As liberdades de expressão e de imprensa sob a otica multiterritorialista Freedom of expression and press freedom from a multiterritorialist viewpoint

Matheus Aguiar Dornelas 

https://doi.org/10.25965/trahs.5128

A partir dos apontamentos contemporâneos sobre a ética liberal da comunicação, retomamos as discussões de Arendt e Dewey sobre as noções de público e privado, no sentido de situar em quais territórios estariam localizadas as liberdades de imprensa e de expressão. Posteriormente, partindo da noção de que essas distinções são performadas para reivindicar poder, argumentamos que o descompasso entre essas liberdades ora favorecem o público (regulações sociais), ora violentam os Direitos Humanos através da subalternidade. Diante do problema, sugerimos uma perspectiva de análise que seja alternativa a oposição entre essas liberdades, dadas em espaços rígidos, centrada nos seus atravessamentos, a partir de uma noção de “multiterritorialidade”. A partir de uma visada pós-colonialista, em função da discussão sobre a territorialidade, a subalternidade na assimetria dos espaços de escuta - para além da fala - se apresenta como marcador substancial para uma abordagem ética sobre a comunicação pública.

A partir de la littérature relative à l'éthique libérale de la communication, nous reprenons les discussions d'Arendt et de Dewey sur les notions de public et de privé, afin de situer dans quels territoires se placerait la liberté de la presse et d'expression. Par la suite, partant de l'idée que ces distinctions sont opérées pour revendiquer le pouvoir, nous soutenons que l'inadéquation entre ces libertés, favorise le public (réglementations sociales) ou viole les droits de l'homme par la subalternité. Face à cette problématique, nous proposons une perspective d'analyse alternative à l'opposition entre ces libertés, données dans des espaces rigides, centrée sur leurs croisements, fondée sur une notion de « multiterritorialité ». D'un point de vue postcolonial, du fait de la discussion sur la territorialité, la subalternité dans l'asymétrie des espaces d'écoute - au-delà de la parole - est présentée comme un marqueur substantiel d'une approche éthique de la communication publique.

A partir de apuntes contemporáneos sobre la ética liberal de la comunicación, retomamos las discusiones de Arendt y Dewey sobre las nociones de público y privado, en el sentido de ubicar en qué territorios se ubicaría la libertad de prensa y de expresión. Posteriormente, partiendo de la noción de que estas distinciones se realizan para reclamar poder, argumentamos que el desajuste entre estas libertades a veces favorece a lo público (normas sociales), a veces vulnera los Derechos Humanos por medio de la subalternidad. Frente al problema, sugerimos una perspectiva de análisis alternativa a la oposición entre estas libertades, dadas en espacios rígidos, centradas en sus cruces, desde una noción de “multiterritorialidad”. Desde una perspectiva poscolonialista, debido a la discusión sobre la territorialidad, la subalternidad en la asimetría de los espacios de escucha -más allá del discurso- se presenta como un marcador sustancial para un abordaje ético de la comunicación pública.

Based on contemporary notes on the liberal ethics of communication, we resume Arendt and Dewey's discussions on the notions of public and private, in the sense of locating in which territories freedom of the press and expression would be located. Subsequently, starting from the notion that these distinctions are performed to claim power, we argue that the mismatch between these freedoms sometimes favors the public (social regulations), sometimes violates Human Rights through subalternity. Faced with the problem, we suggest an analysis perspective that is an alternative to the opposition between these freedoms, given in rigid spaces, centered on their crossings, from a notion of “multiterritoriality”. From a post-colonialist perspective, due to the discussion about territoriality, the subalternity in the asymmetry of listening spaces - beyond speech - presents itself as a substantial marker for an ethical approach to public communication.

Índice

Texto integral

Introdução

Note de bas de page 1 :

Jornalista australiano que fundou o site “Wikileaks”, responsável por expor a atuação controversa do governo dos Estados Unidos em guerras.

Em editorial recente, pela comemoração dos 80 anos da Rádio Jovem Pan, a emissora trata o conceito de liberdade de expressão como equânime à liberdade de imprensa e assume para si - com respaldo do presidente Bolsonaro - a qualidade de salvaguardar esse direito fundamentalmente humano. Enquanto isso, o ativista Julian Assange1 teve sua extradição aprovada pela Inglaterra. Assim, o governo norte-americano poderá enquadrá-lo em uma lei de espionagem, criada ainda na Primeira Guerra Mundial.

