Atendimento à população venezuelana no Brasil: uma análise da “reserva do possível” e do mínimo existencial Attendance to venezuelan population in Brazil: an analysis of the “reserve of the possible” and the “existential minimum”

Eridiana Pauli 
and Luciane Pinho de Almeida 

https://doi.org/10.25965/trahs.1606

Este artigo tem por objetivo discutir o atual cenário político e econômico da Venezuela que ensejou a migração de inúmeras pessoas de seu país devido às instabilidades econômicas e inaplicabilidade de direitos e garantias individuais. Ao migrar para o Brasil em busca de melhores condições para sua subsistência, essa população em vulnerabilidade encontra diversos desafios que estão além da diferença cultural, como por exemplo, o preconceito e desconhecimento ou inaplicabilidade de seus direitos para seu destino migratório. Com isso, busca-se explorar quais os direitos do migrante venezuelano e como os mesmos estão sendo atendidos pelo Estado brasileiro, fazendo uma análise da perspectiva de tratados de Direitos Humanos e da Lei de Migração.

Cet article a pour objectif de discuter du scénario politique et économique actuel au Venezuela qui a conduit à la migration d’un nombre incalculable de personnes de leur pays en raison de l’instabilité économique et de l’inapplicabilité des droits et garanties individuels. Lorsqu'elle émigre au Brésil à la recherche de meilleures conditions de subsistance, cette population vulnérable doit faire face à plusieurs défis qui dépassent les différences culturelles, tels que les préjugés et le manque de connaissances ou l'inapplicabilité de leurs droits sur leur destination migratoire. Avec cela, on cherche à explorer les droits des migrants vénézuéliens et la manière dont l'État brésilien les sert, en analysant la perspective des traités relatifs aux droits de l'homme et de la loi sur la migration.

Este artículo tiene por objetivo discutir el actual escenario político y económico de Venezuela que ha propiciado la migración de innumerables personas de su país debido a las inestabilidades económicas e inaplicabilidad de derechos y garantías individuales. Al migrar a Brasil en busca de mejores condiciones para su subsistencia, esa población en vulnerabilidad encuentra diversos desafíos que están más allá de la diferencia cultural, como por ejemplo, el prejuicio y desconocimiento o inaplicabilidad de sus derechos para su destino migratorio. Con ello, se busca explorar cuáles son los derechos del migrante venezolano y cómo los mismos están siendo atendidos por el estado brasileño, haciendo un análisis de la perspectiva de tratados de Derechos Humanos y de la Ley de Migración.

This article aims to discuss the current political and economic scenario in Venezuela that has led to the migration of countless people from their country due to economic instabilities and the inapplicability of individual rights and guarantees. People migrate to Brazil in search of better conditions for their subsistence, this vulnerable population encounters several challenges that are beyond cultural difference, such as prejudice and lack of knowledge or inapplicability of their rights to their migratory destination. Thus, it is sought to explore the rights of the Venezuelan migrant and how they are being served by the Brazilian state, making an analysis of the perspective of Human Rights treaties and the Migration Law.

Contents
Full text

Introdução

Os países da América Latina, desde os primórdios do ingresso europeu nas terras habitadas somente pelos povos nativos, sofreram com a intensa exploração capitalista, possibilitando a edificação das grandes potências existentes nos dias atuais e da mesma forma, contribuindo para o acentuado contraste social existente nos países considerados atualmente como subdesenvolvidos.

Nesse sentido, relata Karl Marx, na sua obra O Capital:

A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles-negras caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva. (Marx, 2014: 998)

Durante o governo de Juan Vicente Gómez e a consolidação do Estado Nacional venezuelano, o país engajou-se na exportação de petróleo para os Estados Unidos. Apesar do notável número de exportações, chegando à colocação de maior exportador do mundo, a situação econômica do país não refletia a façanha petrolífera, a desigualdade social se agravara, o país ainda não possuía diversidade de produção econômica e ainda apresentava um regime político instável. Galeano descreve a contradição econômica da Venezuela:

Da Venezuela provém quase a metade dos lucros que os capitais norte-americanos subtraem de toda a América Latina. Esse é um dos países mais ricos do planeta e também um dos mais pobres e mais violentos. Exibe a mais alta renda per capita da América Latina e possui a mais completa e ultramoderna rede de estradas; em proporção ao número de habitantes, nenhuma outra nação do mundo bebe tanto uísque escocês. As reservas de petróleo, gás e ferro que seu subsolo oferece à exploração imediata poderiam multiplicar por dez a riqueza de cada um dos venezuelanos; em suas vastas terras virgens poderia caber, inteira, a população da Alemanha ou da Inglaterra. Em meio século, as sondas extraíram uma renda petroleira tão fabulosa que representa o dobro do Plano Marshall para a reconstrução da Europa; desde que jorrou o primeiro poço, a população se multiplicou por três e o orçamento nacional por 100, mas boa parte da população, que disputa os restos da minoria dominante, não se alimenta melhor do que na época em que o país dependia do cacau e de café. (Galeano, 2016: 221)

