convencer pelo invasor de que as práticas indígenas precisam ser mudadas, de que as riquezas têm que ser exploradas em nome do progresso, e para exigir direitos básicos, como saúde e educação. A resistência, portanto, faz parte do movimento criado pelos indígenas para defender as práticas culturais e os territórios.

O movimento Indígena surge como forma de resistência às opostas políticas de interesses capitalistas, formando-se um movimento social, para que juntos se mobilizem contra tantos retrocessos impostos historicamente a um povo nato das terras brasileiras. Conforme se observa, a luta de tal movimento constitui numa reparação histórica e a manutenção de poucos direitos adquiridos para que possa se viver com o mínimo de identidade e cultura preservadas (Borges; Riffert; Daniel; Rusczak, 2018: 284).

Dessa forma, os indígenas têm o próprio movimento social em busca de melhorias. Esse ideal comum que é sinalizado por Gohn como uma das características dos movimentos sociais, que são definidos pela autora como:

(...) ações coletivas de caráter sociopolítico, construídas por atores sociais pertencentes a diferentes classes e camadas sociais. Eles politizam suas demandas e criam um campo político de força social na sociedade civil. Suas ações estruturam-se a partir de repertórios criados sobre temas e problemas em situações de conflitos, litígios e disputas (2000: 13).

Segundo a autora, eles não são movidos apenas por interesses em comum, mas por uma identidade comum. Os movimentos sociais foram e são cruciais para o desenvolvimento de qualquer localidade. Alguns exemplos são os negros, as mulheres, e os LGBTQIAP+. Há sempre protestos em busca de trazer à realidade os direitos constitucionais. Eles provocam o setor político para que se atente às necessidades desses grupos. Ilse Scherer-Warren (2008) afirma que o Estado sempre foi uma referência para os movimentos, seja para contestar ou negociar.

Araújo e Santi complementam afirmando que os movimentos sociais:

(...) são formados quando grupos vulneráveis e sem oportunidades políticas, encorajados por líderes ou exemplos de outras reivindicações começam a tomar atitudes, descobrir aliados em suas redes socais e organizar ações a fim de promover mudanças na constituição dos espaços políticos. São essas oportunidades que atraem ações coletivas e estabelecem os repertórios de confronto e enfrentamento próprios de cada movimento (2019: 4).

No caso do movimento indígena no Brasil, Borges e colaboradores (2018:285) escrevem que eles se iniciaram em 1970, “sendo definido por suas lideranças, bem como o conjunto de ideias, estratégias e ações que as comunidades e organizações indígenas desenvolvem em defesa dos seus interesses coletivos”. Desde então, a bandeira defendida pelas comunidades tem sido fortalecida no cenário político e midiático, a fim de que as reivindicações sejam atendidas.

Heck, Loebens e Carvalho (2005: 240) lembram que os indígenas conseguiram que a “Constituição Federal de 1988 assegurasse seus direitos históricos à terra e o reconhecimento de suas organizações sociais. Constituíram variadas formas de articulação e organização para fazer avançar concretamente as conquistas legais”. Nesse sentido, é possível atrelar o movimento indígena de Roraima à busca por melhorias para as comunidades. É sair da zona de sobrevivência e partir para condições dignas de vida, afinal, “falar de movimentos sociais ou de reivindicações por direitos e melhores qualidades de vida são considerados sinônimos” (Araújo; Moura, 2019: 9).

Adentrando no movimento indígena, e traçando um panorama em Roraima, há que relembrar a demarcação da Raposa Serra do Sol. Até que os arrozeiros fossem retirados do local, muito sangue foi derramado e a mão de obra indígena explorada, deixando marcas que transcendem a linha histórica criada a partir da invasão do território até a resposta do Supremo Tribunal Federal. Ramalho (2013) pondera que comunidades na região foram dizimadas à força pelos empresários, fazendo com que muitos indígenas fugissem e outros enfrentassem as invasões.

Nesse contexto, destaca-se o protagonismo do Conselho Indígena de Roraima (CIR), que nasceu em meados de 1970 para defender as causas das comunidades. Com o passar dos anos, a instituição cresceu e se manteve fidedigna às pautas indigenistas, carregando a responsabilidade de falar por grande parte das comunidades.

A atuação das organizações como o CIR possibilitou que as causas indigenistas ganhassem um espaço na política. Em 2018, Roraima elegeu a primeira parlamentar indígena do Brasil, Joenia Wapichana, que passou a representar não apenas os povos do estado, mas todas as etnias do país. A chegada de Joenia ao Congresso simboliza um importante passo rumo à visibilidade de temáticas indigenistas.

Essas manifestações ganharam cada vez mais espaço e elevaram o clima no Congresso Nacional, que decidiu, em 2021, debater o Projeto de Lei (PL) 490. Em síntese, o texto só considera terras indígenas aquelas que já eram habitadas quando a Constituição foi criada em 1988, além de outras mudanças drásticas para as comunidades. Durante as discussões, povos indígenas de diversos estados brasileiros, incluindo Roraima, enviaram para Brasília – capital do Brasil – representantes para participar de um ato de defesa dos direitos dos povos originários.

O movimento indígena também pôde ser observado com maior intensidade na pandemia da Covid-19, quando diversas organizações buscaram refúgio no STF por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)/790. A ação pedia proteção urgente para as comunidades durante a crise sanitária, tendo em vista que não havia protocolo específico para os indígenas, que historicamente são mais vulneráveis que os não-indígenas. As entidades pediam barreiras de proteção, envio de equipamentos e testes para as comunidades. Com a nítida demora, os próprios indígenas decidiram bloquear os acessos às regiões em Roraima para evitar casos da doença.

Em meio a tantas reivindicações, pretendemos mostrar como a presença de garimpeiros e a falta de assistência de saúde do Governo Federal levaram a uma calamidade dentro da Terra Yanomami, que se tornou reportagem no G1 Roraima e no Fantástico, da Rede Globo. É o direito à saúde, garantido na Constituição, sendo deturpado pelo Estado. Desnutrição, malária e falta de infraestrutura são algumas das denúncias evidenciadas pelo portal de notícias, alvo dessa análise.

Direito à Saúde entregue ao esquecimento

O garimpo ilegal é, atualmente, o fator primordial para conflitos e doenças na Terra Yanomami, que tem mais de 9 milhões de hectares entre os estados de Roraima e Amazonas, e abriga aproximadamente 27 mil indígenas, alguns deles de recente contato, que já sofrem consequência da atividade mineradora. Durante os anos de 2020 e 2021, dois primeiros anos da pandemia, a região apresentou um aumento expressivo de casos de Covid-19 e malária, atribuídos, em sua grande maioria, à entrada de invasores na terra.

