Territórios do torcer: futebol, violência e política Territories of supporting: football, violence and politics

Felipe Tavares Paes Lopes 

https://doi.org/10.25965/trahs.4938

Este trabalho (A expressão “territórios do torcer” faz alusão e homenageia a obra de Bernardo Borges Buarque de Hollanda, que a emprega em diversas produções, como em Hollanda e Florenzano (2019)) analisa de que maneira o espaço urbano é apropriado pelas torcidas organizadas e como essa apropriação molda a dinâmica dos conflitos entre elas. Também discute como ele é apropriado por um novo agrupamento de torcedores: os coletivos antifascistas. Para tanto, apoia-se nos resultados parciais de uma pesquisa sobre antifascismo e futebol no contexto da cidade de São Paulo, que adotou múltiplos procedimentos metodológicos. Entre outras coisas, o trabalho indica que as torcidas organizadas dividem a cidade em territórios amistosos e territórios hostis que os coletivos antifascistas costumam converter as ruas em espaços de solidariedade e apoio mútuo.

Cet article analyse la manière dont l'espace urbain est approprié par les organisations de supporters et comment cette appropriation façonne la dynamique des conflits entre elles. Il aborde également la manière dont il est approprié par un nouveau groupe de fans : les collectifs antifascistes. À cette fin, il s'appuie sur les résultats partiels d'une recherche sur l'antifascisme et le football dans le contexte de la ville de São Paulo, qui a adopté de multiples procédures méthodologiques. Entre autres choses, le travail indique que les clubs de supporters organisés divisent la ville en territoires amicaux et hostiles, tandis que les collectifs antifascistes convertissent généralement les rues en espaces de solidarité et de soutien mutuel.

Este trabajo analiza cómo el espacio urbano es apropiado por las hinchadas organizadas y cómo esta apropiación configura la dinámica de los conflictos entre ellas. También analiza cómo es apropiado por una nueva agrupación de hinchas: los colectivos antifascistas. Para tanto, se basa en los resultados parciales de una investigación sobre antifascismo y fútbol en el contexto de la ciudad de São Paulo, que adoptó múltiples procedimientos metodológicos. Entre otras cosas, el trabajo indica que los hinchas organizados dividen la ciudad en territorios amistosos y territorios hostiles y que los colectivos antifascistas tienden a convertir las calles en espacios de solidaridad y apoyo mutuo.

sThis work analyzes how organized football fans appropriate urban space and how this appropriation shapes the dynamics of conflicts among them. It also discusses how it is appropriated by a new group of football fans: the antifascist collectives. To do so, it draws on the partial results of a research on antifascism and football in the city of São Paulo, which adopted multiple methodological procedures. Among other things, the work indicates that organized football fans divide the city in friendly and hostile territories, while anti-fascist groups usually convert the streets into spaces of solidarity and mutual support.

Contents

Full text

Introdução

O futebol é guerra simbólica, “guerra sem os tiros”, na expressão de George Orwell (Franco Júnior, 2007). Entre outros lugares, seu caráter guerreiro transparece na sua linguagem: há o “artilheiro”, o “capitão”, o que “mata a bola” etc. Todos empurrados pelos “gritos de guerra” da torcida, que pede para seu time não parar de “atacar” ou, ao menos, se “defender” de forma eficaz. Na “guerra do futebol”, o campo de jogo é o campo de batalha. É lá onde são travados os embates. Embates que adotam táticas variadas, que vão depender, como em qualquer guerra, do local. Afinal, jogar em casa é uma coisa; jogar fora, algo muito diferente. A tática também irá variar de acordo com o adversário: enfrentar o poderoso Real Madrid exige mais cautela do que enfrentar o simpático XV de Piracicaba. De qualquer modo, independentemente da tática adotada, o fundamental no jogo de futebol é a ocupação de espaço. Trata-se de levar a bola de um lugar a outro. De conduzi-la até as redes adversárias. Sendo assim, não podemos compreender as lógicas do (e no) futebol sem entendermos como elas se vinculam à questão do território.