A aliança feita com os norte-americanos aproximou as oligarquias do país e incentivou o distanciamento de negociações econômicas com os países vizinhos, o que gerou o esgotamento dos recursos deste, não lhe dando nenhum retorno rentável, repetindo a situação ocorrida durante o período colonial. O cenário em que se encontrava apenas tomou outras veredas com a queda do preço do petróleo em 1980, o que gerou a necessidade de reavaliar o mercado do país e permitir que a América Latina se transformasse em um dos protagonistas para o consumo do produto, todavia, o mercado Venezuelano ainda mantinha grande dependência dos EUA. O governo de Chávez tentou romper com essa constante dependência dos nortes americanos, contudo, em diversas ocasiões, enfrentou profundas crises e demonstrou sua face autoritária.

Ao analisar o contexto político venezuelano, percebe-se que com a tentativa de dar continuidade ao legado de Hugo Chávez, o governo de Maduro sofre grandes rejeições decorrentes da má administração, além da falta de carisma e da ausência de uma oratória carregada de comoção, o que garantia o apoio popular no governo anterior, ainda que os discursos fossem radicais, como é descrito:

Por não apresentar as mesmas qualidades populistas de Chávez, Maduro teve que recorrer à Força Militar para garantir a manutenção do seu poder. Enquanto Chávez detinha o poder através das urnas, Maduro se apoia no Exército, o que, na opinião de muitos estudiosos, se mostra antidemocrático, autoritário e totalitário. (Bastos; Obregón, 2018: 12)

A Venezuela sempre foi reconhecida pela sua produção de petróleo, o minério que desde o século XX foi reconhecido como o maior bem do país, também é sua fonte de preocupações. O preço do petróleo é condicionado pelo mercado mundial, com a nacionalização do produto durante o governo de Chávez e a alta dos preços no mercado, foi possível a reversão de parte dos lucros em benefício de programas sociais, sendo assim, toda a dinâmica de aplicação da renda depende do mercado externo.

De acordo com Bastos e Obregón (2018) apesar da economia ter melhorado com altos preços dos barris de petróleo no governo de Chávez, a infração passou a ser uma preocupação para o país, buscando-se controlá-la com a regulação do câmbio, contudo, a dependência econômica do petróleo apenas se agravou na medida em que havia uma supervalorização cambial. Os efeitos dessa medida não se amenizaram com o governo de Maduro, sendo que, a inflação estava ainda mais alta e houve uma queda do PIB “per capita”. Em consequência, a política de limitação dos lucros, fez com que setores que não estavam ligados ao petróleo subissem os preços de seus produtos, criando um ciclo vicioso, no qual se dependia mais do petróleo e a inflação ressurgia ainda mais alta.

Note de bas de page 1 :

Mesa da Unidade Democrática .

Maduro também foi perdendo força no Legislativo e começou a ter suas propostas normativas rejeitadas, contando apenas com o apoio do Executivo e do Judiciário, isso porque ao votar nas urnas, o povo escolheu como maioria parlamentar o partido da oposição MDU1, gerando mais acusações de fraudes contra aqueles que assumiram os mandatos em decorrência do judiciário venezuelano a se declarar chavista, assim expõe dos autores:

Tendo em vista que o Judiciário Venezuelano é chavista, os mandatos de alguns opositores foram considerados fraudulentos, no entanto, a Assembleia Nacional desobedeceu a decisão da Corte e, esta declarou o “estado de desobediência” do Parlamento, agravando, ainda mais, a crise institucional do país (Bastos; Obregón, 2018: 20)

A trajetória que levou a Venezuela a vivenciar a crise que perdura há cinco anos, fez com que o país ficasse reconhecido pelos governos autoritários, pela falta de produtos básicos, pelo salário mínimo a um preço ínfimo, não sendo suficiente para comprar um quilo de frango, assim como, os constantes confrontos políticos de grupos armados deixam inúmeras pessoas feridas e mortas, chocando o mundo todo e semeando o medo e o terror na população venezuelana que atualmente vive em um país com total ausência de garantias e reafirmações dos direitos humanos, permeado pela instabilidade e um governo opressor, sem perspectivas de quando a situação será diferente.