Sabe-se que o garimpo afeta profundamente os ecossistemas aquáticos, aumentando a turbidez das águas e diminuindo sua piscosidade, além de problemas de contaminação e poluição. A presença garimpeira afeta também a fauna e a saúde das comunidades indígenas, sem resistência epidemiológica às doenças exógenas. Os Yanomami, ao se apoderarem da escrita produziram vários documentos em que atestam seu repúdio ao garimpo em suas terras, denunciando-os, lembrando às autoridades os problemas ambientais e sanitários causados pela atividade garimpeira na Terra Yanomami (Nilsson, 2008: 34).

Antes de tudo, é preciso compreender que o fluxo de garimpeiros ilegais na localidade só ocorre devido à falta de política de segurança. Mesmo com as operações da Polícia Federal, a curva de exploração só cresce, chegando a injetar milhões na economia roraimense, sem, sequer, ter uma autorização para a atividade. Além disso, as devastações do meio ambiente já podem ser vistas a olho nu, seja a coloração do Rio Branco, principal afluente de Roraima, ou as imagens aéreas do desflorestamento.

De mãos dadas com essa presença ilegal está a falta de assistência de saúde, garantida na Constituição e de responsabilidade do Governo Federal. O cuidado com os indígenas começou em 1910, quando o Serviço de Proteção ao Índio e Trabalhadores Nacionais era encarregado dessa demanda. Com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1990, transferiu-se a responsabilidade para a Fundação Nacional de Saúde (Funasa).

Em 1999, criou-se o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (Lei Arouca), composto pelos Distritos Sanitários Especiais de Saúde Indígenas (Dsei’s), implementados pelo Brasil. Com orçamento e pessoal, esses 34 órgãos devem dar conta das necessidades das comunidades, contratando profissionais para as aldeias e respeitando as diferenças culturais dos 755 mil indígenas.

Em outubro de 2010, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto que criou a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde, que herdou o trabalho da Funasa. Essa mudança surgiu após cobrança do movimento indígena e representava um avanço na Saúde, pois descentralizava o trabalho da Funasa para o Ministério da Saúde, dando autonomia para os Distritos Sanitários. “Esse processo foi marcado por uma ampla participação de representantes da população indígena e por várias rodadas de negociação, tornando-se um marco histórico para a assistência à saúde indígena” (Ferreira; Portillo; Nascimento, 2013: 84).

Assim, o direito à saúde não foi dado pelo governo brasileiro, mas conquistado pelos povos indígenas depois de lutas travadas pelo movimento. “Nesse processo destacou-se o protagonismo indígena, que acabou por pautar as discussões com o governo, gerando lições importantes para o SUS sobre a participação dos usuários na construção de políticas públicas” (Ferreira; Portillo; Nascimento, 2013:93). Não se pode avaliar que essa garantia é um favor às comunidades, mas um reconhecimento às diferenças daqueles que já habitavam o território brasileiro quando ele foi “descoberto” pelos portugueses. A saúde, que simboliza um direito à vida, precisa ser resguardada, principalmente em meio a uma crise sanitária, como ocorre com a pandemia da Covid-19. Negligenciar essa assistência pode ser considerado crime.

Roraima possui dois Distritos de Saúde Indígena: o Dsei-Leste e o Dsei-Yanomami, justamente por atuarem com povos de culturas distintas. O primeiro representa cerca de 50 mil indígenas, enquanto o segundo beira os 30 mil. Eles possuem recursos para serem aplicados em melhorias da saúde. Contudo, o que se observa é que o dinheiro público não chega a quem precisa. A solução, às vezes, é unir os próprios indígenas para construir um posto médico no meio da reserva. Esses pequenos reflexos reforçam que as instituições públicas estão longe de atuar com qualidade junto aos povos indígenas.

Garnelo (2012) destaca que, ao criar a Saúde Indígena, o Estado imaginava que as populações indígenas desapareceriam com o tempo, não precisando mais de atendimento diferenciado por causa da cultura. Contudo, a autora afirma que, com o passar dos anos, essa ideia se mostrou totalmente infundada, já que as populações cresceram e intensificaram as reivindicações por direitos ligados à diferenciação étnica, levando, inclusive, a um rompimento dos indígenas com o governo.

As tensões entre o movimento indígena e o governo federal já haviam tido um momento de agudização na comemoração dos 500 anos de descoberta do Brasil, no ano 2000, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso. Nesta ocasião, o poder público reprimiu violentamente os protestos indígenas pela comemoração da descoberta que inaugurou o processo colonizatório que destruiu muitos povos indígenas após a chegada dos portugueses na costa brasileira. O conflito selou o afastamento definitivo de grande parte das entidades indígenas com o poder central (Garnelo, 2012: 44).

Essa relação conturbada entre o movimento indígena e o governo perdura no tempo devido às cobranças das lideranças. Ligados aos Distritos Indígenas estão outros três setores responsáveis por fiscalizar a atuação do governo: os Conselhos Locais de Saúde Indígena (CLSI), Conselhos Distritais de Saúde Indígena (CONDISI) e Fórum de Presidentes de Conselhos Distritais de Saúde Indígena (FPCONDISI). Segundo o Governo Federal, o primeiro se manifesta e acompanha as ações e serviços de atenção à saúde e situações ambientais. O segundo fiscaliza, debate e apresenta políticas para fortalecimento da saúde. Já o último tem caráter consultivo e atua para melhoria das ações voltadas para as comunidades.

Fernandes e colaboradores (2020: 47) dizem que quando “uma notícia de violação de direitos é publicada, imediatamente é identificada uma notícia de resistência e de denúncia indígena ou, em algumas situações, são concomitantes”. Além de ser uma prova, um documento, um registro, e um mural de memórias, o jornalismo é a vitrine de exposição que tem força suficiente para mudar ou ao menos provocar reflexões de mudanças no meio social. Uma notícia não se resume a um fato, mas está inteiramente ligada a uma história de luta, resistência, representatividade, significados, busca e desejos. Logo, falar de saúde indígena na imprensa é chamar atenção para situações gravíssimas, que cobram atitudes rápidas e eficazes.

O retrato da saúde indígena na imprensa: lacunas a serem preenchidas

Xavier (2008) lembra que falar de saúde na mídia sempre mostrou as desigualdades sociais; no que diz respeito ao acesso aos meios de comunicação, principalmente no campo da internet – já que muitos não têm acesso ao aparato técnico e tem, muitas vezes, apenas a televisão ou o rádio como canal de informação. Dessa forma, a desigualdade perpassa por campos como a saúde, educação, segurança e comunicação. São gargalos difíceis de serem sanados, tendo em vista o desinteresse pelo assunto por parte das autoridades competentes.

Quando discutimos esse contexto, tendo como personagens os indígenas, a situação é ainda mais delicada. O acesso às informações é ainda mais limitado. A comunicação da floresta para a cidade ocorre, muitas vezes, apenas por radiofonia. Como trazer os problemas da comunidade para a imprensa? É nesse cruzamento de funções sociais que o movimento indígena volta a ter destaque, pois ele é o elo, por meio de suas organizações, com a mídia. Logo, o movimento assume outra responsabilidade: a de pautar os veículos de comunicação com as questões de saúde na Terra Yanomami.

