Discutindo gênero e cultura: um estudo sobre mulheres haitianas em Campo Grande-MS, Brasil Discussing gender and culture: a study on Haitian women in Campo Grande-MS, Brazil

Krisley Amorim de Araújo 
and Luciane Pinho de Almeida 

https://doi.org/10.25965/trahs.1916

O presente artigo apresenta discussão sobre a migração feminina, detidamente sobre a migração da mulher haitiana para Campo Grande, Mato Grosso do Sul, portanto, para o Brasil. Por objetivo visa-se identificar quais aspectos culturais e de gênero próprios dessa população se articulam no contexto da migração. Para tanto, optou-se por metodologia de pesquisa qualitativa com embasamento teórico fundamentado na Psicologia Sócio-Histórica. Para aquisição de dados para análise, se partiu da identificação de um grupo de mulheres haitianas migrantes residentes em Campo Grande, o alcance de novas participantes se deu por meio da técnica metodológica de Snowball, na qual as participantes iniciais da pesquisa indicam novas participantes. Ao todo participaram seis mulheres haitinas migrantes e um haitiano migrante, a partir de entrevistas realizadas em instituição de ensino. A pesquisa possibilitou verificar fatores de motivação de migração, aspectos de adaptação cultural e familiar e ainda conservação cultural. Dentre os resultados, foi possível identificar aspectos patriarcais da cultura haitiana como motivação migratória, sendo o principal, nesse sentido, o marido e a reunificação familiar. Os dados permitiram apontar a elaboração de processos de integração e adaptação culturais, assim como o constante choque cultural, que coloca normas sociais, valores e costumes em conflito. E ainda a verificação da alteração de dinâmicas sociais familiares mos migrantes, condição que possibilitou maior autonomia das mulheres entrevistadas. Como conlusão, compreendeu-se que migrar não representa apenas o deslocamento geográfico, mas, um deslocar de práticas, tradições e costumes, exigindo constante negociação entre processos de adaptação e conservação cultural.

Este artículo presenta una discusión sobre la migración femenina, específicamente sobre la migración de las mujeres haitianas a Campo Grande, Mato Grosso do Sul, por lo tanto, a Brasil. El objetivo es identificar qué aspectos culturales y de género de esta población se articulan en el contexto de la migración. Por lo tanto, optamos por una metodología de investigación cualitativa con base teórica basada en la psicología sociohistórica. Para adquirir datos para el análisis, a partir de la identificación de un grupo de mujeres migrantes haitianas que viven en Campo Grande, se llegó a nuevos participantes a través de la técnica metodológica Snowball, en la que los participantes iniciales indican nuevos participantes. En total, seis mujeres haitianas migrantes y un haitiano migrante participaron de entrevistas realizadas en una institución educativa. La investigación permitió verificar los factores de motivación migratoria, los aspectos de la adaptación cultural y familiar y la conservación cultural. Entre los resultados, fue posible identificar aspectos patriarcales de la cultura haitiana como motivación migratoria, siendo el principal la reunificación del esposo y la familia. Los datos permitieron señalar la elaboración de procesos de integración y adaptación cultural, así como el constante choque cultural, que pone en conflicto las normas, valores y costumbres sociales. Y también la verificación de la alteración de la dinámica social migratoria familiar, condición que permitió una mayor autonomía de las mujeres entrevistadas. Como conclusión, se entendió que la migración no solo representa un desplazamiento geográfico, sino un desplazamiento de prácticas, tradiciones y costumbres, que requiere una negociación constante entre los procesos de adaptación y conservación cultural.

Cet article présente une discussion sur la migration féminine, en particulier sur la migration de femmes haïtiennes à Campo Grande, dans le Mato Grosso do Sul, donc au Brésil. L'objectif est d'identifier quels aspects culturels et de genre de cette population sont articulés au contexte migratoire. Par conséquent, nous avons opté pour une méthodologie de recherche qualitative avec une base théorique basée sur la psychologie socio-historique. Pour acquérir des données à analyser, à partir de l'identification d'un groupe de femmes migrantes haïtiennes vivant à Campo Grande, de nouveaux participants ont été contactés grâce à la technique méthodologique du Snowball, dans laquelle les participants initiaux indiquent de nouveaux participants. Au total, six femmes migrantes haïtiennes et un migrante haïtien ont participé à des entretiens menés dans un établissement d'enseignement. La recherche a permis de vérifier les facteurs de motivation de la migration, les aspects de l’adaptation culturelle et familiale et la conservation de la culture. Parmi les résultats, il a été possible d'identifier les aspects patriarcaux de la culture haïtienne comme motivation migratoire - le principal étant le regroupent du mari et de sa famille. Les données ont permis de mettre en évidence l’élaboration de processus d’intégration et d’adaptation culturelles, ainsi que le choc culturel constant qui met en conflit normes, valeurs et coutumes sociales. Et aussi la vérification de l'altération de la dynamique familiale sociale migratoire, condition qui a permis une plus grande autonomie des femmes interrogées. En conclusion, il a été observé que la migration ne représente pas seulement un déplacement géographique, mais un déplacement des pratiques, des traditions et des coutumes, nécessitant une négociation constante entre les processus d'adaptation et de conservation culturelle.