Maduro segue sua política retrógada, tentando exercer o mesmo modelo de gestão do passado, desempenhando uma administração ruim, sem trazer verdadeiros estímulos à população e previsões de melhoras para a economia da Venezuela e continua a transmitir a culpa para os Estados Unidos, alegando que o país gera constantes aumentos de tarifas para a importação e as oligarquias influenciam no contrabando e aumento dos preços. O que se observa é o grande interesse americano nas reservas petrolíferas venezuelanas aumentando o conflito entre os dois países e desencadeando uma crise econômica e política entre eles. Ou seja, em suma, percebe-se que a Venezuela possuiu um histórico marcado pela exploração do petróleo, com uma disputa entre estatais estrangeiras e o próprio governo para obter o monopólio do bem, gerando variadas mudanças econômicas que afligem de forma direta o país, por desempenhar todas suas atividades em torno do minério, sendo extremante dependente do mercado exterior para viabilizar melhoras para a economia e para a população. Outro grande determinante para a desenvoltura econômica foi a aplicabilidade dos recursos em garantias sociais, que nem sempre foi executada em todos os governos, impedindo a diminuição da pobreza.

Nesse cenário de insegurança econômica, conflitos políticos e gradual ausência de direitos, muitas pessoas optaram por deixar a Venezuela em busca de melhores condições para sua subsistência. O migrante encontra-se em uma posição extremamente vulnerável por tratar-se de uma população que é distanciada de suas origens e que muitas vezes, por força da situação política e econômica da sua terra natal sofre um processo de êxodo para diferentes localidades, em busca de seguridade.

Conforme a resolução n. 45/158 realizada pela Assembleia Geral da ONU, no dia 18 de dezembro de 1990 foi adotada a Convenção Internacional sobre a Proteção de direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros de suas famílias, que só entrou em vigor no dia 1 de julho de 2003. Até o ano de 2012, apenas 46 Estados faziam parte, verificando-se, portanto, que é o tratado de direitos humanos com o menor número de ratificações (Piovesan, 2012).

Assim, este artigo tem por objetivo buscar uma breve reflexão sobre o atual cenário político e econômico da Venezuela que ensejou a migração de inúmeras pessoas de seu país devido às instabilidades econômicas e inaplicabilidade de direitos e garantias individuais, principalmente no que tange a migração de venezuelanos para o território brasileiro.

A pesquisa realizada teve como referencial teórico o materialismo histórico dialético, que busca desenvolver uma análise crítica acerca do contexto social que determina o movimento migratório. Por ser um tema bastante atual, utilizamos para a coleta de dados noticiários jornalísticos sobre o tema nos anos 2017 e 2018 momentos de importância repercussão da crise econômica e política da Venezuela. Embora, a crise venezuelana ainda está em andamento, para este artigo e os resultados desta pesquisa apoiamos apenas neste período. Também utilizou-se da pesquisa bibliográfica buscando embasamento em diferentes autores acerca da questão migratória, social e econômica, permitindo que fosse reunido dados investigativos que serviram de base para a desenvoltura deste trabalho, pautando-se em diversos autores, como Flávia Piovesan, George Galindo e outros.

Assim, este artigo apresenta uma reflexão a partir dos resultados da pesquisa realizada sobre a migração de venezuelanos para o Brasil, a garantia de direitos e as políticas migratórias brasileiras.

1. Migração Internacional e a garantia de direitos das populações

A ONU expressou sua primeira preocupação em relação aos trabalhadores migrantes em 1972 e somente em 1990 recomendou a elaboração sobre os direitos dos Trabalhadores Migrantes. Sob a ótica dos Direitos Humanos, a Convenção trata de parâmetros protetivos que devem ser aplicados aos trabalhadores migrantes e suas famílias, levando em consideração a situação de vulnerabilidades em que se encontram.

A Convenção preceitua o princípio da não discriminação, como um princípio fundamental da Convenção, endossando a Convenção que os “Estados - partes” se comprometem a respeitar e a garantir os direitos previstos para todos os trabalhadores migrantes e membros da sua família, os quais se encontrem em seu território e estão sujeitos à sua jurisdição, sem distinção alguma, conforme o artigo 7º (Piovesan, 2012).

Apesar das melhorias que a Lei de Migração de n° 13.445 trouxe, rompendo com as características herdadas do período de ditadura militar no país, o Brasil ainda carece de aprimoramento do tratamento das especificidades do sujeito que é migrante. O reflexo da aceitação da entrada de estrangeiros, parte do princípio capitalista de que é necessária a mão de obra barata, por outro lado, muitos Estados ainda temem a migração e protegem suas fronteiras justificando a segurança nacional. Deve ser analisado mais adiante se há contradição entre as normas que garantem o direito de migrar e a soberania dos Estados, bem como se é possível ambos coexistirem (Galindo, 2015).