Essa questão é central para compreendermos, por exemplo, os conflitos, armados e corporais, entre torcedores de futebol. Conflitos que, no Brasil, se intensificaram a partir da segunda metade dos anos 1980, entrando definitivamente para a agenda pública na década de 1990, quando ocorreram trágicos episódios, como a famosa “Batalha do Pacaembu”. Nela, torcedores organizados do Palmeiras e do São Paulo invadiram o campo de jogo e se enfrentaram com paus, pedras e outros artefatos, resultando na morte de um torcedor e numa centena de feridos. A partir de então, o Poder Público começou a tomar uma série de providências e a própria academia passou a dar mais atenção ao fenômeno. Foi no período que uma série de trabalhos passou a pesquisar as torcidas organizadas – habitualmente tratadas pela mídia como as principais responsáveis pela violência no futebol brasileiro –, a fim de conhecer seus rituais, identidades, memórias, redes de amizade/inimizade e relações com o espaço urbano (Lopes, 2019).

Dando continuidade a esse último foco de pesquisa, neste trabalho, analiso de que maneira o espaço urbano é apropriado pelas torcidas organizadas e como essa apropriação molda a dinâmica dos conflitos entre elas. Também discuto como ele é apropriado por um novo agrupamento de torcedores: os coletivos antifascistas. Ao fazer isso, aponto para algumas diferenças entre esses dois agrupamentos. Conforme retomarei, os referidos coletivos surgiram em meados dos anos 2010 e têm despertado a atenção de vários pesquisadores (Lopes & Cordeiro, 2020; Souza Júnior, 2020; Gomes, 2020; Ronchete, 2021; Lopes & Marcello, 2021; Lopes & Iñiguez-Rueda, 2022). No entanto, diferentemente dos estudos por eles desenvolvidos, este trabalho não focaliza suas estratégias ciberativistas ou suas representações na “grande mídia”, mas, sim, suas ações no mundo offline. Com isso, considero que contribui para ampliar o conhecimento disponível sobre eles.

Antes de realizar as referidas análises, cabe destacar que os argumentos aqui apresentados foram desenvolvidos a partir de reflexões suscitadas pela leitura de teóricos diversos e, também, pelos resultados parciais de uma pesquisa que atualmente desenvolvo sobre antifascismo e futebol no contexto da cidade de São Paulo. Esta conta com o auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e adota múltiplos procedimentos metodológicos, tais como: observação participante, aplicação de questionários, entrevistas individuais, grupos focais e análise de conteúdo de postagens em redes sociais digitais. Também cabe destacar que parte das analises feitas aqui foram apresentadas e discutidas no 18 Simpósio da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP). Este foi realizado em 2020, na Universidade Federal do Pará, na cidade de Belém.

Futebol, território e violência

Conforme já antecipei, a lógica do futebol é a da ocupação territorial. Todavia, os vínculos entre futebol e território não se dão apenas dentro do campo de jogo. Afinal, a “guerra do futebol” transcende as quatro linhas e alcança as arquibancadas. Tanto é que as torcidas adversárias passam parte do jogo gesticulando e entoando gritos ofensivos umas as outras. Inclusive, com certa frequência, a guerra simbólica entre elas converte-se em guerra concreta. Não à toa, elas são separadas, há décadas, por grades, a fim de impedir que uma “invada” o espaço destinado à outra e que, consequentemente, aconteçam brigas e tumultos.

A preocupação com a ocupação territorial não apenas fraciona os estádios, mas define toda a organização do espetáculo futebolístico. A torcida visitante, por exemplo, chega escoltada pelas forças policiais. Afinal, ela nunca (ou quase nunca) é bem-vinda. Um grafite na entrada do portão dos visitantes do estádio do Vasco da Gama, do Rio de Janeiro, é revelador. Diz ele: “São Januário: território hostil desde 1927”. Essa hostilidade está ligada à percepção de que o torcedor visitante é um inimigo, que deve ser combatido e expulso do “nosso” território.