Esses casos problematizam a apropriação de um Direito Humano por parte da imprensa como estratégia para escapar de um controle social e demonstram, por outro lado, a fragilidade da liberdade de expressão. Na prática, a liberdade de imprensa parece garantir uma maior proteção às corporações do que às pessoas que querem manifestar seu direito de informar e de ser informado, como previsto na Declaração Universal de 1948 da ONU.

Assim, um tema que costuma dificultar a definição da função social do jornalismo é o estabelecimento das fronteiras institucionais entre a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. Lima (2010 ; 2013) vai defender uma oposição evidente entre o comum e o próprio; entre o Direito Humano - que situado na esfera pública alcança (ou deveria) todos - e a liberdade de empresa - que na esfera privada compete a alguns e como propriedade demanda controle social.

No contexto neoliberal, baseado na retórica de que “não há liberdade política sem liberdade econômica”, o conceito de “liberdade de expressão comercial” (Lima, 2010 :70) adquire embasamento institucional, inclusive na justiça. Basta lembrar da força tomada por esse argumento durante os julgamentos do STF, em 2009, sobre o diploma de jornalismo e a antiga “Lei de Imprensa” no Brasil. Essa noção, ao que indica, reivindica que a imprensa, apesar - e não “a partir” - de sua estrutura de anunciantes e agência publicitárias, é legítima representante de um direito individual.

Esse projeto libertário, levado ao limite, resulta na inversão do sentido clássico da censura em regimes totalitários, e passa a ser reproduzido pela própria imprensa (Lima, 2013). A apropriação simbólica e material da esfera pública, centrada na perversão da liberdade de expressão, se manifesta, por exemplo, na oligarquia que se estabeleceu no ciclo midiático brasileiro - para todos verem -, apesar desse fato violentar a própria Constituição do país.

Em dado ponto, ao contrário do autor, acreditamos que ambas liberdades implicam a existência de espaços de escuta, seja na função de leitor - hoje ultrapassada - ou mesmo no reconhecimento público do indivíduo que é capaz de se enunciar. Não devemos perder de vista o engajamento na comunicação, uma premissa relacional que serve de paradigma para a metodologia que sugerimos para levantar apontamentos diante do problema.

O desafio da regulação da comunicação em que se justifique, epistemologicamente, a instituição social do jornalismo, deve passar por um revigoramento no estudo comunicacional dessa dicotomia pública e privada. Nossa vida pode ser ainda comandada por oposições que, admitindo como inteiramente dadas, interrompem a investigação sistemática pela comunidade que incide no interesse público (Dewey, 1954). Tal estratégia, produz, portanto, a violência de excluir o reconhecimento do outro.

Assim, propomos pensar outros espaços que considerem os lugares da opressão e da resistência presentes nesse modo de pensar dualista. Enquanto lugares em que as práticas sociais encontram-se, simultaneamente, representadas, contestadas e invertidas, tal controvérsia sugere diversos pontos de contato com a noção de heterotopia (Foucault, 2013). Isto é, ao invés de opor duas esferas ; a partir de uma fronteira explícita, destacamos sua relação de vizinhança, entre pontos alocados.

Várias categorias nos fazem aproximar da heterotopologia enquanto método, como uma descrição sistemática dos espaços de contestação. A primeira é que, as liberdades de expressão e de imprensa podem funcionar de modo muito diferente ao longo da história. Segundo, porque têm o poder de justapor, em um mesmo lugar real, vários espaços até mesmo incompatíveis. Um terceiro ponto, contudo, é o que nos parece mais pertinente no percurso que tomaremos: esses espaços de contestação contam com um sistema de controle que, simultaneamente, os tornam penetráveis e os isolam. A retórica globalista dessas liberdades é : “Todo o mundo pode entrar nessas alocações heterotópicas, mas, a bem da verdade, isso é apenas uma ilusão : crê-se adentrar e se está, pelo próprio fato de entrar, excluído.” (Foucault, 2013 : 119).

Esse pensar no lugar da violência produzida pela exclusão do outro conduzirá a segunda parte deste estudo. Num terceiro momento, inspirado nessa metodologia foucaultiana, sugerimos outros lugares de contestação para essas liberdades, de modo a afastar a noção de esvaziamento, superada pela perspectiva da multiterritorialdade (Haesbaert, 2007). De início, vamos retomar, brevemente, o pensamento dos clássicos Dewey (1954) e Arendt (2007) sobre a oposição entre público e privado.