É certo que os indivíduos possuem o direito de migrarem, mais que isso, estão resguardados pelo direito de igualdade e não discriminação. Em 2002, a Corte Interamericana manifestou um parecer relatando que a população migratória possui essas garantias, sendo estas aplicáveis à todos os indivíduos que encontrando-se sob a jurisdição de um Estado, independentemente de ter sua situação regularizada ou não, pela simples condição de ser humano, não sendo relevante o fato de o Estado que recebe o migrante, ter ou não ratificado os Tratados de Direitos Humanos (Galindo, 2015)

Note de bas de page 2 :

Alto Comissionado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

Note de bas de page 3 :

Estado brasileiro localizado na fronteira com a Venezuela.

Note de bas de page 4 :

Município brasileiro localizado no norte do estado de Roraima, na fronteira com a Venezuela. A cidade de Pacaraima vem recebendo inúmeros migrantes venezuelanos, os quais cruzam a fronteira “à pé”, pois trata-se de fronteira “seca”, ou seja, é uma fronteira, divisa entre dois lugares, podendo ser países, estados, onde não existe um rio, lago, ou oceano separando, apenas uma delimitação simbólica (em terra).

Em setembro do ano de 2018 a Defensoria Pública da União - DPU (Brasil) recebeu o representante da ACNUDH2 que na oportunidade solicitou informações sobre atuação da DPU no estado de Roraima3, a respeito dos migrantes venezuelanos. Desde agosto do mesmo ano, a defensoria tem realizado a “operação Pacaraima4”, como objetivo de resguardar direitos dos que se encontram em situação de vulnerabilidade e constatando a articulação das autoridades para recepcionar os migrantes na fronteira. Além disso, foi emitido recomendações da DPU à Casa Civil da Presidência da República para que fossem adotadas medidas urgentes para o término de obras e prosseguimento das atividades de Posto de Apoio que servem como abrigamentos humanitários (Defensoria Pública da União, 2018).

Note de bas de page 5 :

Etnia indígena venezuelana.

Foi feita também uma ressalva quanto ao atendimento das crianças indígenas em relação aos procedimentos de identificação e proteção das crianças e adolescentes Waros5, que têm chegado ao Brasil sem o acompanhamento de um adulto.

Vale ressaltar ainda que em 2016, houve um pedido de “Habeas Corpus” coletivo para que fosse evitada a deportação de 450 venezuelanos, bem como, a recomendação às autoridades policiais de Roraima para que obstruísse manifestações de xenofobia no estado. Além desta ação, a DPU também propôs uma ação coletiva juntamente com o Ministério Público Federal para isenção de taxa dos pedidos de residência à população. Ademais, foi necessário a solicitação do Supremo Tribunal Federal (STF) para que ingressasse como amicus curiae contra o provimento de uma ação civil originária de n. 3121, na qual o Estado de Roraima pediu o fechamento da fronteira com a Venezuela. (Defensoria Pública da União, 2018)

Diz a referida ação:

Argumenta a ré que, dentre os diversos pedidos feitos na inicial, pretende o Estado autor obter tutela antecipada para que “seja compelida a fechar temporariamente a fronteira Brasil-Venezuela a fim de impedir que o fluxo imigratório desordenado produza efeitos mais devastadores aos brasileiros e estrangeiros residentes no Estado de Roraima; ou que seja compelida a limitar o ingresso de refugiados venezuelanos a uma quantidade compatível com a capacidade do Estado Brasileiro de acolher e prover as necessidades básicas de tais estrangeiros, até que sejam minimizados e corrigidos os impactos sociais e econômicos decorrentes dos milhares de estrangeiros que estão no Estado de Roraima (STF, 2018, ON-LINE).

Ademais, em sua decisão a ministra pronunciou-se no seguinte sentido: “Houve a tentativa de conciliação sobre as questões em que cabível, excluído o tema de ‘fechamento da fronteira’, sobre o qual proferi decisão negativa (evento 206)”. Percebe-se que ao tratar de garantias dispostas em tratados internacionais que dizem respeito ao refúgio humano, em consonância com essas normas internacionais a Ministra Rosa Weber indeferiu o pedido do Estado de Roraima por infringirem diretamente Constituição Federal, a Lei da Migração e ainda o Acordo sobre documentos de viagem dos Estados Partes do Mercosul e Estados Associados, ao qual Brasil e Venezuela aderiram.