This article presents a discussion about female migration, specifically about the migration of Haitian women to Campo Grande, Mato Grosso do Sul, therefore, to Brazil. The objective is to identify which cultural and gender aspects of this population are articulated in the context of migration. Therefore, we opted for a qualitative research methodology with theoretical basis based on Socio-Historical Psychology. To acquire data for analysis, starting from the identification of a group of Haitian migrant women living in Campo Grande, new participants were reached through the Snowball methodological technique, in which the initial participants indicate new participants. In all, six migrant Haitian women and one migrant Haitian participated from interviews conducted in an educational institution. The research made it possible to verify migration motivation factors, aspects of cultural and family adaptation and cultural conservation. Among the results, it was possible to identify patriarchal aspects of Haitian culture as migratory motivation, the main one being the husband and family reunification. The data allowed to point out the elaboration of processes of cultural integration and adaptation, as well as the constant cultural shock, which puts social norms, values ​​and customs in conflict. And also the verification of the alteration of social migratory family dynamics, a condition that allowed greater autonomy of the women interviewed. As a conclusion, it was understood that migrating does not only represent geographical displacement, but a displacement of practices, traditions and customs, requiring constant negotiation between processes of adaptation and cultural conservation.

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Introdução

O aumento numérico de mulheres migrantes é denominado por Marinucci (2007) como feminização das migrações. Este processo também identifica a mudança de critérios de análise do fenômeno migratório por meio da incorporação do enfoque de gênero. Fato é que dos 250 milhões de migrantes internacionais que Faria (2015) aponta, 50% são mulheres.

Entre 2010 e 2016, o Brasil apresentou um fluxo maior de migração, resultado de crises econômicas, questões ambientais, conflitos e guerras, situações que vêm ocorrendo em diversos países do mundo. Velasco e Mantovani (2016) destacam que o número de imigrantes aumentou 160% em 10 anos. Os autores apontam que dados da Polícia Federal, em 2015, apresentam quase 120 mil estrangeiros dando entrada no país; em destaque a entrada de haitianos, seguidos pelos bolivianos, colombianos, argentinos, chineses, portugueses e norte-americanos, e mais recentemente também a entrada de venezuelanos. O migrante que chega ao Brasil apresenta uma nova configuração devido a fatores históricos, sociais, econômicos e políticos, consequência das transformações do processo de acumulação capitalista e dos efeitos da globalização que se somam a desastres ambientais e eventos atípicos que estão ocorrendo em plano internacional.

Se por um lado a atual crise econômica brasileira, os entraves políticos e a iminência da crise financeira acirrada, principalmente em 2016, alteraram as rotas migratórias que outrora se destinavam para o Brasil, fazendo com que muitos migrantes se dirijam para outros países da América Latina que apresentam uma situação financeira mais favorável. Por outro lado, o fechamento das vias de acesso da Europa e de países norte-americanos colocou o Brasil na rota das migrações internacionais.

Interessa para esta pesquisa, especialmente o fluxo migratório de pessoas oriundas do Haiti, nesse sentido uma das características marcantes é a forte presença masculina, porém, o número de entrada de mulheres haitianas no Brasil é significativo. Faria e Fernandes (2016) destacam que nos últimos anos, a proporção de mulheres haitianas migrantes está aumentando. De acordo com Peres e Baeninger (2016) 71% das mulheres haitianas migrantes no Brasil são solteiras e 25,3% casadas, assim é notável que as mulheres haitianas não chegam ao Brasil apenas com propósitos de reunificação familiar ou como cônjuges ou filhas.

A presença feminina na migração do Haiti para o Brasil possui especificidades e características que necessitam ser estudadas e compreendidas. No entanto, uma vez que o maior volume de entrada de homens haitianos carrega consigo a imagem de migrante como homem, jovem, solteiro, sem filhos, restringindo o papel da mulher à unificação familiar.

A fim de retirar a invisibilidade dessas mulheres no que tange à singularidade de suas experiências migratórias, a pesquisa desenvolvida procura identificar como aspectos culturais e de gênero se articulam em um contexto de migração de mulheres haitianas no processo migratório para o Brasil.

Metodologia

Note de bas de page 1 :

A intermediação com um homem migrante haitiano foi a via encontrada para conseguir chegar até as mulheres, pois em Campo Grande é incomum ver mulheres haitianas nos espaços públicos, condição que perpassa elementos da cultura haitiana e relações familiares em que a mulher fica mais restrita aos espaços domésticos.

A fim de atingir o objetivo proposto, os passos metodológicos se deram por meio da identificação de mulheres migrantes haitianas residindo em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Após a identificação estabeleceu-se contato com um migrante haitiano1, o qual nos concedeu uma entrevista e oportunizou a intermediação e contato com as mulheres haitianas, participantes desta pesquisa.

A coleta de dados deu-se por meio do uso da técnica metodológica denominada Snowball, a qual segundo Baldin e Munhoz constitui-se em “uma forma de amostra não probabilística, utilizada em pesquisas sociais onde os participantes iniciais de um estudo indicam novos participantes, que por sua vez, indicam novos participantes.” (2011:332) Desse modo, o método prossegue até o alcance do objetivo proposto, também chamado de “ponto de saturação”, que ocorre quando os entrevistados passam a transmitir conteúdo semelhante ao obtido em pesquisas anteriores. Essa técnica de amostragem utiliza-se de cadeias de referência, conformando uma espécie de rede. A técnica Snowball, seria utilizada até atingir o ponto de saturação de 10 mulheres haitianas residentes na capital do Estado; no entanto, foi possível alcançar somente 06 mulheres haitianas e um migrante haitiano.