Certamente, essa percepção está na base das atuais perseguições aos torcedores infiltrados. Torcedores que são o produto direto da proibição, em diversos lugares, da torcida visitante. No estado de São Paulo, por exemplo, desde abril de 2016, os clássicos são realizados com apenas a torcida mandante. A partir de então, surgiu uma nova prática: a de infiltrar-se na torcida adversária a fim de acompanhar o jogo e, também, de marcar presença. Não à toa, a ida ao estádio na condição de infiltrado raramente fica no anonimato. Depois e até mesmo durante o jogo, os torcedores postam nas redes sociais digitais fotos registrando sua presença. Ao mesmo tempo em que criou a figura do infiltrado, a proibição da torcida visitante reforçou a ideia de que essa torcida é indesejada, provocando uma “caçada” a esses torcedores. Hoje em dia, ir sem a camisa do time da casa num clássico paulista ou simplesmente não apoiar “suficientemente” pode produzir desconfiança generalizada, causando olhares tortos ou, até mesmo, graves agressões físicas, como já ocorreram algumas vezes (Lopes, 2018).

Visto como um inimigo, o torcedor visitante, por sua vez, vê o estádio adversário como um espaço a ser “ocupado”, “conquistado”, “invadido”. A torcida corintiana, por exemplo, orgulha-se tanto de seus títulos quanto de suas “invasões”. De ter levado 30 mil pessoas ao Japão em 2012 ou de ter dividido o Maracanã, em 1976, com a torcida Fluminense, quando mais de 70 mil pessoas pegaram a Dutra rumo ao Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo em que mexem com o imaginário dos torcedores, as “invasões” envolvem sempre certo perigo, certo risco. No universo específico das torcidas organizadas, quanto mais arriscada é uma “invasão”, mais prestígio ela confere ao “invasor”. Por exemplo, certa vez, um informante me disse, em tom meio blasé, que ir a um determinado estádio já não era mais a mesma coisa, pois ele havia se tornado “área de lazer” da sua torcida.

Neste ponto, o desdém dos torcedores organizados por provocações feitas na Internet também é revelador. Praticamente não se vê “invasões” do “território virtual” de uma torcida rival. Afinal, essa “invasão” seria ilegítima, coisa de gente que não é verdadeiramente “de torcida”. O risco, certamente, pode ser considerado um elemento relevante na explicação da lógica dos conflitos entre torcedores. Afinal, ele produz adrenalina, excitação. Não à toa, pesquisadores, como Richard Giulianotti (2002), observam que o envolvimento com o hooliganismo é motivado pelas mesmas razões do que aquele com os esportes radicais, como o bungee jump ou o surfe de ondas grandes. Seguindo essa linha de raciocínio e relacionando a briga de torcidas com a questão de classe, José Miguel Wisnik (2008) classificou-a como esporte radical de pobre. Como uma espécie de clube da luta da classe trabalhadora.

Sem entrar aqui na (polêmica) relação entre classe social e violência, reforço apenas que, na lógica das organizadas, há uma busca constante por situações potencialmente perigosas. Situações que, no entanto, devem ser, até certo ponto, administradas, controladas. Tanto é que, nos jogos fora de casa – especialmente naqueles marcados por um longo histórico de rivalidade violenta com a torcida local –, elas adotam uma série de medidas especiais. Nesse contexto, mulheres e crianças tendem a ser proibidas de ir na caravana. Para os homens da “linha de frente”, por outro lado, trata-se de uma “obrigação moral”. Nesse contexto, o apoio logístico e bélico dos agrupamentos aliados também é fundamental para que a torcida não tome “atraso”, ou seja, para que não seja emboscada pela torcida local ou tenha seu “patrimônio” roubado (camisetas, faixas, bandeiras etc.) (Lopes, 2019).