O jornalismo se torna espaço para falar de saúde indígena, especialmente a Yanomami, devido ao aparato público que existe por trás dela. Em outras palavras, escrever sobre a situação da saúde indígena é um reforço às causas indigenistas. Isso significa trabalhar a partir de fatos verídicos em busca de uma resposta para os problemas que assombram as comunidades indígenas. Isso faz parte do posicionamento que se espera do jornalismo enquanto representante social.

Pensar a relação entre a saúde indígena e a imprensa no Brasil inclui contextualizar o tema inserido em uma complexa rede que abarca a luta dos movimentos indígenas e religiosos pela demarcação das terras indígenas, a expansão e o lucro do agronegócio e da mineração em terras indígenas, as organizações não governamentais (ONGs) e, ainda, a saúde como um direito preconizado pela Constituição Federal de 1988 (Figueiredo; Moura, 2013: 71).

Ao trazer ao cotidiano jornalístico pautas relacionadas a esse tema, o jornalismo deixa de trabalhar apenas com fontes oficiais e passa a ouvir o relato de quem está na outra ponta, e busca resposta para cenas deploráveis em meio à floresta. Mais do que isso: desperta uma cobrança ainda maior dos órgãos de controle e entidades nacionais e internacionais.

Análise de uma reportagem especial sobre as consequências do garimpo e o abandono da saúde na Terra Yanomami

Note de bas de page 7 :

Reportagem completa: https://g1.globo.com/google/amp/rr/roraima/noticia/2021/11/14/terra-yanomami-e-o-retrato-do-abandono-desnutricao-surto-de-malaria-e-frascos-de-dipirona.ghtml.

Em novembro de 2021, o portal de notícias G1 Roraima, vinculado às Organizações Globo, publicou uma reportagem especial sobre a precariedade na saúde na maior reserva indígena do Brasil. Intitulada “Terra Yanomami e o retrato do abandono: desnutrição, surto de malária e frascos de dipirona”7, a matéria jornalística foi escolhida por alguns aspectos, sendo os dois principais a exclusividade do conteúdo e, principalmente, o deslocamento da equipe do veículo de comunicação para as comunidades. Essa última condicionante, sem dúvida, trouxe elementos que enriqueceram o material e deu ainda mais valor ao que foi publicado.

De maneira geral, a reportagem se divide em dois núcleos que se entrelaçam e se complementam: a Saúde Indígena, que se ramifica para os casos de malária, Covid-19 e a desnutrição infantil; e o garimpo ilegal, uma realidade que provoca impactos ambientais na região. A reportagem traz relatos coletados durante quatro dias em que a equipe de reportagem esteve na região. São pessoas que vivem em um isolamento rompido pela ganância de quem enxerga apenas as riquezas naturais de um lugar carregado de história, simbolismo, significado, representação e cultura.

Para ajudar nesta etapa do estudo, utilizamos o conceito de análise de conteúdo, defendido por alguns autores para pesquisas de cunho qualitativo. Bardin define a análise de conteúdo como:

um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando a obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo de mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) dessas mensagens (1997: 42).

Sampaio e Lycarião (2021) defendem uma definição ainda mais ampla, que abarca situações qualitativas. Para os autores, a análise não se resume apenas a números, mas pode contribuir com conclusões ainda mais profundas sobre determinado assunto. Eles afirmam que a análise de conteúdo busca “descrever, quantificar ou interpretar certo fenômeno em termos de seus significados, intenções, consequências ou contextos” (Sampaio; Lycarião, 2021: 17). Dessa forma, acreditamos que a técnica será válida para interpretar e detalhar elementos na reportagem do G1 Roraima que contribuam para uma reflexão sobre a Saúde Indígena na mídia.

Destaco ainda que o Fantástico, um dos programas de maior audiência da TV Globo, também esteve na região na mesma época para acompanhar as denúncias voltadas à Saúde Indígena. A emissora veiculou uma reportagem especial em horário nobre, mas não ampliarei a análise para este outro produto jornalístico.

Baseado em Motta (2007), Bruner (2002) e Dalmonte (2009), que interpretam a narrativa como o relato de uma sequência de eventos, entendo por narrativa jornalística a transmissão de um fato para o público. Isso pode ocorrer de diferentes formas: textos para sites de notícias, para narração no rádio, para off na televisão, informações lidas pelos apresentadores, fotos nas matérias, vídeos reproduzidos. A narrativa é jornalística justamente por passar por essa variabilidade de manifestação e não perder o compromisso com a verdade e se adequando à melhor forma de informar o público de determinado veículo de comunicação.

Nosso estudo parte de uma análise da narrativa textual, começando pelo título e se destrinchando em alguns tópicos referentes à Saúde Indígena: Malária, Desnutrição, Infraestrutura e Garimpo, cada um com trechos extraídos da reportagem.

● Em termos numéricos, a reportagem se estende por 86 parágrafos divididos em 8 subtítulos. São apresentados hiperlikns que direcionam para outras matérias do portal de notícias. Ao extenso texto foram acrescentados: dois vídeos, dois gifs, três infográficos, 14 fotos, e um podcast. “Abandono”

O título da matéria “Terra Yanomami e o retrato do abandono: desnutrição, surto de malária e frascos de dipirona” resume bem a reportagem escrita pelos jornalistas Valéria Oliveira e Alexandre Hisayasu. Contudo, o portal utiliza um termo forte para chamar atenção dos leitores: abandono. A palavra já prenuncia o que a equipe encontrou na reserva. O termo carrega uma crítica velada ao Governo Federal, responsável pela Saúde Indígena. O título também deixa claro o vínculo da terra indígena com o retrato do abandono.

De acordo com o dicionário Oxford Languages, abandonar é sinônimo de negligenciar e afastar. Ao utilizar esse termo, o veículo também deixa explícito que a intenção é de revelar o descaso com a Saúde Indígena dentro da reserva, o que indica, em termos velados, uma impressão dos próprios jornalistas, a partir da experiência que tiveram junto às comunidades.

Os frascos de dipirona também podem ser interpretados como críticas ao Governo Federal, pois os termos induzem o leitor a pensar sobre a falta de medicamentos para tratar doenças mais graves, como é o caso da malária e da desnutrição, que também estão expostas na abertura da reportagem. Ao finalizarem o título com a indicação do medicamento, os jornalistas tentam transmitir que a única coisa que encontraram em meio ao surto de doenças e quadros clínicos gravíssimos das crianças foram frascos de dipirona. Com isso, os problemas com os quais se deparou a equipe são levados para o receptor e se deslocam “para o processo de produção de significados” (Dantas, 2008: 26).