A oposição entre o público e o privado

A partir de uma visão eurocêntrica, baseada na experiência da Grécia Antiga, Arendt (2007) delimita a gênese da dicotomia entre público e privado em seu pensamento. Naquele contexto, a esfera da casa (oikos) era o espaço onde os homens exerciam seu poder coercitivo sobre a família e, essencialmente, estava relegado ao cumprimento de necessidades biológicas fundamentais, qual seja, a alimentação e a segurança - condicionadas à violência da escravização. Assim, a noção de privação estaria diretamente ligada à vulnerabilidade da condição humana, na qual, encarregados de satisfazer os instintos primitivos, esses homens estariam impossibilitados de exercer seu potencial político (vita activa).

É no ambiente externo, de fora da manutenção da ordem doméstica, que os homens estariam aptos a praticar sua cidadania (exclusividade do masculino) a partir da visibilidade e do aparecimento, como consequência da expressão da linguagem. Assim, na cidade (polis), a esfera pública se afirmaria como um espaço que permitia a prática da individualidade, da liberdade e da igualdade, com efeito, sendo o campo do comum (koinon) - muito embora não satisfizesse a todos como visto anteriormente. Assim, a vida política substitui a força e a violência da privação e permite o reconhecimento mútuo dos cidadãos, podendo agora a reivindicar suas experiências e disputar uma narrativa, pautada na persuasão retórica, que melhor organize a vida coletiva.

Após a constituição moderna do Estado, Arendt afirma que a promoção efetiva da igualdade está condicionada à justiça, numa trama em que o político deixa de ser o centro da ação humana e torna-se apenas uma função da sociedade. Destaca-se que a ascensão do social, na esteira da burocracia - enquanto modus operandi - contribuiu para a diluição da oposição clássica entre o público e o privado, ao fim, sobrepondo o bios politikos. Isso porque o paradigma secularista esvaece o abismo entre as atividades que condicionam a separação entre casa e cidade, de modo que a esfera pública absorveu o papel de satisfazer as necessidades biológicas humanas.

Por meio da produção de bens, processo intensificado com a industrialização, a economia (doméstica) torna-se um alicerce do comum e o Estado assume, portanto, a responsabilidade pela manutenção da vida. Em contrapartida, a esfera privada concebe, atualmente, o espaço da intimidade, cujas raízes se encontram na civilização romana.

Para a autora, as sociedades de massa, centradas no trabalho de operários e assalariados, dá lugar a um conformismo artificial que objetiva um mesmo interesse - ou uma única opinião - baseado na ideologia da unicidade humana. Nesse processo homogeneizante, “a nossa capacidade de ação e de discurso perdeu muito de sua antiga qualidade desde que a ascendência da esfera social baniu esses últimos para a esfera do íntimo e do privado” (Arendt, 2007 : 59). Tal afirmação vai de encontro a ideia de que a imprensa, enquanto instituição privada, tomou para si a centralidade do debate público no mundo contemporâneo.

Nesse sentido, se a esfera pública requer o comum, de fato, essas organizações estão localizadas num espaço privado (propriedade de poucos). Embora a mídia opera a partir da visibilidade - mais precisamente da publicidade -, ela não é ouvida por todos e muito menos fala por todos. Tornar-se inteiramente privado é um lugar onde estamos “privados de ver e ouvir os outros e privados de ser vistos e ouvidos por eles.” (idem : 67). Assim, a destruição do mundo comum é precedida, geralmente, pela destruição da pluralidade humana, da condição transcendental da ação que é a alteridade.

Apesar dessa oposição, aparentemente óbvia, ressalta-se um eixo dialético entre as esferas pública e privada: o desaparecimento da primeira costuma vir acompanhado da liquidação da segunda. Isto é, embora a propriedade, assim como a riqueza, possua qualificações situadas na ordem do privado - como a assimetria de acesso -, elas “sempre foram tidas como absolutamente importantes para o corpo político.” (idem : 70).

Com efeito, a mídia possui sempre o potencial de visibilizar questões essenciais para a constituição de identidades coletivas, ao passo em que também tem o potencial de produzir apagamentos e inviabilizar determinadas formas discursivas. Dizendo de outra forma, o desenvolvimento institucional da imprensa - legitimado pela prática jornalística - tende a reduzir o monopólio do Estado sobre o controle do interesse coletivo. O que não se pode, nunca, é perder de vista seus problemas que, em grande parte, são da ordem da economia privada.