É válido ressaltar que a pesquisa é qualitativa com enfoque sócio-histórico; assim, possui uma dimensão social, pois estabelece-se como uma produção dialética de linguagem, em que “os sentidos são criados na interlocução e dependem da situação experienciada, dos horizontes espaciais ocupados pelo pesquisador e pelo entrevistado.” (Freitas, 2009:29)

Optou-se para coleta de dados, a utilização de grupo focal pela partilha de tema específoco, interação grupal e a proposta de troca, descoberta e participação dos envolvidos, uma vez que as da pesquisa encontravam-se em uma Instituição de Ensino (para aulas de português e informática) e já havia estabelecido o compromisso com o horário e local para as aulas (Ressel et al., 2008). Assim, as migrantes haitianas por estarem em grupo sentiram-se à vontade para participarem e dialogarem sobre aspectos referentes à migração, aspectos de gênero e cultura, por meio do diálogo sobre valores, crenças e pontos de vistas.

A fim de resguardar a identidades das (os) participantes de pesquisa optou-se por identificá-las (os) com o nome de pedras preciosas como: Ágata, Ametista, Jade, Peróla, Rubi, Esmeralda e Ônix ao participante do sexo masculino. Foram utilizadas falas das (os) participantes que estivessem em consonância com os objetivos que a pesquisa buscava evidenciar.

Mulheres haitianas migrantes no Brasil

O Haiti possui em seu histórico elevados padrões emigratórios, tendo passado a partir da década de 90 uma diáspora haitiana (Handerson, 2015), cuja rota se dava principalmente para países como Estados Unidos, França, Canadá e Caribe. O autor ainda traz dados do Ministério dos Haitianos Residentes no Exterior, que traz informações que aproximadamente 4 a 5 milhões de haitianos vivem em outros países do mundo, número que expressa metade dos habitantes do Haiti.

A migração de haitianos para o Brasil demonstra as novas modalidades de fluxos migratórios atuais do século XXI. A rota foi alimentada por múltiplos fatores de influência como: fechamento de países como Estados Unidos, República Dominicana, Canadá e Caribe - países que historicamente se constituíam como possibilidades de migração aos haitianos; influência dos referenciais brasileiros no país por meio da operação Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH) – que contou com a participação de soldados brasileiros; condições de crise econômica, política e natural - agravada com a ocorrência do terremoto que atingiu a capital do país, Porto Princípe, em janeiro de 2010; declaração do ex-presidente Lula de abertura do país aos migrantes haitianos.

De acordo com Mejía e Cazarotto (2017), apenas 20% da população haitiana se encontra empregada, atividades vinculadas à informalidade, como venda de artigos e mercadorias no comércio ou prestação de serviços acabam se tornando opções de fonte de renda. Diante disso, a migração emerge como uma solução frente aos problemas estruturais econômicos e sociais do país, bem como, são as remessas enviadas pelos emigrantes haitianos residindo fora do Haiti que movimentam a renda de boa parte dos moradores do país.

É possível identificar relação de diversos condicionantes que são influentes no estabelecimento do fluxo de migrantes haitianos para o Brasil. Uma das características do fluxo migratório de haitianos é a forte presença masculina; no entanto, o número de entrada de mulheres haitianas no Brasil, ainda é significativo, Faria e Fernandes (2016) e Mejía e Cazarotto (2017) destacam que nos últimos anos, a proporção de mulheres haitianas migrantes está aumentando.

Assis (2003:201) afirma que as mulheres sempre estiveram presentes nos fluxos migratórios desde o final do século XIX; porém sua inserção era analisada apenas como aquela que acompanhava seu marido e filhos. Logo, por muito tempo a mulher ficou marginalizada nos estudos migratórios, sendo apresentada apenas como aquela que é subordinada ao homem durante o processo de migração, suas experiências ficaram por muito tempo ocultas e indiferentes. Mais do que apenas remontar um dado referente ao fenômeno migratório, esse fator está ligado a história em geral, uma vez que à mulher sempre coube espaços subalternos na sociedade.

A participação das mulheres nos movimentos migratórios do Haiti possui uma longa história. No Brasil, a entrada de haitianas apresenta tendências de crescimento segundo dados do Ministério do Trabalho, Conselho Nacional de Imigração e do Ministério das Relações Exteriores (Mejía, Cazarotto, 2017), expressando um padrão que segue o fenômeno da feminização das migrações, apontado por Marinucci (2017). Compreende-se, portanto, que a presença de mulheres no fluxo migratório Haiti-Brasil se relaciona também a questões globais atravessadas pelo fator gênero, como a inserção no mercado de trabalho, acesso à educação, saúde, redes de informação, ausência de autonomia, pobreza, violência, relações patriarcais, pobreza.