É nesse processo que o título de uma matéria é extremamente importante. Ele representa o gancho para os leitores, ou seja, é através do que ele expõe que a atenção das pessoas será acionada. O título “vende” a matéria e define se ela será destaque ou não, ele funciona como uma vitrine do texto (Dittrich, 2006). O autor acrescenta que criar um título exige racionalidade e objetividade, pois cobra a capacidade intuitiva do jornalista para sacar o que seduz o leitor.

Os títulos exploram a característica simultaneamente expressiva e argumentativa das expressões linguísticas, sejam elas verbais ou nominais: procuram impressionar o leitor a ponto de estimulá-lo a se interessar pelo conteúdo da reportagem e, ao mesmo tempo, contribuem com o texto no sentido de condensar sua perspectiva (subjacente ou explícita) em relação ao assunto abordado (Dittrich, 2006: 22).

● O título construído extrai elementos significativos do conteúdo e se expressa por termos assertivos capazes de anunciar os reais cenários que serão lidos e vistos na reportagem. Malária

No meio da selva amazônica, duas mães Yanomami com os filhos pequenos no colo deixam a comunidade Macuxi Yano em direção aonde viram um helicóptero seguir. Debaixo do sol forte, elas remam em uma canoa por duas horas, em busca de ajuda para as crianças, que ardem em febre. O esforço, porém, é em vão: quando chegam na comunidade Xaruna, o helicóptero que poderia levá-los ao posto de saúde em Surucucu já tinha partido. Encontram apenas um técnico de enfermagem munido de frascos de dipirona, xarope para tosse e uma balança. Era a primeira visita de um profissional de saúde no local em cerca de dois anos. Desoladas, as duas mães não escondem a angústia. Uma delas chora. Se de helicóptero a ida até o posto levaria 25 minutos, a pé, são 15 dias de caminhada pela floresta (Oliveira; Hisayasu, 2021).

A reportagem inicia com o termo “selva amazônica”, um reforço de estereótipo criado na época da colonização, espelhado pelo tempo e a mídia. Falar de selva remete aos primitivos que habitavam a região quando os “descobridores” chegaram à Amazônia. O termo selva remete ao que é selvagem, não civilizado. Ao utilizar “no meio da selva”, a narrativa recria, no imaginário de quem lê, a ideia de que a vida na floresta não acompanhou as mudanças fora dela, contribui para anular as discussões amplas e necessárias sobre as diferenças culturais e o próprio direito à saúde, foco da reportagem.

Essa espetacularização, de enxergar a Amazônia como um espaço intocável, exuberante, resumido a belezas naturais, é vista por Lopes e Nogueira (2018:147) como prejudicial para a compreensão da diversidade cultural, ambiental, étnica, social e econômica da região. Isso indica que há uma cortina de fumaça desde a colonização e baseia os discursos constantemente reproduzidos pelos meios de comunicação, “apoiados em clichês culturais e estereótipos”, que causam falsas impressões. Não é à toa que as belezas naturais atraíram e atraem exploradores.

Contudo, outros trechos de parte da abertura da reportagem, grifados por nós, enriquecem a narrativa, que se inicia com a história de duas mães que buscam socorro para os bebês, vítimas de malária. A narrativa é desenvolvida contando a saga das mulheres para socorrerem os filhos. Traça-se, portanto, o perfil do local e dos indígenas lutando para sobreviver.

A inserção de histórias no início de reportagens é uma tática antiga, usada em materiais factuais. Isto é, esse jornalismo de perfil, com a contação de história, busca sensibilizar o leitor em causas mais específicas, como é o caso da falta de assistência aos indígenas. Histórias de vida trazem relatos importantes de serem compartilhados, principalmente com aqueles que estão fora do contexto apresentado. O propósito é acender no outro o sentimento de solidariedade com a causa e os problemas enfrentados, e, ao mesmo tempo, criar uma identidade próxima entre quem lê e o que se apresenta.

Esse movimento de aproximação desperta sentimentos semelhantes e ainda mais fortes. Diferentemente da cidade, onde a falta de remédios pode ser solucionada com uma ida à farmácia ou ir a clínicas particulares em carro ou moto, isso não é possível quando o recorte é feito dentro de uma floresta, onde o meio de transporte é barco, avião ou a pé. Ou seja, o peso do relato no conteúdo tem uma função mais profunda que apenas falar; busca despertar no público os mesmos sentimentos de quem peleja para sobreviver: é refletir sobre o desrespeito, o descaso e a irresponsabilidade para com a vida de milhares de pessoas.

Isso fica evidente nos termos “sob forte sol”, “ardem em febre”, “desoladas” e “angústia”, pois são expressões que dão sentido ainda mais real à narrativa que está sendo exposta. Esses detalhes são semeados no imaginário do leitor, com intuito de germinar essa sensibilidade, pois mostra o drama das mulheres lutando pela vida dos filhos. Ou seja, traz o amor de mãe, socialmente construído como algo inabalável, como ilustração da saga de quem vive na terra indígena e não tem o mínimo para tratar a doença. Nogueira, Silva e Silva (2019), avaliam que essa narrativa humanizada ajuda a promover a dignidade do sujeito.

Partindo desta argumentação, fica evidente quão relevante é a prática jornalística ao construir sua narrativa de forma humanizada, pois o olhar sensível, porém objetivo, do repórter, consegue não somente informar, mas dar voz ao “sujeito” inserido em uma sociedade tão diversificada. Diante disto faz-se necessário uma atitude sensível do jornalista, para que o profissional, ao narrar fatos do cotidiano, não incorra na falha de promover o acontecimento ao invés de dignificar a pessoa (Nogueira; Silva; Silva, 2019: 3-4).

Os jornalistas também indicam nesse início de reportagem que, em meio à falta de transporte, infraestrutura, crianças doentes, desespero e angústia, não havia de médicos nos últimos dois anos, e que o encontro do enfermeiro com as mulheres representa uma superficial tentativa de sobrevivência por meio de dipirona e xarope. Logo, a conclusão que se tira é que os indígenas estão entregues à própria sorte e o Estado descumprindo a obrigação constitucional.

A narrativa continua expondo detalhes do barracão de madeira de chão batido, que é o posto de saúde na região de Surucucu. O texto crava a expressão “estrutura precária”, traz a informação de que mais indígenas aguardam por atendimento, e diz que um pajé morreu dias antes. Só depois de expor todo esse cenário de desolação é que os jornalistas expõem que isso reflete a “precariedade na assistência de saúde”, e sinaliza a desnutrição e o garimpo. Isto é, a reportagem traz uma enxurrada de problemas na Saúde Indígena a partir do que se presenciou nas comunidades. O texto direciona a leitura para cenas que simbolizam o esquecimento de quem tem direito a viver dignamente na Terra Yanomami, e faz uma espécie de trocadilho para exemplificar as dificuldades: a reserva Yanomami, a maior do país, enfrenta problemas tão grandes quanto a sua extensão territorial(Oliveira; Hisayasu, 2020).