Sodré (2015) ressalta que a democracia burguesa, pós revolução industrial, trouxe a retórica da educação e da cultura como valores marcantes para a soberania do povo. Deste modo, o debate público não apenas deve perpassar esse ideal, mas é condicionado pelas instituições que o materializam (imprensa, governo, sistema educacional, etc.). Com efeito, no centro do imaginário dessa esfera pública está a noção de um espaço em que os indivíduos são capazes de expressar seus interesses por meio da linguagem.

Sob a ótica do reconhecimento público, a oposição entre essas esferas, ao ser “encarada do ponto de vista da privatividade e não do corpo político, equivale à diferença entre o que deve ser exibido e o que deve ser ocultado.” (Arendt, 2007 : 82). Seria o equivalente, por assim dizer, que a liberdade de imprensa pressupõe, deliberadamente, o velamento discursivo, enquanto a liberdade de expressão ; de modo normativo, implica na visibilidade totalizante das experiências individuais. Assim, a autora reconhece que uma vivência inteiramente na presença da publicização torna-se superficial.

Destaca-se, que a sociedade contemporânea marca algumas distinções dessa noção arendtiana (França; Simões, 2015), sobretudo na medida em que tratamos agora de uma sociedade midiatizada, na qual os fluxos de informação digital passam a ser um dos principais bens sob o qual o capitalismo gira em torno.

É nesse sentido que Dewey (1954) defende o constante aperfeiçoamento dos meios e formas de comunicação para que o interesse interdependente possa formar o desejo e o esforço em dirigir a ação coletiva. Ambos autores tratam da comunicação como eixo central da ação esfera pública. Enquanto Arendt reforça a ideia de uma iniciativa discursiva que funda a política numa relação de alteridade, o pragmatista está interessado na afetação coletiva em torno da experiência reflexiva (sofrer e agir).

Em The Public and It's Problems (Dewey, 1952), as noções de público e privado têm a ver com a maneira como as pessoas interagem com o mundo. Com efeito, a ação privada é aquela que afeta apenas as pessoas engajadas em uma interação específica. Inversamente, a formação de um público se dá quando as consequências dessa ação extrapolam os enunciadores e passam a afetar indiretamente outros sujeitos. Nesse sentido, o projeto democrático visa o cuidado sistemático dessas consequências, promovendo um controle normativo de estímulo ou de restrição.

Entre outras semelhanças do autor com o pensamento de Arendt, destacamos a potência transcendental da noção de igualdade pela diferença, para a emancipação da comunidade. Entretanto, é no pragmatista que encontramos uma perspectiva mais profunda acerca das vulnerabilidades da constituição dos públicos. Para Dewey (1954), a liberdade democrática funciona a partir da garantia da liberação e da realização das potencialidades individuais na associação coletiva e não deve ser tomada como independente dos vínculos sociais.

Assim, a igualdade deve ser equitativa e “denota o compartilhamento desimpedido que cada membro individual da comunidade tem nas conseqüências da ação associada.” (Dewey, 1954 : 150, tradução nossa). Nesse sentido, para que um público disperso e inconstante se reconheça e expresse seu interesse compartilhado nas consequências das atividades, a comunicação - eixo de sustentação da vida em comunidade - deve ser pautada na liberdade de expressão que requer, fundamentalmente, a tolerância à diversidade.

Em antítese a esse projeto, a noção de sujeito omnicompetente, base do individualismo neoliberal, sustenta que cada sujeito isolado é “competente para saber em todas as situações que exigem ação política o que é para seu próprio bem, e competente para fazer valer sua ideia de bem e sua vontade de efetuá-la contra forças contrárias.” (idem:158, tradução nossa). A mesma retórica está presente numa ideia vulgar da liberdade de expressão, supondo que todos os corpos têm acesso aos espaços de escuta, igualmente distribuídos em condições.

Na verdade ocorre é que, ainda menos que todos, na esfera do comum, públicos (constituídos na afetação pela ação in-direcionada) são subalternizados nos espaços de escuta, quando menos, interpelados pela enunciação de outrem - o “falar por” (Spivak, 2010 ; Mombaça, 2017; Lima, 2020) “outro apropriado” através da dominação - simbólica e materialmente (Haesbaert, 2007). Assim, não há projeto coletivo, uma vez que "os valores hegemônicos cultivados na esfera pública exaltam o indivíduo, a individualidade, a realização pessoal (...)”. (França; Simões, 2015 :88).