Com isso, comprova-se que a tentativa impetrada pelo Estado em fechar suas fronteiras, bem como colocou a ministra e o Procurador-Geral da República, trata-se de uma medida inconstitucional, que viola Tratados Internacionais de Direitos Humanos e a própria Lei de Migração.

2. A acentuada vulnerabilidade dos indígenas Waraos venezuelanos

Em decorrência da instabilidade política, da fome e da violência, muitas famílias migram, deixando o país. Atualmente a estimativa é de que mais de 40 mil venezuelanos cruzaram a fronteira do país em busca de refúgio, a maior parte deles se encontra instalados em Roraima. Dentre essa enorme quantidade de migrantes, há os indígenas da etnia Warao, provenientes da região do Delta Amaruco. Esses indivíduos deslocam-se em grupos compostos por familiares e apesar da maior parte estar fixada em Boa Vista, sabe-se que muitos se deslocaram para as regiões de Manaus e Pacaraima, indicando que mobilidade desse grupo é constante (Costa; Brandão; Oliveira, 2018).

Na maior parte das vezes o deslocamento não ocorre com todos os membros familiares, muitos ficam na Venezuela e aguardam a chegada de recursos econômicos ou pretendem se encontrar novamente em outro local designado, fato é que tantos os migrantes indígenas como os não indígenas, vêem essa situação de um ângulo provisório, demonstrando interesse de retornar ao seu país de origem. A situação desses indígenas que migram é precária, muitos não possuem nenhum tipo de documentação e encontram-se na linha da pobreza, com isso, é muito comum a prática da mendicância por parte dos grupos indígenas que buscam formas de subsistência.

Em decorrência da quantidade de grupos indígenas como pedintes nas ruas, o governo brasileiro tomou a inciativa de deportar cerca de 450 membros desse grupo com a intenção de inibi-los, justificando que a permanência dos mesmos seria irregular em virtude da ausência de documentação. Tratando-se de um ato que infringe um tratado internacional e por decisões consolidadas do Supremo Tribunal Federal, esses tratados internacionais possuem efeito supralegal, com isso, devem ser respeitados. Em decorrência da violação de normas internacionais, a Defensoria Pública impediu que o ato se consumasse. Como demonstra os dados a seguir, os CRI contavam com uma superlotação no início do ano:

Note de bas de page 6 :

O ano foi inserido na citação pelas autoras, para melhor esclarecimento ao leitor.

Centro de Referência ao imigrante, localizado no antigo estádio de esportes do bairro Pintolândia, periferia de Boa Vista, está abrigada a maior parte dos Warao. No mês de fevereiro deste (20186), conforme a Fraternidade Humanitária que está dando suporte no centro, o número total de abrigados era de 209 pessoas, com 143 indígenas (54mulheres, 38 homens e 51 crianças Warao) e 66 não indígenas. Esse número com o fechamento do primeiro semestre deste ano mais que dobrou, passando para quase 500 indígenas ao todo. Mesmo retirando as famílias indígenas das ruas, o centro continua a não oferecer condições estruturais para o acolhimento devido dos refugiados. A trajetória dos indígenas até a chegada em Boa Vista e a sua permanência em caráter de refúgio, configura um marco histórico para o Estado, de mudanças e trocas culturais e imagéticas, por se tratar de um contexto de imigração inaugural no Brasil, e no mundo (Aragão, 2018: 7).

Os venezuelanos que migram são de diversas regiões da Venezuela e possuem suas diferentes características, no caso dos indígenas Warao a transição cultural sofrida é muito mais acentuada, pois não se trata apenas da diferença entre os países, mas também o modo de vida indígena faz com que as dificuldades encontradas aqui sejam maiores, gerando um duplo distanciamento cultural, que resulta na degradação da cultura indígena e venezuelana simultaneamente.

Os grupos que vivem em Roraima encontram conflitos entre os próprios indígenas e não indígenas devido a superlotação do Centro de Referência ao Imigrante (CRI), não obstante, estão ausentes de suas práticas culturais e da proximidade com as terras tradicionalmente ocupadas, todavia, a ausência cultural não se sobrepõe as dificuldades enfrentadas na terra natal, conforme descreveu o artigo da revista Pan Amazônica de Comunicação (Folha, 2017).