Na sequência, a reportagem traz uma informação extremamente importante: a confissão de que a viagem para a terra ocorreu a partir de organizações do movimento indígena. A viagem foi feita a convite do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye'kuana (Condisi-YY), em Boa Vista, e teve o apoio do Greenpeace, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e da Hutukara Associação Yanomami” (Oliveira; Hisayasu, 2021). Isso confirma que as causas indigenistas também estão chegando à imprensa a partir da mobilização do movimento, que busca espaço para potencializar as demandas.

São citadas duas organizações diretamente ligadas ao movimento, a Hutukara e a Coiab, além do Conselho Yanomami, que se caracteriza como órgão oficial, mas atua denunciando as situações de precariedade. O Greenpeace, reconhecido internacionalmente pela atuação favorável ao meio ambiente e outras causas, reforça a representatividade que a expedição à reserva tem. Logo, o movimento ressurge como protagonista para efetivação do especial jornalístico. Por isso, é preciso enxergar a reportagem não só pelo viés comunicacional, mas pelo ângulo da resistência e da luta que mira melhorias e respeito aos povos indígenas.

O portal também trouxe para a matéria uma fala do procurador do Ministério Público Federal (MPF), Alisson Marugal, que enaltece o trabalho da imprensa. Além disso, as declarações vão na mesma linha da narrativa, na intenção de colocar os indígenas em posição de vulnerabilidade. Vale ressaltar que, para isso, os jornalistas utilizam, por exemplo, o advérbio de intensidade “extremamente” quando se referem à magreza das crianças. A fala do procurador foi a seguinte: são imagens chocantes e demonstram muito bem a realidade vivida pelo povo Yanomami. São imagens que não conseguimos observar por documentos, relatórios. Só o trabalho da imprensa consegue revelar o que acontece no interior da floresta. Os Yanomami estão sozinhos e invisibilizados (Oliveira; Hisayasu, 2021).

Vejamos, pois, que uma fonte oficial reconhece que há falhas até mesmo das instituições públicas, ao relatar que, sequer, há um deslocamento do ministério para acompanhar o caso, e que analisam as demandas apenas por documentos e relatórios. Esse indicativo de falha grave só transparece quando a imprensa, provocada pelo movimento indígena, cobra dos órgãos de fiscalização um posicionamento sobre o cenário de abandono encontrado no interior da maior reserva indígena do país. Portanto, mais uma vez, ressalta-se o indispensável trabalho da mídia para se chegar onde o governo e as instituições não vão.

É nesse sentido que se pode dizer que todo produto jornalístico (seja ele voltado ao campo cultural, econômico ou político) “trafica” e publiciza imagens da realidade social, à medida que o mesmo é identificado, consumido e apropriado pelo público. Ao estabelecer uma (inter) conexão com o mundo, o produto jornalístico presentifica a simultaneidade de uma enorme variedade de fenômenos, desenhando um mapa do universo social onde são recortados os acontecimentos noticiados pela mídia. Esse ato de produção social imaginária (e, pois, histórica) capacita o indivíduo a projetar novas relações e compreensões, possibilitando – pelo olhar singular do acontecimento pautado e discursivamente estruturado – outras noções da realidade, materializadas em uma forma de produção singular do conhecimento humano (Gadini, 2007: 88).

O jornalismo, neste caso, deixa o conforto da redação e vai in loco averiguar o relato trazido anteriormente pelas lideranças à frente do movimento. Isso reitera a diferença entre ouvir e narrar, e observar, ouvir e narrar. A imersão no ambiente indígena, sem dúvida, trouxe características e elementos narrativos que diferem de materiais publicados anteriormente pelo portal, já que os jornalistas conheceram a dinâmica social pelos poros da pele (Rovida, 2016). O incremento do texto a partir da vivência pessoal dos repórteres permite constituir uma narrativa mais ampla e detalhada do caos na Saúde Indígena, o que torna a credibilidade da reportagem ainda maior, tornando-a mais visada pelo público. “Essa interação criadora é inspiração para a elaboração de narrativas que, a posteriori, colocarão mais um ator social nessa dinâmica: o público fruidor da informação” (Rovida, 2016: 290)

Em seguida à fala do procurador, a reportagem traz a fala do presidente do Conselho Yanomami, Júnior Hekurari, que acrescenta: “a saúde Yanomami está em colapso” (Oliveira; Hisayasu, 2021). Para confrontar esse posicionamento, os jornalistas trazem na sequência a fala do coordenador do Dsei, Rômulo Amorim, que, segundo a reportagem “minimiza a situação”, ao afirmar que “não é uma realidade em toda a reserva”. Eis, assim, a importância de ter ido a campo avaliar a situação, que, agora, serve para desconstruir as informações da fonte oficial.

Desnutrição

Na comunidade Xaruna, onde há cerca de 150 pessoas, ao menos 30 crianças desnutridas, com costelas visíveis sob a pele, também carregam no corpo franzino sintomas da malária: febre alta, anemia e calafrios, além de verminose (Oliveira; Hisayasu, 2021).

Acredito que a parte do texto destinada à desnutrição infantil contém elementos que reforçam a tentativa de sensibilização do público. Falar de crianças sempre desperta sentimentos genuínos, pois a imagem socialmente construída no entorno delas é de inocência e de projeção de futuro. “A criança é tida como um ser bom por natureza, e a infância é narrada como um tempo mágico, só de alegrias, um paraíso [...] A infância seria o tempo da inocência, da pureza, da ingenuidade, da verdade e da bondade” (Tosatto, Portilho, 2014: 157).

Logo, quando os jornalistas inserem esses meninos e meninas indígenas no cerne de um problema gravíssimo, como é a desnutrição, a reportagem arrisca despertar um lado ainda mais indignante de quem lê o texto, e traça um plano de instigar as famílias com um questionamento nas entrelinhas: e se fosse o seu filho? Novamente, os comunicadores deslocam, veladamente, alguns resquícios do “eu”, defendido por Barthes (2011) como parte essencial da narrativa. No caso do jornalismo, em que a opinião não pode ser escancarada na matéria, o portal deixa escapar termos, expressões e advérbios que indicam uma perspectiva pessoal de quem a escreve.

A reportagem, no entanto, falha ao apresentar de maneira superficial as causas da desnutrição. As frases empregadas à narrativa levam a entender que o quadro está associado à malária e ao garimpo, mas não detalha de que forma esses fatores contribuem para agravar a desnutrição das crianças. Não há um discurso de um profissional de saúde, por exemplo, que avaliasse as imagens e justificasse de que maneira a malária pode estar associada a esse quadro, bem como o garimpo.

Em outro momento, a narrativa mostra-se humanizada, mas apelativa, ao usar, continuamente, os advérbios de intensidade, como “enorme tristeza” e “muito, muito, muito”. Mesmo assim, os adjetivos e a forma como o texto se desenvolve retomam a humanização e a sensibilidade. Isso fica explícito em parágrafos como o a seguir:

Arlete carrega no olhar a descrença por ver, dia após dia, a saúde dos filhos piorar e não ter a quem recorrer. No rosto, a tinta preta simboliza o luto das mães das duas crianças que morreram recentemente na comunidade” (Oliveira; Hisayasu, 2021).