É mirando nessas controvérsias que o liberalismo republicano de Dewey, radicalmente democrata, defende a necessidade de um controle social sobre os meios de comunicação para assegurar o interesse público efetivamente atuando sobre a liberdade. De mesmo modo, a estrutura econômica que perpassa essas mudanças deve ser revista no sentido de não limitar a capacidade de os indivíduos se autogovernarem.

Jornalismo e a vulnerabilidade dos públicos

(...) o apagamento da esfera pública pela hipertrofia do privado suprime a política, mas não consegue neutralizar a tensão comunitária inerente à circulação das zonas de sombra que perpassam a dimensão dos sonhos, das perversões, da violência, dos impulsos de extermínio do outro etc. (Sodré, 2015 : 21)

Enquanto na segunda metade do século XX, a televisão reconfigurou o público a partir da noção de audiência (broadcast), a era tecnológica inaugurou a posição dos usuários, na qual as possibilidades de interação e construção de conteúdo (pointcast) dão novos contornos a aspiração de uma autonomia individualista. Resguardadas as potencialidades das redes digitais, o valor de troca (circulação) - na noção marxista - supera o valor de uso (utilidade) das informações e mercantiliza. A natureza dessa questão está ancorada em dois eixos da comunicação midiatizada: extensão e visibilidade; isto é, "o valor individual não é antitético ao de sua imagem pública, circulante na comunidade" (Sodré, 2015 : 19).

Não é indicado, contudo, ignorar a desigualdade de condições no exercício da comunicação, em função da fronteira simbólica que se estabelece na troca discursiva, desequilibrando para o lado de um ou outro ator, a partir do revestimento de autoridade. Assim, a posição social, explicitada na interação, é a medida dos atravessamentos dos corpos por instâncias de poder. Nesse jogo simbólico, o tensionamento ético entre as origens sociais dos interlocutores permite não apenas o seu reconhecimento, como também configura regras hierárquicas na troca discursiva.

A distribuição demográfica desigual da precariedade é uma condição inerente às políticas neoliberais do capitalismo (Butler, 2018). Tal assimetria cerca, num espaço de subalternidade, corpos sujeitos à violência pelas suas colocações - da narrativa imperial - econômicas, de raça e de gênero no mundo. Quando se fala, portanto, do “povo”, é preciso situar quem é esse “povo” para entender quais vidas valem a penas ser vividas na perspectiva institucional. Evidentemente, há um descompasso entre a forma política da democracia e o princípio da soberania popular (Butler, 2018 ; Dewey, 1954).

Ainda, a relação entre o capitalismo global e a dominação geopolítica conta com o apoio dos conglomerados de mídia. Implantados nos países ditos de “terceiro mundo”, atuam como dispositivos de controle para a economia neoliberal, e visam “conservar a divisão internacional do trabalho ajuda a manter o suprimento de trabalho barato nos países compradores.” (Spivak, 2010 : 68). Como visto, esse projeto ocupa uma zona sombria (privacidade) num território de domínio do social que exclui o político.

No jornalismo praticado pelos grandes conglomerados de mídia, há a presença tácita da “imagem do imperialismo como o estabelecedor da boa sociedade.” (idem :98). O norte dessa ação, simbolizada pela subalternização de raça e de gênero, no pensamento de Spivak, envolve a proteção desses corpos quando conveniente ou, de modo costumeiro, sua entrega à própria sorte. De mesmo modo, relegando esses sujeitos ao seu lugar de precariedade então, ideologicamente, marcado. Por certo, a violência epistêmica praticada pelos grupos hegemônicos, a partir do paradigma colonialista (e patriarcal), implica uma estratégia de neutralização do outro, expropriado de qualquer possibilidade de representação própria.

Se retomamos Arendt, a ação e o reconhecimento na esfera pública carece, necessariamente, do aparecimento pela enunciação individual em condição de igualdade. Portanto, situar a liberdade de imprensa, exclusivamente, no território privado, expropria o sentido de que esse aparecimento deve alcançar a todos. De fato, ainda que essas empresas atuem no território da propriedade no capitalismo - reivindicando mais responsabilização social (accountability) do que política (ética) -, há determinações jurídicas sendo, constantemente, constrangidas por esse lugar de autorregulação (Lima, 2010) dos conglomerados de mídia.