Muitas migrantes haitianas começaram a entrar no país pela fronteira noroeste, passando por cidades como Epitaciolândia, Brasiléia, no Acre; Tabatinga no Amazonas e pelas fronteiras de Mato Grosso do Sul pelas cidades de Corumbá e Puerto Quijarro, fronteira boliviana. No entanto, destaca-se o auxílio de redes ilegais de traficantes de pessoas, em que o deslocamento se deu por meio de viagens de avião para o Panamá e Equador para após seguir para o Peru e Bolívia, chegando aos estados brasileiros como Amazonas, Acre e Mato Grosso do Sul. (Thomaz, 2013)

Cotinguiba (2014) destaca que a migração mais recente de haitianos no Brasil foi registrada nos noticiários no dia 17 de março de 2010, meses após a ocorrência do terremoto no Haiti. Inicialmente, os migrantes estavam no Mato Grosso do Sul na divisa com a Bolívia, sendo, no entanto, com o objetivo de chegar a Guiana Francesa, porém, meses após essa ocorrência o país começou a receber um grande número de haitianos. É válido ressaltar, que muitos haitianos estabelecidos no Brasil já vieram de outros países como Estados Unidos e República Dominicana, Venezuela, Equador (Mejía, Cazarotto, 2017), compondo então outras trajetórias migratórias no processo de produção de suas vidas.

Diante disso, olhar para o fenômeno migratório a partir da perspectiva de gênero implica reconhecer que as experiências e expectativas de homens e mulheres se dão de modo diferente em razão de fatores sociais, simbólicos, culturais, econômicos, políticos, materiais. Marinucci (2007) destaca que a migração feminina possui características diferentes.

No caso da migração da mulher haitiana identifica-se um padrão divergente em relação aos estudos migratórios femininos em que a mulher emerge como um sujeito autônomo, tomando a migração como uma escolha. Mejía e Cazarotto (2017) apresentam-nos como resultados de suas pesquisas, a conclusão de que as migrantes haitianas deslocadas para o Vale de Taquari não apresentavam autonomia, capacidade de decisão sobre suas vidas de modo independente do companheiro, condições distantes de uma lógica de empoderamento, termo comumente utilizado na literatura para se referir à mulher migrante. Dessa forma, a migração se torna uma situação de acompanhamento de uma decisão do homem.

A partir disso, vê-se a emergência de elementos próprios da trajetória dessas mulheres migrantes que abrangem o atravessamento de condições para além da migração, qual é o caso de serem migrantes pobres que estão buscando melhores condições de vida e relações patriarcais nas relações com os homens. A pobreza e a condição de gênero tornam-se elementos facilitadores para situações de exclusão do mercado de trabalho, na medida em que as mulheres haitianas se dedicam às atividades do lar e possuem pouco contato com o mundo externo, principalmente quando o quesito é educação.

Isso faz com que as mulheres possuam baixa escolaridade e acabem desfrutando de trabalhos de baixa qualificação, bem como, atividades manuais em que não se precisa falar português. Em seu país, geralmente, as mulheres haitianas possuem experiências de trabalho relacionadas ao comércio de produtos, prestação de serviços, ocupações que foram prejudicadas após a ocorrência do terremoto, pois a população teve a renda reduzida, caindo também o poder de compra. (Mejía, Cazarotto, 2017)

Com isso, trabalhar em um serviço em que há a figura de um chefe/líder representa desafio para as mulheres haitianas, por constituir-se uma dificuldade que implica em vivências com modos de vida culturalmente diversos. As haitianas também são pouco vistas nos espaços sociais, restringindo-se mais ao lar, até levar o filho ao médico é um papel desempenhado pelo homem, assim, a mulher haitiana acaba sendo excluída de espaços de socialização e trocas estabelecendo pouco contato com brasileiros. (Mejía; Cazarotto, 2017)

Também, a diferença de escolaridade expressa e legitima uma desigualdade de poder no âmbito familiar, refletindo essa questão no contexto migratório, pois são baixas as possibilidades de acesso das mulheres haitianas a empregos qualificados. Mejía e Cazarotto (2017) apresentam que o grau de escolaridade apresentado pelas mulheres haitianas do fluxo migratório de 2010, com idade entre 25 e 35 anos é mais baixo que o dos homens. Tal condição demanda ações de combate à desigualdade de gênero, esta marcada por elementos próprios da cultura haitiana que se expressam nos hábitos, nas relações sociais e no cotidiano dessas mulheres.

As autoras também destacam que as relações entre casais haitianos são perpassadas pela submissão da mulher ao homem, portanto, a divisão dos sexos é como algo naturalizado. Assim, a mulher fica em situação de dependência do esposo, tendo sua liberdade de decisão fragilizada, dessa forma, os espaços sociais são demarcados por essa relação de poder. Como exemplo, em conclusão as pesquisadoras destacam que “o casal anda pela rua, o homem fica na frente e a mulher segue atrás dele (...) as mulheres são as principais responsáveis pela realização das tarefas domésticas.” (Mejía, Cazarotto, 2017:179)

Identifica-se que os atravessamentos de fatores culturais e de gênero de migrantes haitianas contribuem para processos de inferiorização do sexo feminino, provocando desequilíbrios na educação, no acesso ao trabalho e na constituição de suas vidas. Para compreender melhor a articulação desses elementos em um contexto migratório, faz-se necessário remontar processos históricos e sociais presentes nas relações entre gênero e cultura.