Observando ainda mais a fundo, ao referenciar o rosto pintado, a reportagem engrandece um aspecto cultural da etnia Yanomami e o usa para reiterar a denúncia do desalento na terra indígena. Essa citação à diferença no luto não pode ser interpretada como um aspecto de exclusão, mas, sim, a um vínculo mais profundo de reconhecimento à cultura dos povos originários, uma manifestação de dor, que difere na forma de ser exposta; porém, com o mesmo peso de perda, alicerçado no abandono e na resistência. Contudo, esse é um dos poucos fragmentos na reportagem que indica um elemento cultural da etnia.

Felippi (2006) escreve que o jornalismo é importante para reproduzir essas formas de manifestação cultural, pois as identidades, como a tinta no rosto da mulher indígena, indicam pertencimento étnico, racial e linguístico. “São nossa identificação com determinados conjuntos de significados compartilhados por um coletivo. E podemos compartilhar de vários desses conjuntos ou sistemas classificatórios” (Felippi, 2006: 12). O fato de haver esse registro do portal, o contato entre o jornalista e a fonte, já simboliza um compartilhamento de realidades que contribui para a propagação de uma cultura, assim como uma reflexão sobre as diferenças.

Não menos importante, a menção cultural ocorre na sequência à falta de assistência de saúde, quando o portal relata que as mulheres não têm a quem recorrer. Essa declaração sobre não ter direcionamento é reafirmada em outros trechos como, por exemplo, no depoimento do líder de Xaruna, Pedrinho Yanomami:“Como posso ajudar minha comunidade? A quem posso recorrer? Fico olhando as pessoas doentes e me pergunto se há como melhorar” (Oliveira; Hisayasu, 2021).

Ainda tratando da desnutrição, o veículo aponta que na comunidade Xaruna não há equipe de saúde há pelo menos um ano. Na sequência, observa-se uma narrativa que resgata situações do passado para sustentar que, na mesma localidade, já foram registradas mortes devido ao garimpo ilegal. Ou seja, a temporalidade, como citada anteriormente, aparece neste contexto de forma evidente, para enxertar o texto e reforçar que a região enfrenta problemas há mais tempo. Almeida escreve que a “representação do tempo nas narrativas jornalísticas está atrelada à cobertura dos acontecimentos em determinados contextos e épocas” (2018:16).

Na mesma localidade, em junho do ano passado, dois jovens indígenas, de 20 e 24 anos, foram assassinados a tiros por garimpeiros. Além disso, na mesma região, dois meninos, de 4 e 5 anos, morreram ao serem sugados por uma draga usada no garimpo ilegal. Eles eram primos e sumiram na água turva de lama do rio Parima. Os corpos só foram encontrados depois (Oliveira; Hisayasu, 2021).

No caso em questão, a temporalidade se manifesta para costurar uma linha do tempo entre problemas e suas causas. Aliás, esse retorno na cronologia do tempo também é possível graças à imprensa. Em tese, somos parte da História e ajudamos na construção dela própria, por meio de testemunhos, fotos, vídeos e textos. As matérias são uma espécie de museu social, “o jornalismo é uma parte central da memória coletiva [...] Não há no período moderno, memória coletiva ou cultura que não seja em parte, pelo menos, jornalística” (Barbosa; Gerk, 2018: 165).

Pode-se destacar que a reportagem utiliza dados do próprio Governo Federal - fonte oficial - para assegurar os casos de desnutrição. Os números, ainda que desatualizados, indicam um panorama drástico entre as crianças. A utilização de informações oficiais induz o leitor a refletir sobre o fato de que o Estado tem conhecimento de causa, mas não cria soluções..

Infraestrutura

“Com muitas ripas de madeira empenadas pela umidade e sol, as paredes da enfermaria de Surucucu têm frestas em vários pontos. No chão do barracão, uma fogueira ainda termina de arder em meio a cinzas, folhas, poeira e sujeira” (Oliveira; Hisayasu, 2021).

A matéria também traz outra questão ligada à saúde: a falta de infraestrutura. Neste trecho os jornalistas adotam uma linguagem mais literária para falar sobre as condições do que seria um posto de saúde. Martín-Barbero (1997), faz um aparato histórico para situar como os folhetins do século XIX utilizavam linguagem literária para criar narrativas que levavam os fatos até os leitores.

Devido a essa construção histórica entorno do jornalismo há uma tendência em misturar a linguagem jornalística com a literária, criando, assim, narrativas para reportar os fatos do cotidiano. Dalmonte (2009) escreve que essa relação pode ser observada de vários ângulos, desde a simples contação de histórias até a seleção de personagens, artifícios comumente usados pelo jornalismo, emprestados da literatura. “A principal contribuição da literatura aos estudos do jornalismo, sem dúvida, é a própria tradição dos estudos literários, tanto longa quanto detalhada e em constante renovação” (Dalmonte, 2009: 215). É possível, assim, afirmar que os aspectos literários são vitais para o próprio jornalismo.

Eles também utilizam discursos de profissionais da área para indicar que essa é a melhor estrutura da Terra Yanomami, uma projeção de que a situação é ainda mais grave. Para ressaltar a falha do Poder Público, o portal transcreve o que disse um servidor: “É tudo improvisado, visando salvar vidas” (Oliveira; Hisayasu, 2021). Além disso, volta a citar falta de soro, esparadrapo e medicamento para malária. Essa insistente colocação de elementos sobre a desassistência coloca o governo em posição de vilão e ressalta as dificuldades enfrentadas não só pelos indígenas, mas pelos profissionais de saúde. As consequências do descompromisso da União para com todos ficam evidentes, portanto, do início do texto a suas ramificações.

Importante destacar que a reportagem direciona o foco para a questão indígena, mas deixa em segundo plano, ainda que subentendido, que as falhas também atingem esses profissionais de saúde. Isso pode ser verificado em trechos como: “Eles têm que se desdobrar para atender o fluxo de pacientes e têm que se virar com o que tem de remédio” (Oliveira; Hisayasu, 2021), e o uso do termo “apenas” para se referir ao número de servidores, que retoma a ideia de que eles são impactados pela estrutura precária da saúde. Entretanto, isso não está explícito na narrativa, sendo tratado de maneira superficial, não adentrando mais a fundo sobre os reflexos das denúncias vistas e descritas pelos jornalistas.

A prestação de cuidados de saúde é uma área sensível de atuação uma vez que os profissionais de saúde consistem num grupo de profissionais que por si só constituem um grupo de maior risco, pois estão sujeitos a situações de maior exaustão emocional, lidando diariamente com situações estressantes, tais como a doença ou a própria morte de pacientes (Costa, 2013: 1).