Como ressalta Mombaça (2017), embora tenha se chamado a atenção para a precarização de determinados corpos nas relações de poder, esse esforço não foi acompanhado pela revelação (visibilidade) das posições de poder que produzem tais efeitos de subalternidade. A colonização do pensamento implica na necessidade de situar os saberes, de modo a se localizar a fala na estratificação social. Assim, a dificuldade de mobilidade dos subalternos - estancando sua superação - passa pela narração da posição de politicamente oprimido como uma forma de conhecimento. No caso da imprensa, verifica-se ainda o descumprimento do direito de resposta em prol daqueles destituídos do espaço de escuta.

Spivak (2010) alerta para o poder disciplinador da justiça, que acompanha o projeto imperialista, endossando a condição de subalternidade. Qualquer iniciativa de emancipação deve ser consolidada pelo real desaparecimento de estruturas, públicos e discursos que evidenciam o privilégio. Assim, quando os conglomerados de mídia utilizam de seu para “dar voz” aos subalternizados, a estratégia mais produtiva pode ser desocupar esse espaço (Lima, 2020). Como defende a poetisa e pesquisadora portuguesa, Raquel Lima, uma ação radical pode ser equacionada pela tática do silêncio ; entendê-lo envolve compreender quem é o ouvinte de sua fala (Lima, 2020). A questão, radicalmente, trata-se da redistribuição das violências.

Arendt afirmava que a distinção entre as esferas pública e privada, “encarada do ponto de vista da privatividade e não do corpo político, equivale à diferença entre o que deve ser exibido e o que deve ser ocultado.” (2007 :82). Assim, reconhece que as características não-privativas da privatividade - como o refúgio, os desejos, e as aspirações superiores - têm caráter de urgência e são a força motriz que nos afasta da apatia, de modo que a eliminação total da necessidade (soberania do social sobre o político) ameaça a própria vida. Em outras palavras, uma vivência vivida inteiramente na presença da publicização torna-se superficial. Nesse sentido, de fato, o libertarianismo pode ser reconhecido como uma característica privativa da privatividade.

Sugerimos o exemplo do racismo praticado pelo jornalista William Waack para falar da importância do silêncio e da interrupção de vozes hegemônicas. Uma escuta política saturada daquelas - Mombaça (2017) cita a branquitude e a cisgeneridade - que se estabelecem como vozes hegemônicas. Ainda, a retórica nesse caso nos remete a um simulacro de apagamento das marcas de privilégio, estratégia empenhada em desprezar a desigual distribuição da condição dos sujeitos consagrados uns, em detrimento de outros, ao regime de escuta - hipervisibilidade - são coextensivos aos sistemas de opressão das vidas e vozes subalternizadas.

Não é difícil imaginar, ainda, que exigir da mídia a interrupção da representação problemática dessas identidades seria, rapidamente, tratada como censura. Muitas vezes, portanto, é menos sobre falta de espaços de escuta do que da capacidade de manter-se em silêncio (Lima, 2020). Essa questão remonta à interpelação interruptiva da ordem do discurso. Retomando o pensamento de Arendt, ao falar pelo subalterno, o jornalismo demonstra como - no caso da liberdade de imprensa - o público passa a invadir o privado, e não o contrário.

Além disso, situar a liberdade de imprensa na esfera privada corrobora para a manutenção do seu estatuto de segredo. Isto é, a ocultação das controvérsias que atravessam os veículos de comunicação é tratada como uma prática viável para que o jornalismo se mantenha autorizado ao discurso de verdade.

Multiterritorialidade : uma chave não dualista

Como visto, a estratégia para estabelecer esse projeto neoliberal reivindica zonas sombrias, espaços de exceção e de segredo (Sodré, 2015) em que a propriedade coopta o público num processo de apropriação (Haesbaert, 2007). Em justaposição à liberdade de expressão, objetos da esfera privada, as empresas passaram a demandar a posição do comum em detrimento do próprio (Lima, 2010 ; 2013).

A multiterritorialidade é uma alternativa conceitual para a noção de 'desterritorialização', indicada por Haesbaert (2007) como uma crença mítica. No caso da liberdade de imprensa, essa chave analítica propõe uma visada diferente daquela que indica o processo de apropriação do direito (público) 'comum' pelo direito 'próprio' (privado), por parte das empresas de comunicação ; estratégia que, de saída, esvaziaria a dimensão social da liberdade de expressão. Assim, chamamos a atenção para as justaposições que compõem a reapropriação de territórios simbólicos que ocorre de maneira, indissociavelmente, reterritorializante.