A dialética cultural e de gênero em contextos migratórios

Martins destaca que “a história é o produto dos modos pelos quais os homens organizam sua existência ao longo do tempo e diz respeito ao movimento e as contradições do mundo, dos homens e de suas relações.” (2008:09) Logo, compreendê-la e analisá-la é parte do processo de refletir criticamente sobre o nosso objeto de estudo e afirmação de que o sujeito é um ser social e histórico. Tais aspectos remetem-nos à discussão da materialidade do real como produtora de sensações, ideias e conceitos (Martins, 2008). Sobre isso ainda, podemos afirmar que o efeito da materialidade no indivíduo é ainda mais profundo, sendo elemento constituinte do psiquismo humano, sobre isso:

[...] para Vigotski a ordem, a hierarquia e as relações entre as funções psicológicas – tais como o pensamento e o desejo – mudam de acordo com as posições sociais que os sujeitos ocupam. O psiquismo se constitui assim, de modo intrinsecamente relacionado às condições concretas de vida e existência dos sujeitos e formas de organização das relações sociais humanas. (Vigostky, 1929 como citado em Magiolino, 2014:50)

Desse modo, pode-se entender que a materialidade alcança a elaboração da consciência humana e exerce efeito na constituição do psiquismo. A partir disso, depreende-se que mudanças na estrutura econômica da sociedade, por meio da ação humana, conduziram a transformações na posição social ocupada pela mulher. O avanço do capitalismo tornou possível o incremento de novas ferramentas de opressão/dominação, a luta de classes e o domínio do capital. Verificar como se configuraram aspectos de servidão/dominação do homem em relação à mulher e esta em relação à sociedade permite-nos compreender como historicamente e concretamente instaurou-se uma superestrutura, ideias, valores, pressupostos culturais que outorgam uma posição inferiorizada à mulher na sociedade, no trabalho e no lar.

As expressões culturais impedem que no cotidiano a igualdade e a equidade de direitos entre os gêneros tornem-se algo real, palpável, que transformem a vida da mulher, retirando-a da condição de servas e colocando-a na posição de sujeito ético-político; para isso, compreende-se a necessidade de transformação da realidade material em que estão assentadas as relações de opressão/dominação do homem sobre a mulher.

A emancipação da mulher é vista como ameaça para a classe dominante. Durante a Revolução Industrial, as mulheres proletárias foram impedidas pelos próprios proletários (homens), pois a mão de obra feminina representava um perigo para os postos de trabalho masculino, uma vez que estas trabalhavam por salários mais baixos e poderiam ocupar seus cargos. Com base nisso, o panorama histórico levantado até o presente momento e as discussões levantadas em relação à subordinação do gênero feminino como dado histórico e concreto na relação com os fluxos migratórios de mulheres, é possível compreender a articulação de aspectos culturais e de gênero em contextos específicos, como o da migração, bem como, a incorporação da mulher como sujeito ativo nos fluxos migratórios do presente século.

Nesse aspecto, fatores como o estabelecimento de relações hierárquicas e patriarcais no ambiente familiar, assim como, no acesso que ela possui aos recursos necessários para realizar o deslocamento, como dinheiro e informações, exercem influência na decisão da mulher em migrar. Desse modo, verifica-se que o contexto cultural da sociedade em que a mulher está imersa exerce uma forte influência na mobilidade feminina, visto que essas questões definem o papel da mulher e impõem limitações no ato migratório (Marinucci, 2007). Em outras palavras, “relações hierárquicas nos domicílios, tarefas e ocupações sexualmente definidas bem como diferentes redes e seus usos afetam tanto a seletividade, quanto as estratégias migratórias utilizadas por homens e mulheres.” (Peres, Baeninger, 2016: 04)

As condições envolvem o momento anterior à migração, durante a migração e pós-migração. Além disso, os condicionantes de gênero, do local receptor, influenciam na decisão de migrar e para onde migrar. Ainda que as políticas migratórias aparentem neutralidade no que se refere a aspectos de gênero, podem facilitar ou dificultar a chegada de mulheres por meio do estabelecimento de parâmetros. (Marinucci, 2007)

No momento de cruzar as fronteiras, as políticas migratórias do país de destino podem afetar as estratégias migratórias de homens e mulheres, assim como os postos de trabalho ofertados às mulheres que se baseiam nas ocupações do feminino e do masculino. E por fim, no momento pós-migração envolve a articulação de aspectos referentes à dinâmica do mercado de trabalho do país receptor e papéis sociais na família e no domicílio. (Boyd, Grieco, 2003 como citado em Baeninger, Peres, 2012)

Portanto, vê-se que “a migração feminina pode ser desestimulada pelos estereótipos culturais em relação ao papel da mulher no lugar de chegada.” (Marinucci, 2007) Essas considerações permitem-nos compreender que a experiência migratória é diferente para homens e mulheres, devido às construções do que é ser feminino e masculino, inerentes a cada sociedade, logo, esses fatores serão determinantes no ganho ou na perda de autonomia, na escolha entre permanecer ou retornar. Castro (2006) afirma que no processo migratório, homens e mulheres são perpassados por relações de poder, hierarquia e identidade e diante disso, reconstroem, negociam ou reafirmam essas relações.

A migração feminina possui ainda características emancipatórias, pois representa a saída da mulher do seu ambiente de proteção familiar em busca de uma vida autônoma em outro destino, assim migrar relaciona-se com crescimento e independência. (Chaves, 2009) Porém, esse fato não é geral para a vida de todas as mulheres migrantes, pois, como afirma Marinucci (2007), o aumento da feminização das migrações possui duas faces, pode representar um espaço de empoderamento para a mulher, assim como, pode tornar-se um espaço de violação de direitos.