Desde 2014, o Brasil recebe um alto fluxo de venezuelanos em decorrência da crise vivida pelo país, a grande maioria desses migrantes acumulou-se em Roraima devido ao fato de o estado fazer fronteira com a Venezuela. No ano de 2017, houve uma superlotação, o que levou o governo a pensar em uma redistribuição desses migrantes pelo país. 164 solicitantes de refúgio foram enviados para três diferentes cidades no início do mês de julho de 2017 sendo elas Igarassu, em Pernambuco; Conde na Paraíba - PB e Rio de Janeiro - RJ, conforme os dados do site de notícias Agência Brasil e além dessas, aconteceram outras distribuições de migrantes, conforme verifica-se a seguir:

De acordo com o governo federal e com a Organização das Nações Unidas (ONU), a interiorização é o processo de promover a mudança de venezuelanos para outros estados do país. Até o dia 15 de maio, segundo a ONU Brasil, 527 venezuelanos foram distribuídos entre São Paulo, Manaus e Cuiabá. O processo conta com o apoio técnico da Agência da ONU para Refugiados, da Organização Internacional para as Migrações e do Fundo de População das Nações Unidas (Martins, 2018:1).

Além disso, a situação dos indígenas venezuelanos refugiados mostra-se bastante precária em decorrência da falta de assistência. O Centro de Referência ao Imigrante, criado em 2016 para receber os migrantes venezuelanos, está com a capacidade máxima de acolhimento e o maior número de ocupantes é de indígenas, contudo, muitos deles permanecem nas ruas pedindo esmolas, as crianças estão sofrendo de desnutrição e com a falta de alimentos, os pais passaram a optar por alimentá-las com refrigerante, sendo corriqueira a cena de uma criança indígena portando uma mamadeira desta bebida nas mãos, como relata o noticiário, “De fato, as crianças beberam altas quantidades de refrigerante em poucas horas. Bebês carregavam mamadeiras cheias da bebida. Quando conseguiam algum dinheiro, os índios compravam a bebida em barracas (...)” (Machado, 2017).

Outro problema que afeta esses grupos indígenas que cruzam a fronteira do Brasil é a exploração do trabalho escravo, sendo que já houve muitas denúncias de que brasileiros estariam se aproveitando deles financeiramente ou atuando no tráfico de pessoas e utilizando os indígenas como “coiotes”, ou seja, traficantes. A situação desses refugiados é preocupante e necessita de uma resposta ágil do governo para que se resolva a falta de recursos básicos, como alimentos, saúde, moradia e mais centros de apoio para que se evite a constante violação de direitos desses povos (Machado, 2017).

As inciativas tomadas pelo Estado após a restrição de deportação interposta pela Defensoria Pública foi a regulamentação do visto para a permanência no país, a regulamentação custa trezentos reais e necessita de alguns documentos pessoais. Tratando-se do caso indígena, a inciativa do governo possuiu uma face inerte e ineficaz, quando estamos falando de pessoas que estão na extrema pobreza e não possuem documentação, contudo, em alguns casos a Justiça Federal manifestou a não necessidade do pagamento de custas (Machado, 2017).

Ademais, a crise econômica vivenciada pelo Brasil também está agravando a situação dos refugiados, em vista que, o corte de verbas públicas para os municípios fetam diretamente quem mais necessita dos serviços públicos, como o de saúde. Até o momento foi somando um total de 80% que é voltado ao atendimento dos venezuelanos, como demonstra a matéria a seguir:

As autoridades não conseguem dar uma resposta humanitária aos migrantes que chegam todos os dias na cidade. O Ministério Público Federal (MPF) enviou este mês uma recomendação aos governos federal, estadual e ao município pedindo auxílio social, humanitário e de saúde aos migrantes Warao. Na ocasião duas crianças morreram: uma por catapora e a outra por pneumonia. Um homem morreu por infarto. Outra preocupação das instituições é com o anúncio do 1°. Plano de Contingência que o governo do presidente Michel Temer (PMDB) organiza na fronteira do Brasil com a Venezuela, que pode causar restrições a vinda de refugiados índios e não índios para Manaus. Autoridades como o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto (PSDB), defendem a instalação de “um campo de refugiados e uma barreira” na fronteira para impedir a chegada de mais índios Warao na capital amazonense (Farias, 2017:1).

Além da manutenção dada pelas autoridades, muitas pessoas estão se mobilizando com o intuito de ajudar os refugiados, diversas doações de alimentos e outros itens necessários são feitas anonimamente, entidades religiosas também fazem doações e demonstram seu suporte oferecendo abrigos, contudo, os esforços da população não atendem toda a demanda de necessitados que aguardam em situação de extrema vulnerabilidade por uma resposta das autoridades (Farias, 2017).