Esse movimento complexo envolve a vivência concomitante entre múltiplos territórios. Contudo, o projeto de destituição de um espaço imputa àqueles que, de fato, perderam a segurança territorial, uma condição de precariedade em face do grupo que detém seu controle e passa a contar com privilégios.

A lógica capitalista, em contrapartida, é que propõe a redução do território a uma perspectiva "unifuncional", como um subterfúgio para as contradições político-econômicas imbuídas no processo social de construção do espaço. Com efeito, a dinâmica de acumulação mercantilista se sobrepõe à dominação à apropriação, sufocando as possibilidades de reapropriação de espaços dominados pelo aparato do mercado.

Haesbaert (2007 : 20) lembra que a noção de território, desde sua origem, surge com uma dupla conotação de poder: material (explícito, funcional e de dominação) e simbólica (implícito e de apropriação). Essa dualidade remete ao que Dewey, investigando as condições de formação dos públicos, assinala como uma disputa de forças que está na raíz da constituição do próprio Estado : "Fatos políticos não estão fora do desejo e julgamento humano" (Dewey, 1954 : 6, tradução nossa). Assim, não se deve apegar apenas à perspectiva prática de um objeto - de facto - e ignorar "a questão do por qual direito, a questão da legitimidade" (idem, tradução nossa) - de jure - implicada em sua acepção.

Interpelando Lefebvre, Haesbaert vai dizer que o valor de uso está atrelado à apropriação (possessão), enquanto o valor de troca remete à dominação (propriedade). De maneira inversa, Sodré (2015) defende que o valor de uso é utilitário, imanente à esfera privada, enquanto o valor de troca é da ordem do reconhecimento, essencialmente público. Salienta-se, ainda, que "quando se trata de gente, a coisa é mais complexa (...) o valor individual não é antitético ao de sua imagem pública" (Sodré, 2015 : 19).

Nesse sentido, a proposta multiterritorial estabelece a busca por feixes de relação - enfocada nas disputas de poder - que operam a alocação dos espaços público e privado. Uma dificuldade óbvia nessa tentativa de romper com a noção de uma fronteira rígida, certamente, é o acordo tácito de assimetria entre os que, de fato, controlam o território e aqueles que são por ele controlados. Esse problema dificulta a tomada de ação coletiva - no sentido deweyano - baseada na troca de percepções e vivências de modo inclusivo e não exclusivo.

Isso, contudo, não prevê uma apatia do grupo subalternizado em detrimento do hegemônico, na medida que os desacordos emergem em forma de resistência e, ao fim, controle social. É esse o eixo central da discussão sobre a regulação da comunicação social e, como observamos, a interdição desse debate atua não apenas de maneira funcional (oligopólio empresarial), mas se vale da legitimação no campo do simbólico (apropriação do Direito Humano da liberdade de expressão por parte de organizações privadas).

Ainda, o capitalismo neoliberal sustenta o controle de territórios sob dois paradigmas : um típico da lógica estatal que enfatiza o controle de fluxos pela conquista do local (territórios-zona), e outro relativo à perspectiva empresarial, em que a “canalização” de redes visa um alcance global (territórios-rede) (Haesbaert, 2007 : 30). Embora a tendência da sociedade em rede seja de assumir o desaparecimento da lógica zonal, esse modelo - sobretudo quando consideramos os regimes colonialistas e imperialistas - é um constituinte indissociável das práticas sociais responsável pelas “dinâmicas sociais excludentes” (idem : 31) que a retórica globalista deseja ocultar.

Haesbaert retoma as reflexões de Agamben para afirmar que, nos “territórios de exceção” - repulsa do Estado como regra -, a destituição da cidadania é um projeto sistemático de contenção dos excluídos por aqueles que efetivamente exercem seu domínio. Isso, por certo, se dá através da criação de zonas autônomas que afastam o controle social. Isto é, a vulnerabilidade dos públicos diante do oligopólio dos meios de comunicação está diretamente ligada à impossibilidade de manifestação legítima de seus direitos - no caso à expressão. Logo, não se admite a pluralidade de poderes e de identidades.

Por outro lado, se considerarmos a própria liberdade de expressão como uma multiplicidade de territórios (um espaço amplo que abriga toda a esfera da comunicação), na qual a liberdade de imprensa está compreendida, a primeira deveria incorporar, parcialmente ou, até mesmo, sobrepor a segunda ; mas nunca o contrário. Entretanto, ao que tudo indica, a liberdade de imprensa exercida num território de exceção, impõe fronteiras à liberdade de expressão que, destituída de ser “o lugar” da informação, está muito mais para um subespaço do privado.