A fim de superar essa realidade, ao incorporar os diferenciais por sexo, bem como as relações de gênero, às análises de fluxos migratórios, indo além da descrição das diferenças entre homens e mulheres, as teorias de migração avançam no sentido de compreender as experiências das mulheres migrantes em esferas específicas, como: família, domicílio e mercado de trabalho. (Peres, 2011) Estudar os fluxos migratórios a partir da perspectiva de gênero implica apontar o protagonismo da mulher migrante, evidenciando que as mulheres exercem desde sempre um papel relevante nos fluxos migratórios.

Interfaces entre gênero e cultura nas vivências de haitianas migrantes em campo grande-ms

Para compreender as relações de gênero é preciso atentar para as construções sociais baseadas na diferenciação biológica do sexo, o qual é expresso por meio de relações de poder, subordinação, discriminação de funções, ações, condutas e normas esperadas para homens e mulheres em cada sociedade. (Silva, 2012)

Essas diferenciações produzem concepções de ser humano do sexo masculino como portador de qualidades viris, provedor do lar e, do outro lado, constrói concepções do sexo feminino como mantenedora do lar, aquela que dispõe de capacidade de conceber e ter filhos, criadora dos filhos, frágil, dentre outros. (Silva, 2012) Desse modo, segundo Almeida (2014), a superioridade masculina representa um mito criado e condicionado historicamente pela sociedade de classes, o que acarreta a inferiorização da mulher.

As diferenças entre sexos são construídas por meio de experiências e vivências que se dão no contexto histórico-social e não originárias da natureza, pois é no âmbito social que esses aspectos vão ganhar significado e serão utilizados como meio de dominação e subjugação. A infraestrutura, base material da realidade, opera no interior das culturas e um dos meios de consolidação desses elementos é a estruturação de instituições, estruturas governamentais, legislação, ou seja, esta infraestrutura vai compor a base simbólica da sociedade e exercer efeitos na constituição do psiquismo humano e consequentemente na elaboração de relações de gênero expresso por meio das interações e manifestações culturais.

A partir dos dados coletados por meio das entrevistas com os participantes desta pesquisa, no que tange às diferenças culturais e aspectos de gênero e suas configurações em um espaço de migração, os resultados denotam relações hierarquicamente definidas e papéis sociais sexualmente definidos no lar. Foi possível entender que essas configurações compõem como características de sua cultura. Assim, a desigualdade de gênero é um elemento que se encontra arraigado na cultura e essas normas e tradições culturais podem ser promotoras de violência de gênero.

No entanto, processos de emancipação feminina e relações de gênero podem ser evidenciados na migração, inicialmente através da investigação das motivações relacionadas ao ato de migrar, deste modo, as mulheres participantes desta pesquisa destacaram como principal motivo para realizar a viagem migratória o marido:

Note de bas de page 2 :

Os nomes das participantes se relacionam a pedras preciosas. Cada participante assinou um termo de consentimento livre e esclarecido acerca da utilização de suas falas para composição de trabalhos científicos de pesquisa.

Eu recebi apoio do pai do meu neném, que ele tava aqui primeiro, daí ele mandou dinheiro pra mim, ai nós veio pra cá, esse é o meu motivo (Ágata)2;
Meu marido, só meu marido que me ajuda (...) (Ametista);
Marido “neh”? Que ajudou a vir até aqui (Jade).

Esse fato expressa a mulher desempenhando o papel de acompanhante do marido no processo migratório, e, ainda, a migração feminina com caráter de reagrupamento familiar, exercendo uma função de passividade e dependência, com motivações do campo afetivo e familiar. Pode-se considerar que esse é um aspecto que provém da cultura haitiana que possui as marcas de gênero estudadas, as quais outorgam uma determinada posição social à mulher. Além disso, as falas denotam que a função masculina é ser o único provedor econômico, produto de certa cultura social, que por sua vez produz esses discursos, que culmina com a mulher em posição de subordinação financeira ao esposo.

No entanto, duas entrevistadas destacam que chegaram sozinhas ao Brasil, uma delas foi Peróla: “Eu vim aqui sozinha com meu dinheiro “neh”? Mas eu tinha amigas aqui, mas não era em Campo Grande era no São Paulo ‘neh’?” (Peróla)

Essa fala vem ao encontro da proposição de que já é possível observar transformações nas migrações contemporâneas, onde a mulher surge como protagonista, decidindo pela viagem migratória, fato esse destacado na literatura. (Peres, Baeninger, 2016)

A cultura é um elemento vivo no processo migratório e na vida social dos sujeitos, no entanto, assim como o gênero, os estudos nem sempre contemplam a cultura nesse sentido, relevante, ativo e constante nos processos migratórios. Assim, a migração implica o distanciamento entre um mundo conhecido, previsível, com determinadas regras culturais para um mundo desconhecido, não passível de controle. Zohra Guerraoui afirma que essa ruptura provoca “uma fragilização das representações e das referências usuais do sujeito, posto que tudo o que até então era “natural” na sua maneira de perceber e agir no mundo deixa de sê-lo.” (2001, como citado em Dayre, Reveyrand-Coulon, 2009:416)

Nesse processo o sujeito perde sua segurança, sua estabilidade de um mundo ordenado e ganha vulnerabilidade, sendo que essa irá ser expressa além dos domínios culturais, alcançando esferas como família, trabalho, sociedade. Marandola Jr e Dal Gallo (2010) destacam que o rompimento da ligação com o lugar de origem do indivíduo implica efeitos na constituição da identidade e do eu, assim como produz abalos na segurança existencial e na identidade territorial.