Essas medidas tendem a alimentar a atmosfera belicosa que caracteriza a chegada da torcida visitante, associada, como já adiantei, à ideia de “invasão”. Ideia expressa e reforçada por uma série de rituais. Na Argentina, por exemplo, quando havia torcida visitante (está proibida desde 2013), era comum essa torcida estacionar os ônibus na entrada da cidade para chegar a pé ao estádio. Afinal, chegar de ônibus, com forte escolta policial, era vista como coisa de covarde. De puto, na terminologia nativa. Afinal, como se costuma dizer por lá: hay que tener aguante (Zucal, 2010), isto é, é preciso resistir às adversidades, enfrentar as dificuldades, correr risco, enfim, seguir em frente apesar dos chutes, pontapés, pedradas e tiros. No Brasil, a terminologia nativa utilizada para se referir à torcida e ao torcedor que costumam se envolver em briga é reveladora: “pista”. Quem briga é de “pista”, ou seja, “pista” é quem não se esconde no ônibus, mas desce e vai para a rua brigar. Aqui, as caminhadas até o estádio também são um elemento importante da cultura das torcidas organizadas. Trata-se de um momento recheado de simbolismo: na “linha de frente”, torcedores de corpos fortes e robustos, muitos sem camisa, fazem a “contenção”, para ninguém avançar sem autorização. Atrás, uma multidão “marcha”, atira rojões para marcar presença e ameaça os rivais com seus “gritos de guerra” (Lopes, 2019).

As relações entre torcidas de futebol e território, todavia, não se esgotam nos estádios e arredores. Há toda uma geografia invisível da cidade que só é conhecida por quem vive o dia-a-dia das organizadas. Há territórios proibidos e territórios seguros para cada torcida. Na cidade de São Paulo, por exemplo, a República é território dos organizados são-paulinos; o Bom Retiro, dos corintianos e a Barra Funda, dos palmeirenses. Afinal, é lá onde ficam localizadas as sedes das principais organizadas de São Paulo, Corinthians e Palmeiras. Sendo assim, andar nessas regiões com a camisa ou boné de uma organizada rival (ou aliada da rival) é considerado uma provocação e um risco. Desde os anos 1980, a geografia invisível das organizadas tornou-se ainda mais complexa. Afinal, foi nesse período que elas começaram a se espalhar pelas cidades. Hoje em dia, a maior parte delas possui subsedes e pontos de encontro em diversos bairros, o que aumenta a possibilidade de conflitos (Teixeira & Lopes, 2019). A identificação com esses subgrupos, vale destacar, parece ser cada vez mais forte. Tanto que é muito frequente vermos, nas arquibancadas de todo Brasil, faixas, bonés e camisetas que fazem referência a eles. Interessante observar, todavia, que os locais de identificação costumam ser regiões pobres. Por exemplo, há a Fiel Capão, a Fiel Jardim Ângela, a Fiel Brasilândia... Mas não há uma Fiel Jardins, uma Fiel Itaim Bibi ou uma Fiel Vila Nova Conceição. Isso se deve pois, assim como o branco tende a não se ver como uma pessoa racializada, o rico parece não se perceber como uma pessoa “territorializada”. Não à toa, escutamos, com frequência, membros da elite se dizerem “cidadãos do mundo”.

Na geografia invisível das torcidas organizadas, há também uma série de territórios em disputa. Por exemplo, em 2012, houve uma grande briga na Avenida Inajar de Souza, na zona norte de São Paulo, entre torcedores organizados do Corinthians e do Palmeiras. Nesta, dois palmeirenses foram assassinados. Desde então, essa avenida tem sido disputada pelas organizadas de ambos os clubes. Tanto que, na final do Campeonato Paulista de 2020, em plena pandemia da Covid-19, centenas de torcedores do Palmeiras “desfilaram” por ela a fim de “demarcar território”. Como os torcedores corintianos não compareceram, argumentaram que houve W.O. Assim, devido a essa geografia invisível, podemos dizer que a crença do senso-comum de que os embates corporais e armados entre torcedores organizados são aleatórios, podendo ocorrer em qualquer lugar, não é tão verdadeira assim. Há lugares, como acabamos de ver, em que a possibilidade de incidência de conflitos é significativamente maior do que em outros (Lopes, 2019).