É como se a reportagem anulasse essas preocupações, nem ao menos levantando uma reflexão sobre elas. Outra hipótese é não ter se atentado para as implicações causadas na vida dos servidores, ou ainda não ter espaço na pauta para trabalhar essa outra face do cotidiano na Terra Yanomami, já que o repórter pode “abordar o assunto de maneira que lhe parecer mais correta” (Rossi, 2007:13). Por mais que ele participe da construção da pauta, a experiência externa à redação vai ajudar na constituição da narrativa.

O portal cita que o posto de saúde de Parima estava fechado durante os dias em que a equipe esteve no local, e que essa situação já perdurava por duas semanas. No mesmo trecho da narrativa, os comunicadores usam, desta vez, o advérbio de tempo “constantemente” para exemplificar o fluxo das idas e vindas do helicóptero entre as comunidades e o polo base em Surucucu. O emprego desse tipo de narrativa volta a reforçar que a situação na reserva está praticamente fora de controle e remete a, literalmente, um surto de doenças e outros agravantes provocados por elas. Intensificar a precariedade por meio da narrativa é reforçar a necessidade de uma resposta urgente do Ministério da Saúde.

“Diante de tantos chamados, os profissionais de saúde passam o dia tentando organizar as remoções entre os casos graves e os que podem esperar um pouco mais” (Oliveira; Hisayasu, 2021).

Vejamos, pois, que a narrativa empregada à sentença idealiza o fluxo quase ininterrupto de remoções, ao passo que remete à falta de condições de trabalho e à gravíssima escolha entre quem pode ou não esperar. Esse ordenamento, sem dúvida, pode refletir no agravamento do quadro clínico dos indígenas, pressionando os profissionais a tomarem decisões difíceis. Essa situação poderia ter sido referenciada, de maneira mais profunda, pela ótica dos servidores da Saúde Indígena. Esse incremento não traria prejuízos à matéria, mas somaria às demandas apresentadas pelos Yanomami.

Além disso, a reportagem fala que o chamado por socorro de saúde, às vezes, é feito por garimpeiros; por essa razão, os jornalistas utilizam o tempo “ironicamente”, numa referência ao nível de submissão pelo qual os Yanomami precisam passar para tentar sobreviver em meio à floresta, o que também fica explícito nos discursos dos líderes Mineiro e Nádia: “Estamos sobrevivendo sozinhos”, em alusão à falta de atuação do governo.

Ao dizer que os Yanomami são batizados com nomes, diferentes de suas alcunhas indígenas, pelos profissionais de saúde e garimpeiros, a reportagem levanta uma forte discussão sobre a imposição de cultura dentro da reserva. Explicamos: os indígenas têm a identidade ferida ao não serem chamados pelo próprio nome, um aspecto cultural que precisa ser respeitado pelo Estado. Gomes e colaboradores (2012) defendem que a diversidade de culturas precisa ser conhecida e valorizada pelas pessoas, para que se construa uma relação saudável entre homem e homem, e entre homem e natureza. Os autores acrescentam que é necessário construir diferentes imagens dos povos indígenas brasileiros.

É necessário refletir sobre a forma do olhar indígena, sobre o seu mundo e sobre o que deseja falar ao mundo dos de fora. O que as sociedades indígenas esperam da sociedade envolvente, não é que lhes (re)ensinem suas tradições, nem que os não-índios determinem os traços culturais a serem preservados, pois esta seleção e adaptação só pode ser realizada plenamente pelo próprio grupo indígena. O que elas esperam é o respeito às suas diferenças [...] (Gomes; Aguiar; Alexandre, 2012: 424)

Ao usurpar a possibilidade de o indígena ser reconhecido pelos órgãos de saúde pelo nome dado no âmbito da convivência familiar e social na comunidade, há um mecanismo de “facilitação” de registro, o que precisa ser repensado pelo Distrito Yanomami. Isso pode indicar, por exemplo, falta de políticas públicas para lidar com as diferenças culturais, que são perceptíveis em diferentes aspectos, inclusive o nome indígena.

Garimpo

Em contraste com a dura realidade enfrentada pelos Yanomami, garimpos dentro da reserva contam com estrutura de TV a cabo, internet, energia elétrica, locais de prostituição e até mercados - e avançam como se fossem minicidades no meio da floresta(Oliveira; Hisayasu, 2021).

O especial do portal de notícias desenha, em toda a extensão narrativa, que uma das causas mais definitivas para todos os problemas apresentados na Terra Yanomami é o garimpo. O texto traz uma ruptura de realidades na reserva. De um lado estão garimpeiros que vivem tranquilamente a mordomia garantida pela extração ilegal das riquezas naturais da floresta, e do outro o povo legítimo e dono da terra sendo massacrado por essa atividade.

Temos, portanto, duas ações distintas do Estado: a de não atuar para proteger os indígenas, tanto do garimpo quanto dos problemas de saúde, e a outra de inércia no que diz respeito a coibir que a ilegalidade e as minicidades continuem fazendo parte do cotidiano do povo Yanomami.

Logo, a narrativa desemboca sobre quem deveria ser defendido e por quem deveria ser punido pelo Estado. E a culpabilização do garimpo é selada no fim da reportagem após inúmeros indicativos na reportagem sobre a exploração: a fala das lideranças, do promotor e até mesmo do Distrito de Saúde Yanomami, que segundo os jornalistas atribuíram à atividade os problemas reportados. Essa confissão é extremamente grave, pois revela que a garimpagem se tornou comum na reserva e o Estado falha em não a impedir. Outra vez, a narrativa reprime, ainda que nas entrelinhas, a atuação do governo.

Para Motta (2007), essa indução narrativa ajuda a entender o objeto que está sendo narrado. Ele afirma que a remontagem da história ajuda a observar a fundo as significações que modificam o objeto observado. “À medida que se remonta a intriga reconstrói-se o objeto. O ato analítico em curso é uma interpretação reflexiva, uma experiência em si mesmo” (Motta, 2007: 5). Isto é, o processo narratológico traz detalhes presenciados pelos comunicadores, que ajudam na constituição da narrativa, reafirmando, a cada trecho, que o garimpo é causador dos problemas de saúde.

Como já sinalizado, no texto há pelo menos sete menções diretas ao garimpo como causador da desestruturação na Terra Yanomami. Existe, assim, uma tendência narrativa em tornar o garimpo o alvo das denúncias em questão. Isso é mais forte que as demandas de saúde, afinal, elas só existem porque, segundo se extrai da reportagem, os garimpeiros estão na região. Dessa forma, o texto de Oliveira e Hisayasu (2021) sugere que a saída mais viável seria a retirada dos invasores, perspectiva realçada em vários trechos do especial jornalístico:

  1. “Então, a primeira lição, e a mais básica, para que se garanta a proteção à vida e à saúde, é a retirada como um todo do garimpo na Terra Yanomami”.

  2. “[...] a situação dos indígenas reflete uma dura luta pela sobrevivência frente à maneira deliberada como o garimpo avança”.