Por mais que o governo da Venezuela negue a crise existente em seu país, ela se mostra cada vez mais evidente, trazendo com ela diversas questões. O número de pessoas que migram da Venezuela cresceu desde 2016, chegando a 4.670 casos de refugiados que aguardam alguma resposta das autoridades brasileiras, sendo que apenas 89 deles foram decididos, além disso, a assistência dada pelas autoridades viola leis que asseguram a proteção dos Direitos Humanos, como foi o caso da primeira deportação de venezuelanos, perfazendo o número de 20 pessoas em 2015, 514 em 2016 e uma nova tentativa no mesmo ano de 450 membros indígenas da etnia Warao (Watch, 2017).

Em maio de 2016, após o Secretário Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), Luis Almagro, ter apresentado um relatório sobre os direitos humanos e a crise humanitária na Venezuela, o Conselho Permanente da OEA concordou em seguir com uma avaliação da conformidade da situação na Venezuela com a Carta Democrática Interamericana, apesar do governo venezuelano afirmar que isso violaria a sua soberania. Em meados de março de 2017, Almagro reabriu o debate. afirmando que a Venezuela estava violando os princípios da carta (Human Rights Watch, 2017:1).

A solução encontrada pela Polícia Federal para evitar as deportações foi a distribuição de um comprovante para agendamento da solicitação de pedido de refúgio, apesar de não ser um ato previsto em lei, foi a alternativa criada para controle de solicitações em razão do número de pedidos ser muito maior do que a capacidade de atendimento dos funcionários públicos (Watch, 2017).

Ainda que a hipótese de deportação seja descartada, essas pessoas que aguardam a regularização da sua permanência no país continuam em estado de extrema vulnerabilidade, pois não conseguem a documentação necessária para fazer a carteira de trabalho e quando conseguem algum tipo de trabalho informal, muitas vezes são explorados, como foi relatado o caso dos indígenas Warao. Outra situação preocupante é o caso de mulheres que sofrem abusos e violências e não fazem denúncias, pois temem a deportação caso procurem as autoridades policiais (WATCH, 2017).

Muitos dos relatos feitos por pessoas, que estavam sendo deportadas demonstraram que a Polícia Federal fazia poucas perguntas, abordava pessoas no meio da noite, recolhiam documentos de identidade daqueles que os portavam, assim como, mantinham um padrão de relatos nos termos de deportação, onde só era modificado a numeração do documento e o nome dos envolvidos (Watch, 2017).

3. Aplicação do Mínimo Existencial e a Reserva do Possível na questão migratória venezuelana ao Brasil

O Congresso Nacional brasileiro em 2017 criou uma nova Lei de Migração, tomando novas veredas diferentes do Estatuto do Estrangeiro que foi criado durante o período da Ditadura Militar. Sendo assim, a lei criada não priorizou a segurança nacional, em vez disso a nova lei pautou-se nos princípios dos Direitos Humanos. A principal reformulação seria na concessão do “visto humanitário” para cidadãos que estão migrando de países “de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de grave violação de direitos humanos, de direito internacional humanitário, ou em outras hipóteses”, conforme descreve o Human Right Watch (Watch, 2017).

O crescente número de migrantes que chegam ao Brasil traz consigo algumas indagações. É preciso compreender os recursos possíveis que o governo deverá despender para a manutenção do mínimo necessário para que esses migrantes possam manter-se sem que a dignidade de sua existência seja ferida em detrimento da ausência de recursos.

Para tanto, é necessário ser elucidado os conceitos básicos do mínimo existencial e da reserva do possível. O mínimo existencial é compreendido como a diversidade de elementos necessários e indispensáveis para manutenção da existência humana, não sendo levado em consideração tão somente e existência física, mas também em outros aspectos, sejam eles espirituais ou intelectuais. Ivja Machado os descreve como; “[...] aspectos fundamentais em um Estado que se pretende, de um lado, democrático, demandando a participação dos indivíduos nas deliberações públicas, e, de outro, liberal, deixando a cargo de cada um seu próprio desenvolvimento.” (Machado, 2008:6).

Já a reserva do possível está elencada a ideia de efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais que para sua efetivação dependem de disponibilidade de recursos econômicos. Além disso, além dos direitos sociais, os direitos políticos também demandam investimento por parte de Estado, sendo que ambos enfrentam escassez dos recursos públicos. Na situação fática vivida pelo Brasil, é evidente a má distribuição dos recursos existentes em vista que o país está entre as maiores economias do mundo e ainda assim, grande parte das famílias possui uma renda tão ínfima.

Daí que não pode prevalecer a justificativa, geralmente utilizada, sobre a impossibilidade material de angariar recursos, com o propósito de impedir a mudança social a ser promovida pelo Direito. Na maioria das vezes, o problema reside na escolha de prioridades na aplicação dos recursos ou até mesmo na violação de outras normas, cujo propósito seria exatamente a criação de condições para o avanço. A incoerência da tese da reserva do possível como obstáculo intransponível à efetivação dos direitos sociais se torna ainda mais patente, quando se tem notícia que o Brasil figura entre os dez países com maior economia do mundo, apesar de dados do IBGE mostrarem que, em 1998, 21 milhões da população brasileira são famílias com renda inferior à linha de indigência e 50 milhões à linha de pobreza (Machado, 2008:4).