Aqui trazemos uma pista de como os grandes conglomerados de comunicação podem exercer seu poder a partir da sobreposição da liberdade de imprensa sob a liberdade de expressão : a mobilidade usufruída pela classe hegemônica (nova elite planetária) “permite que alguns grupos, em geral os mais privilegiados, usufruam de uma multiplicidade inédita de territórios, seja no sentido da sua sobreposição num mesmo local, seja da sua conexão em rede (...)” (idem : 38).

Na medida em que a imprensa se apropria, simbolicamente, da liberdade de expressão, passa a ser implementado um processo de hibridização entre os espaços do próprio (atravessante) e do comum (atravessado). Esse processo, como visto, ocorre em escala global e é parte do projeto neoliberal de dominação - não podendo ser tomado de maneira ingênua apenas como apropriação.

Considerações finais

A partir do esquema proposto por Haesbaert, podemos situar a liberdade de imprensa num território de desigualdade, onde a dominação impõe a assimetria (mediante às condições econômicas) no acesso da comunidade aos meios de produção ; enquanto a liberdade de expressão, no território da diferença, supõe que o debate na esfera pública seja um espaço de segurança afetiva às múltiplas identidades.

Apesar desse modelo de distinção, no capitalismo neoliberal, é impossível dissociar o papel de controle - simbólico e material - que a mídia exerce sobre o exercício da livre expressão, o qual deveria considerar a precariedade que vulnerabiliza os públicos na construção de uma efetiva igualdade discursiva. Com efeito, a noção pública daquilo que deveria ser um direito comum (liberdade de expressão), na lógica culturalista, foi sequestrada pelos grupos dominantes que exercem seu poder a partir da equiparação territorial entre essas duas liberdades.

Deste modo, é essencial re-discutir as implicações da representação do sujeito subalternizado tanto na esfera pública quanto privada. Da mesma forma, o controle social da imprensa já implica a dimensão do comum envolta na atividade dessas empresas e, quando esse (controle) não é exercido na prática, fica evidente uma sobrepujação do privado pelo público.

Assim, acabamos por comprar a ilusão do que seria a liberdade de expressão mais pela sua imagem (valor simbólico) do que pela sua função (material). Isto é, o território simbólico remodela de maneira indissociável a funcionalidade dos territórios. Isso justifica como os veículos de comunicação promovem o apagamento das contradições que fazem parte de sua própria identidade, como no descumprimento constitucional de sua regulação.

Assim, superando premissas dogmáticas, deve-se considerar os processos históricos que determinam as objetivações da territorialidade. No contexto pós-moderno, rompendo com a dualidade entre fixidez e mobilidade, as espacialidades adquirem valor, para Haesbaert, a partir de quatro qualificações : abrigo físico ; fronteiras identitárias ; disciplinarização ; e controle de redes. A dimensão cultural-simbólica é essencial nos processos de territorialização e, atualmente, resulta numa extrema valorização de bases tecnológico-informacionais em crescente complexidade.

Ao opor a liberdade de assembleia e a liberdade de expressão, destaca-se que a primeira não é a garantia de um direito natural, já que pressupõe uma ação de fora do território do Estado. A assembleia pode, inclusive, afetar as instituições que operam a segunda. Assim, quando a ideologia libertária defende práticas como o discurso de ódio, levando ao seu fim último a liberdade de expressão, ela esgota o sentido desse direito humano de estar alocado entre outros direitos garantidos pela justiça ; qual seja, a difamação, a injúria e o próprio silenciamento induzido (quando da falta da aplicação do direito de resposta).

Na ordem da propriedade (organização), é preciso questionar em que medida o jornalismo consegue expressar aquilo que a comunidade espera de sua função institucional, e quais narrativas privadas têm imperado em seu regime de publicidade. Deste modo, é essencial re-discutir as implicações (materiais e simbólicas) da representação do sujeito subalternizado, tanto na esfera pública quanto privada, no campo epistemológico do jornalismo. Com efeito, resta dizer que o controle social da imprensa já implica a dimensão do comum envolta na atividade dessas empresas e, quando esse (controle) não é exercido na prática, fica evidente uma reterritorialização entre o privado e o público.