Há territórios, inclusive, em que a lógica de rivalidades das organizadas simplesmente desaparece. Aqui, são ilustrativos os bailes de corredor, comuns no Rio de Janeiro na década de 1990 e proibidos em 2000. Em tais bailes, centenas de jovens escutam funk e, em determinado momento, dividem-se, de acordo com sua comunidade, em dois grupos, que se posicionam em cada um dos lados do baile: os chamados lado A e o lado B. No corredor, enfrentam-se com socos e pontapés. O interessante aqui é que, não raro, integrantes de torcidas rivais lutam do mesmo lado contra seus amigos de torcida, que estão do outro lado. Em outras palavras, aquele que era amigo se torna inimigo e aquele que era inimigo se torna amigo – o que faz com que os conflitos entre esses jovens (seja no contexto das torcidas, seja no contexto do funk) não sejam, necessariamente, motivados pela vontade de extermínio. Afinal, trata-se de algo fluído e circunstancial (Coelho, 2016). Trata-se, conforme observa Eric Dunning (2014), de buscar excitação, de experimentar aquele “zumbido” emocional quando se “ferve” na “pista”, enfim, trata-se de atuar no limite e de sobreviver à experiência, na análise de Richard Giulianotti (1999).

Note de bas de page 1 :

Por medo de serem responsabilizadas em possíveis casos de atos violentos e vandálicos e para evitar a criação de possíveis rachas internos, as organizadas buscaram, em notas oficiais, se desvincularem dos protestos, observando eles foram realizados por alguns de seus membros de forma autônoma (Lopes & Marcello, 2021).

Sendo assim, não é surpreendente que, no auge da pandemia do coronavírus, tenham sido as torcidas organizadas (mais exatamente, seus setores progressistas1) que tenham ido às ruas disputar espaço com a extrema direita – que, naquele momento, fazia manifestações semanais apoiando o governo de Jair Bolsonaro e defendendo pautas antidemocráticas, como a volta do regime militar. Afinal, viver no limite, arriscar-se, está no DNA dessas associações. Em outras palavras, naquele momento, manifestar-se contra a extrema direita envolvia um alto risco (de contágio e de confronto físico) que, talvez, outros grupos sociais não quisessem assumir. Ademais, envolvia uma disputa territorial (pela rua, no caso), que, conforme já antecipei, é um elemento caro às organizadas. Certamente, o engajamento de torcedores organizados em tais protestos pode ser explicado pela sua consciência política e desejo por uma sociedade mais justa e democrática, mas a questão do risco e a territorial não podem ser desconsideradas (Lopes; Marcello, 2021).

Futebol, território e política

Note de bas de page 2 :

Cabe destacar aqui que as torcidas organizadas também participam de protestos e manifestações políticas. No entanto, como já antecipei, esse não é seu objetivo principal.

Nos referidos protestos, também foi possível observar a presença de coletivos de torcedores antifascistas que não possuem vínculos com as torcidas organizadas (ainda que, eventualmente, alguns de seus integrantes possam ser associados). Esses coletivos surgiram na década de 2010, quando o Brasil sediou megaeventos esportivos, como a Copa do Mundo de 2014, e assistiu a diversos episódios de grande relevância política, como as Jornadas de Junho de 2013, o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT), e a ascensão da extrema direita ao poder, consagrada pela vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018. Diferentemente das torcidas organizadas, tais coletivos não possuem como objetivo principal apoiar o time dentro do campo, mas alcançar mudanças sociais. Assim, utilizam principalmente as ruas (e, eventualmente, os estádios) para realizarem protestos e manifestações políticas2.