A aplicabilidade da reserva do possível não pode ser utilizada à todo momento como justificativa para a má distribuição da renda e resultar no impedimento da desenvoltura da sociedade, deve haver critérios para aplicação e manutenção das prioridade para que não haja violações de normas que envolvam a asseguração dos diretos sociais e não haver o desprezo das garantias elencadas na Constituição Federal (Machado, 2008).

Ademais, discute os autores acercas dos direitos sociais:

A partir disso, ao se empreender uma tentativa de definição dos direitos sociais, cumpre aceitar a vontade expressamente enunciada do Constituinte, no sentido de que o qualificativo de social não está exclusivamente vinculado a uma atuação positiva do Estado na implementação e garantia da segurança social, como instrumento de compensação de desigualdades fáticas manifestas e modo de assegurar um patamar pelo menos mínimo de condições para uma vida digna (o que nos remete ao problema do conteúdo dos direitos sociais e de sua própria fundamentalidade). Tal consideração justifica-se pelo fato de que também são sociais direitos que asseguram e protegem um espaço de liberdade e a proteção de determinados bens jurídicos para determinados segmentos da sociedade, em virtude justamente de sua maior vulnerabilidade em face do poder estatal, mas acima de tudo social e econômico, como demonstram justamente os direitos dos trabalhadores (Sarlet; Figueiredo, 2008:5).

Percebe-se que os autores fizeram uma ressalva quanto à atuação do Estado, que nem sempre será positiva, pois muitas vezes será necessária uma atuação negativa, ou seja, são direitos subjetivos que passam a ser protegidos a partir do momento que a atuação é restritiva, impedindo que sejam violados.

Considerações Finais

Com esses apontamentos, a partir de uma análise dos conceitos e da atuação estatal, percebe-se que com a garantia do mínimo existencial, é possível a compatibilidade entre a efetivação dos direitos sociais com a teoria da reserva do possível. A proporção de direitos fundamentais indispensáveis para a manutenção da vivência digna não pode ter condicionamentos, enquanto que para a proporção remanescente, que apesar de contribuir para uma melhoria na qualidade de vida da população, não é imprescindível a sua dignidade não compõe o mínimo existencial, sendo possível nesse caso a aplicabilidade da reserva do possível, conforma a existência de recursos financeiros necessários a sua efetividade.

Apesar das garantias existentes, os venezuelanos que migraram para o Brasil, em sua grande maioria, sofreram violações dos seus direitos, principalmente os indígenas Warao, os quais sofreram com a tentativa de deportação em razão da ausência de documentação. Ações como essas, ressaltam a importância de discutir a temática e dissipar o conhecimento de quem é o migrante, além disso, enraizar a ideia do que são direitos humanos e conscientizar a população brasileira de que direito à vida é algo inerente ao ser humano. O respeito, a conscientização das diferenças, sejam elas culturais, ideológicas, sexuais ou de qualquer natureza, atualmente parecem que estão sendo dissipadas por uma crescente disseminação de ideias preconceituosas, xenofóbicas e racistas.

Toda a sociedade precisa ser pautada na tolerância, no respeito às diferenças e principalmente na igualdade, atitude essa que pode ser desenvolvida por cada indivíduo no dia a dia, mas que atribui ao operador do direito uma responsabilidade muito maior, tendo em vista que, será ele que de fato irá assegurar a essas pessoas a garantia e cumprimento de seus direitos e da manutenção da dignidade humana conforme os preceitos da carta magna.

Como foi discutido, é necessário fazer uma análise do contraste entre o mínimo existencial e a reserva do possível. Isso quer dizer que o governo possuiu o dever de aplicar seus recursos para a manutenção de uma vida digna das pessoas que estão sob a égide do Estado, garantindo-lhes o mínimo para sua sobrevivência.

O Estado possuiu capacidade e obrigatoriedade de manutenção da vivência digna para os migrantes que aqui chegam, dispondo da reserva do possível para que seja assegurado os direitos fundamentais a essas pessoas. Sendo assim, os migrantes que até os dias atuais permanecem nas ruas em condições de pedintes, estão tendo seus direitos violados, com isso, é necessário a participação do Estado na criação de mais postos de Centro de Referência a Imigrante, para que essa população tenha o mínimo de garantias atendidas.