A relação que o sujeito estabelece com a cultura possui estreita relação com a construção da personalidade, além disso, a acumulação de conhecimento, a formação cultural é um fator que difere o homem dos animais. Leontiev (1978) destaca que a compreensão de que o homem é um ser de natureza social expressa que tudo o que o homem tem de humano origina-se da vida em sociedade, no seio da cultura que é criada pela humanidade. Ainda sobre isso, Roso et al (2002) apontam que a cultura vai relacionar-se com a produção e a troca de significados que ocorrem entre membros de uma sociedade ou de um grupo.

Desse modo, a migração promove a diversificação cultural por meio de encontros entre culturas, hábitos, costumes, que irão se chocar com os códigos estabelecidos por esses migrantes em seu país. O sujeito acaba por estabelecer processos de adaptação em relação ao idioma, costumes, leis, práticas. Logo, o estabelecimento em uma nova localidade supõe a criação de estratégias, pois as diferenças alcançam as crenças e o cotidiano dos migrantes.

Esses processos apresentam-se em maior magnitude em países de caráter emigratório e dependente das remessas de dinheiro dos emigrados, como o Haiti. Rosendahl (2007) aponta que aspectos culturais do país são influenciados não apenas a partir do seu território geográfico, mas também, a partir do local onde vivem seus nativos. As diferenças mais claras apontadas inicialmente pelas (os) migrantes relacionam-se aos hábitos alimentares e à culinária:

É normal. Só em meu país tem umas coisas que é diferente, lá a gente cozinha carne mais, aqui assa carne mais (Ágata);
Lá é frango, a gente frita frango e lá é banana vocês não come banana e nós come banana verde, abacate vocês só com vitamina, a gente não, come abacate com mandioca, com banana com arroz, é os costumes diferentes, mas, vitamina de abacate eu nunca queria adaptar, mas depois que o pessoal falava pra mim provar, aprovei e comecei a fazer como se tivesse brasileiro mesmo (Ônix).

Logo, as falas apresentam que as (os) migrantes sentem as diferenças em seu cotidiano e denotam estratégias de adaptação decorrentes da aproximação com hábitos distintos, que provoca o fenômeno da integração, o qual representa uma articulação entre o novo e o antigo, uma articulação entre as culturas, Camilleri e Vinsoenneau exemplificam que a integração se relaciona a “posição correlativa à todas as combinações culturais das quais o sujeito estima ter eliminado as tensões devidas à diferença com relação à sociedade de instalação sem abandonar suas antigas referências.” (1996: 55 como citado em Dayre, Reveyrand-Coulon, 2009:417)

No entanto, por meio da fala, foi possível ver que a prática da integração foi produtora de um sentimento de nacionalidade, um sentimento de identificação com a cultura brasileira, o qual produz a identificação com o ser brasileiro. Logo, esses processos exercem uma função de auxílio na vivência do migrante e na construção do seu lar, ainda que em território estrangeiro, restabelecendo a previsibilidade do mundo ora perdida durante o processo migratório.

As diferenças avançam no sentido de irem a encontro com discursos de gênero, o que é e o que não é aceitável, a cultura é um elemento participante e criador de construções do ser masculino e feminino e do ser humano com seus limites e possibilidades, esses aspectos tornaram-se evidentes por meio da fala das (os) entrevistadas (os):

Aqui tem bastante brasileiro que “acostuma” a pintar e fazer tatuagem lá não faz (Ágata);

É, eu não tenho preconceito, mas que meu país tem diferente aqui no Brasil tem duas coisas, tatuagem e eu compreendo e se faz tatuagem não aparenta e isso não é preconceito que tem mas lá não tem, como dizer... Homem e mulher beijando assim na rua, mulher e mulher beijando lá não tem, é proibido (Ônix).

Segundo Dias (2005), o choque cultural provocado pela migração coloca crenças, hábitos e costumes em conflito. Os migrantes questionam ou se readaptam a valores sociais vigentes em cada local. É possível então elaborar padrões o que permite o compartilhamento de significados, exercendo influência no modo como as pessoas regem suas vidas, oferecendo uma lente por meio da qual podem interpretar sua sociedade. Além disso, muitas dinâmicas sociais familiares se alteram em contextos de migração: o migrante, como já dito, traz consigo todo o aprendizado cultural, experiências individuais e as condições da migração alteram esse repertório, esses valores.

Por meio das entrevistas, foi possível verificar aspectos de gênero em conflito, quando Ônix afirma: “Lá homem manda em mulher (...). Tem quem trabalha, mas tem quem o marido não quer” (Ônix).

Vê-se, portanto, o estabelecimento de uma lógica de dominação do masculino sobre o feminino, assim como a apresentação de uma posição social à mulher, a qual se restringe às tarefas domésticas. Sobre isso Beauvoir (2016) destaca o pensamento de Bonald, que afirma que as mulheres pertencem à esfera familiar e não à esfera política, como se a natureza as tivesse feito para as tarefas domésticas e não para as funções públicas. Logo, essa subjugação da mulher é oriunda da estrutura de classe de nossa sociedade.

Esses valores alteram-se, pois em um contexto de migração a mulher necessita trabalhar para auxiliar na renda, assim tradições e costumes entram em choque, necessitando uma nova gestão da vida em família, do cotidiano e do trabalho, diante disso, a figura masculina e seu papel familiar marcado pela opressão e dominação de gênero ficam abalados.