Essas manifestações costumam ser realizadas de acordo com as “janelas de oportunidade”, que se abrem e se fecham constantemente (Jasper, 2016). Datas comemorativas – como, por exemplo, o Dia da Consciência Negra – podem ser uma oportunidade para eles organizarem ou aderirem a manifestações relacionadas a elas. Da mesma forma, a manifestação de alguma declaração ou a adoção de alguma medida que os desagradem. Por exemplo, o pedido da concessionária Allegra Pacaembu à Prefeitura de São Paulo para que o contrato de concessão do Complexo Esportivo do Pacaembu fosse estendido, para que ampliasse o desconto na outorga fixa parcelada e para que incluísse a Praça Charles Miller no contrato serviu de estímulo para que grupos como o Coletivo Democracia Corinthiana (CDC), o Bloco Tricolor Antifa (BTA) e o Porcomunas (PC) promovessem uma manifestação contra a privatização do referido complexo. Assim, podemos dizer que as ações dos coletivos antifascistas são orientadas por um “senso de oportunidade”. É preciso reivindicar a coisa certa na hora certa e no local certo.

Os coletivos de torcedores antifascistas também costumam convocar e divulgar seus protestos e manifestações de rua através de suas redes sociais digitais – o que não chega a ser surpreendente. Afinal, de acordo com Massimo Di Felice (2013), desde os anos 1990, a Internet vem dando suporte a movimentos globais e locais, impactando as formas de ação social e contribuindo para reformular os conceitos de participação, espaço democrático, identidade coletiva e estratégia política.

Além de serem divulgadas nas redes sociais digitais, os protestos e manifestações de rua constituem um importante espaço de reafirmação da identidade dos coletivos de torcedores antifascistas – o que é de grande importância para sua manutenção, pois “um motivo fundamental para a participação num movimento é o sentido de identificação com o grupo que ele afirma representar ou com o próprio movimento” (Jasper, 2016: 140). Na verdade, esses coletivos surgem de duas identidades preexistentes: uma política e outra clubística – o que faz com que seus integrantes não precisem criar novas identidades, mas, sim, unificar e reinterpretar as já existentes. E isso é feito nas ruas por meio da articulação do cenário com o figurino, para empregar uma metáfora teatral. Em relação ao cenário, a simples presença em um protesto já é suficiente para demarcar a identidade política dos coletivos. Se eles estão em uma manifestação promovida pela esquerda, por exemplo, é porque se situam desse lado do campo político. Em relação ao figurino, é preciso destacar que seus integrantes costumam vestir a camisa do seu clube ou do próprio coletivo. Com isso, seus corpos configuram-se em um espaço de representação que estabelece a associação entre o clube e a política. Além deles, as faixas e bandeiras que os coletivos levam para as manifestações possuem as cores do seu clube e, com frequência, possuem mensagens que remetem a ele.

Importante notar que, se as ruas contribuem para conferir novos significados a identidades pré-existentes, elas mesmas são ressignificadas pelos coletivos. De forma criativa, seus integrantes utilizam variados recursos para transformá-las. Aqui, os chamados “faixaços” organizados pelos coletivos BTA, CDC e PC contra o governo de Jair Bolsonaro são ilustrativos. Nessas ocasiões, seus integrantes estendem, em uma passarela localizada no centro cidade de São Paulo, várias faixas. Entre elas, uma com a seguinte mensagem: “se você é fora Bolsonaro, buzine!”. Mensagem que, ao interpelar os motoristas que passam debaixo do viaduto, consegue transformar um espaço de circulação de carros em um espaço de resistência política, criando um coro de buzinas insurgentes.

Ainda em relação aos recursos empregados, é preciso destacar que as faixas e as bandeiras são particularmente importantes para os coletivos de torcedores antifascistas. A própria criação do CDC foi estimulada pelos comentários ensejados pela faixa “Democracia Corinthiana contra o Golpe”, que chamou a atenção dos manifestantes nas manifestações de 2016 contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. As faixas e bandeiras desempenham várias funções: elas transmitem uma determinada mensagem, demarcam território (servindo, inclusive, de ponto de encontro), ajudam na construção da identidade dos coletivos e conferem visibilidade a eles. Algumas delas também contribuem para criar uma cadeia intertextual em que as lutas de outros lugares, de certo modo, se fazem escutar e são amplificadas, o que contribui para inserir, simbolicamente, os coletivos em uma comunidade internacional de insurgentes. Por exemplo, o BTC possui uma bandeira que estampa a imagem de uma guerrilheira da resistência Curda, que combate o patriarcado e o Estado Islâmico.