  3. “A pista de pouso usada pelo Dsei-Y para levar medicamentos e servidores é a mesma usada pelos garimpeiros”.

  4. “A saída para mudar a situação, de acordo com Pohl, seria a retirada do garimpo, causador da desestruturação social [...]”.

A questão que se discute é justamente o garimpo ilegal como canal de destruição do meio ambiente, causador de catástrofes à proteção da biodiversidade, e a razão para tantos problemas de saúde que assolam os Yanomami. Se olharmos para trás, as denúncias envolvendo o garimpo na região não são recentes, mas são colocadas por uma perspectiva nova na imprensa, através de imagens inéditas e o deslocamento do veículo de comunicação para a Terra Yanomami.

A narrativa apresentada por Oliveira e Hisayasu (2021) também traz lapsos temporais, ao relembrar, em alguns parágrafos, notícias envolvendo o garimpo ilegal. Exemplo disso é o seguinte parágrafo:

Foi na região de Surucucu que, no início do ano, sete crianças morreram com diarreia e vômito, segundo o Ministério da Saúde. Elas tinham entre sete meses e um ano. O Condisi-YY, no entanto, contesta e afirma que foram 10 mortes e que as crianças tinham sintomas de Covid’. [...] Atualmente, o MPF tem 21 procedimentos em andamento acerca da Terra Yanomami, incluindo as investigações sobre os recentes ataques de garimpeiros, omissão de socorro, mortes de crianças e a ação que resultou na obrigação do governo federal a retirar invasores.

Note de bas de page 8 :

Disponível em: https://www.google.com/amp/s/g1.globo.com/google/amp/rr/roraima/noticia/2021/05/27/desnutricao-infantil-garimpo-e-covid-entenda-os-problemas-que-afligem-a-terra-indigena-yanomami.ghtml. Acesso em 08 de janeiro de 2022.

No primeiro parágrafo não há uma ligação direta do garimpo com as mortes, mas em maio de 2021, poucos dias após ataques de garimpeiros a algumas comunidades indígenas, o mesmo portal de notícias publicou uma reportagem que apontava como causa para o alastramento de casos de Covid-19 o garimpo ilegal8. Com isso, entendemos que a questão garimpeira está presente na sentença, mas de forma velada. Já o segundo parágrafo cita as investigações do Ministério Público Federal (MPF) sobre denúncias relacionadas diretamente à exploração ilegal.

Ramos, Oliveira e Rodrigues (2020) lembram que a atividade ilegal transforma a paisagem da floresta e causa uma série de problemas sociais, denunciados pelo movimento indígena, e que chega até a imprensa, como o caso em análise. Os autores sustentam que “conflitos sociais decorrentes da invasão de terras indígenas e os impactos ambientais são evidentes. Dentre eles, desmatamento, assoreamento e a contaminação por mercúrio, dos rios, animais silvestres e do homem” (Ramos; Oliveira; Rodrigues, 2020: 2).

Essas transformações na reserva Yanomami estão visivelmente expostas na reportagem em trechos como:

“Muitas vezes, o entorno das comunidades são dilapidadas (sic) pela degradação. É o caso de Homoxi, em que o quintal do posto de saúde são as enormes crateras abertas no solo devido à exploração” (Oliveira; Hisayasu, 2021).

Logo, os garimpeiros seguem invadindo o território. Nem mesmo as operações da Polícia Federal, como citadas na narrativa, foram capazes de interromper, em definitivo, a exploração do ouro.

Os grupos precisam manter, regularmente, o envio de materiais e equipamentos usados na extração, pessoas para trabalharem na ilegalidade, alimentação e outras regalias. E a ausência do governo para interromper o livre trânsito entre a cidade e a terra indígena possibilita autonomia aos garimpeiros, que passam a ditar as regras na região, onde o Estado aparece apenas em ações pontuais e específicas.

Na Terra Indígena Yanomami os garimpeiros desempenham o poder não exercido pelo Estado, regulando o tráfego de pessoas e bens; os meios e formas de trabalho; divisão de lucros e toda a dinâmica social do garimpo, que envolve vilas montadas no interior da Amazônia com ritmo ditado pelo poder ali exercido pelos garimpeiros (Ramos; Abrahão; Rodrigues, 2020: 157).

Vale destacar que a reportagem também cita Luciano Pohl, gerente dos povos isolados da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Isso representa outro indicativo da utilização de fonte do movimento indígena para direcionar a narrativa ao objetivo principal, que é denunciar o garimpo ilegal na terra. Além da Coiab, os jornalistas trazem para este coro as falas de Dario e Davi Kopenawa, este último tendo reconhecimento internacional, para cobrar do governo melhorias para a região.

A reportagem finaliza com a projeção das lideranças indígenas para que os garimpeiros sejam retirados da terra e eles se tornem os únicos donos legítimos da reserva, com direito à saúde e vida digna. Ou seja, termina reforçando todo o enredo da narrativa, que se exigiu que os direitos garantidos na Constituição após anos de luta do movimento indígena sejam respeitados pelo Estado.

Considerações finais

As mazelas na Terra Yanomami resultam, primeiramente, de uma irresponsabilidade do Governo Federal em não conseguir dar conta das necessidades dos indígenas, e deturpam, assim, a Constituição. A imprensa como porta-voz de denúncias gravíssimas como as expostas anteriormente reforça a responsabilidade social que o jornalismo tem para com qualquer pessoa, independente das condições em que ela se apresente. A mídia continua sendo a via eleita pelo público para, em muitos casos, suplicar pelo básico, a exemplo das comunidades indígenas.

Por mais que a reportagem em alguns momentos use termos inadequados, apele na narrativa ou não aprofunde em determinadas questões, ela estabelece um novo momento sobre o movimento indígena enquanto notícia e simboliza um fruto da atuação do movimento indígena. Isso porque enalteceu o trabalho das lideranças, potencializou o grito de socorro dos Yanomami, e, principalmente, saiu da redação em busca de presenciar, vivenciar, observar, coletar dados, informações e constituir uma narrativa o mais próxima possível do que ela é e representa.

Há questionamentos a serem feitos. Inúmeros, tais como: quem traduziu a língua dos Yanomami para os jornalistas? Os comunicadores chegaram a ter contato com os garimpeiros? O que fica depois dessa experiência? Qual o peso da representatividade nesse contexto? Mesmo havendo hipóteses para cada uma dessas perguntas, acreditamos que a narrativa constituída tem elementos suficientes para reforçar a causa indígena e o que ela significa para avançarmos como sociedade.

Os números expostos durante o texto são importantíssimos, pois significam registros oficiais capazes de contrapor o Estado. Não podemos esquecer das imagens presentes, que também trazem uma narrativa específica sob o olhar dos jornalistas, que provocam nosso sentido de significação. Além disso, os vídeos, infográficos, gifs, gráficos, e podcast enriquecem o material finalizado e nos ajudam a cobrar um tratamento digno para aqueles que são nossa História.