Tedesco (2011) esclarece que a esfera familiar se constitui em um contexto de migração como um espaço de conflito, negociação de hierarquias e desigualdades, as quais fazem emergir estratégias de afrontamento da autoridade masculina e de superação de papéis no seio doméstico-familiar. A migrante haitiana saindo para trabalhar e conquistando autonomia é um exemplo disso. Tais aspectos promovem processos de emancipação feminina, o que conduz ao questionamento das migrantes em relação à sua cultura por meio da visualização de uma cultura diferente, esse fato fica claro nas falas de Ágata:

E também lá é diferente daqui, aqui se você casar com brasileiro, por exemplo, a casa é 500 reais, homem tem que dar 250 e a mulher, lá não, o homem casa com uma mulher o homem tem que pagar. (...) E não pode isso, lá o homem banca a mulher, mas a mulher tem que respeitar o marido, mas também aqui se a mulher paga metade como que homem vai mandar nela? Ela paga também, ela paga casa, comida. (...) Se eu pago casa, pago comida, vocês não vão mandar em mim! (Ágata)

Desse modo, verifica-se que em espaços de migração, as mulheres possuem a possibilidade de rearticular e negociar valores afetivos, familiares e de gênero, por meio do deslocamento das funções de reprodução social e manutenção do lar. A inserção no mercado de trabalho, tendo em vista o universo cultural das haitianas migrantes podem representar caminhos de emancipação e mudanças nas relações de gênero, por meio do maior poder de decisão no lar, diante da possibilidade de dividir o sustento da casa e sair da condição de dependente financeira do marido.

Alvarez afirma que “o cruzamento de fronteiras também sempre “reposiciona” e transforma subjetividades e visões do mundo” (2009:744), assim, para mulher, a migração também pode ser um processo de organização de papéis de gênero, possibilidade de novas maneiras de viver e questionamento de práticas de dominação. As alternativas de emancipação feminina em um contexto de migração podem provocar no homem sensações de impotência e incapacidade no cumprimento do dever de prover o sustento às suas famílias, visto que na cultura haitiana o homem é posto como provedor do lar. Assim, a migração é um fenômeno propulsor de processos de aculturação, tendo em vista as possíveis mudanças de valores, com isso, mulheres migrantes mais aculturadas modificam sua posição em relação ao homem, descristalizando padrões de gênero rígidos. (Alencar-Rodrigues, Strey & Espinosa, 2009)

Por fim, Àgata ao ser questionada sobre qual cultura ela achava mais adequada, diz: “A melhor foi lá neh? Se homem casa tem que manter a mulher é obrigação” (Ágata). Essa concepção provém da internalização das normas de sua referida cultura, as quais tornam as ações sociais significativas para o indivíduo. Esses discursos culturais dão sentido e significado às ações das mulheres haitianas, visualizando essas marcas de gênero como uma forma de proteção para si mesma e seus filhos. Dias (2005) destaca que no processo migratório há o encontro com diferentes regras sociais: a descoberta de novos hábitos e o recurso de acesso a novos códigos, ambos apontam para o processo de trocas culturais e fenômenos interculturais. Desse modo, a migração supõe uma capacidade de adaptação do sujeito, ser flexível, e lidar com consequências inesperadas. Bem como a migração altera as condições e posições dos sujeitos na sociedade.

Considerações finais

O presente artigo possibilitou colocar em evidência fenômenos culturais presentes nos processos migratórios em relação às dinâmicas de gênero e o potencial existente na migração de modificar aspectos culturais. Vê-se que a experiência migratória traz à tona o contraste entre aspectos culturais, identitários e de gênero. A migração provoca o contato com o diferente, com aspectos culturais por meio da aproximação de comunidades.

Ao visualizar essas diferenças entre normas e comportamentos da cultura haitiana (que diz respeito ainda às suas afinidades) com a cultura patriarcal brasileira, evidencia-se a dinâmica e ambiguidade de aspectos culturais.

O nosso objetivo com o trabalho não foi julgar uma cultura pelas normas e valores de outra, mas compreender as diversidades culturais e seu impacto e articulação em um ambiente de migração, a fim de identificar quais estratégias migratórias de adaptação essas mulheres migrantes estão realizando nesse novo espaço em que estão inseridas.

Os encontros culturais possibilitados por um cenário global marcado pela mobilidade humana podem possibilitar práticas eficazes de enfrentar culturas prejudiciais e eliciadoras de sofrimento, assim como fortalecimento de aspectos positivos, por meio da integração.

Propor a igualdade de gênero ampla e que se estenda para diversas localidades só é possível por meio de aproximação e diálogo entre diferentes culturais, propiciando por meio de ações reflexivas, críticas abrangentes para repensar a construção das comunidades específicas. Ainda, pode-se conceber que o processo de migração desconstrói a concepção de cultura delimitada em um espaço geográfico e demarcada por linhas de fronteira, devido à promoção de novas conexões culturais por meio da mobilidade.

O ato de migrar representa não apenas um deslocamento do indivíduo, mas, também o deslocamento de práticas culturais, tradições e costumes. Assim, adentrar em um novo país possibilita uma tensão e constante negociação entre adaptação e conservação cultural e nesse processo estrangeiros e nativos são transformados.