Outro aspecto a ser destacado é que os coletivos de torcedores antifascistas utilizam as ruas como um espaço de enfrentamento simbólico, não físico. Isso se deve ao fato de tais coletivos apostarem na difusão do pensamento político de esquerda e na construção do poder popular nas comunidades como estratégia para “vacinar” a população frente ao fascismo. Por um lado, essa aposta sugere que eles não compartilham a crença liberal de que as instituições governamentais e o debate público de ideias – estabelecido principalmente nos meios de comunicação – sejam suficientes para neutralizar a violência e as ideias fascistas. Por outro lado, ela indica uma diferença tática importante em relação aos movimentos antifascistas: estes promovem ações de enfrentamento “direto” das organizações de extrema direita, recorrendo, por vezes, ao uso da violência física (Bray, 2018).

Um último aspecto a ser destacado é que os coletivos de torcedores antifascistas tampouco tomam as ruas como um espaço de disputa com torcedores de clubes rivais, como fazem as torcidas organizadas. Ao contrário, para tais coletivos, as ruas servem de espaço de confraternização e construção de redes de solidariedade. Com frequência, os integrantes desses coletivos compartilham o mesmo espaço, são fotografados juntos e apoiam-se mutuamente. Não à toa, conforme me relatou um informante, um dos incentivadores da criação do BTA foi o CDC, que sempre “cobrava” dos torcedores são-paulinos a formação de um coletivo antifascista próprio. Além de andarem lado-a-lado nas manifestações, os referidos coletivos articulam ações conjuntas, como, por exemplo, festivais de futebol com refugiados. Ações que sugerem que, no caso deles, a rivalidade clubística não se sobrepõe à identidade política.

Considerações finais

Neste trabalho, analisei de que maneira o espaço urbano é apropriado por dois agrupamentos de torcedores de futebol: as torcidas organizadas e os coletivos antifascistas. Ao fazer isso, busquei mostrar que essas apropriações são, em diversos aspectos, distintas. Por exemplo, enquanto as torcidas organizadas fracionam as cidades a partir das suas relações amizade/inimizade, que criam territórios amistosos e territórios hostis, que devem ser defendidos ou atacados; os coletivos antifascistas costumam converter as ruas em espaços de solidariedade e apoio mútuo. Essas diferenças indicam, entre outras coisas, as fragilidades daqueles estudos que tendem a tomar o campo de interações dos torcedores de futebol como algo homogêneo e padronizado, como se esses torcedores pudessem ser interligados numa identidade coletiva estável, independentemente das diferenças e divisões que possam separá-los (Thompson, 2000). Na verdade, esse universo é muito mais diversos e complexo do que dizem os referidos estudos.

Com frequência, esses estudos compreendem o torcedor como um alienado e o futebol como um instrumento de fragmentação da classe trabalhadora. De fato, o futebol pode, em algumas ocasiões, segmentar grupos que podem ser capazes de se transformar num desafio real às forças dominantes. Por exemplo, se conseguissem deixar suas rivalidades de lado e fortalecer suas entidades representativas, as torcidas organizadas, muito provavelmente, teriam mais chances de fazer frente ao processo de elitização do futebol e à exclusão da classe trabalhadora dos estádios. No entanto, como busquei mostrar, o futebol também pode contribuir para unir as pessoas em torno de lutas por uma sociedade mais justa e democrática. As próprias torcidas organizadas já se engajaram, várias vezes, nessas lutas: por exemplo, no fim da década de 1970 e começo da década de 1980, elas participaram das campanhas pela “anistia ampla, geral e irrestrita” e pelas “Diretas Já!” (Canale, 2020) e, mais recentemente, protagonizaram os protestos contra a ascensão da extrema direita e suas pautas autoritárias. Mas foram mesmo os coletivos de torcedores antifascistas que estreitaram os laços entre futebol e política, indicando que o “esporte bretão” pode, sim, contribuir para cimentar as forças insurgentes e municiar a resistência política.