As mulheres do crime organizado e a visão diferenciada dos magistrados sobre essa delinquência Organized crime women and the differentiated view of magistrates on this delinquency

Ana Luiza Almeida Ferro 

https://doi.org/10.25965/trahs.5209

O presente artigo oferece uma breve visão sobre os diferentes papéis desempenhados por mulheres no crime organizado, sobretudo na Itália, no México e no Brasil, além de suas motivações, bem como explora a visão diferenciada dos magistrados, ora condescendente, ora rígida, em função da perspectiva de gênero, sobre essa macrocriminalidade.

This article offers a brief view on the different roles played by women in organized crime, mainly in Italy, Mexico and Brazil, in addition to their motivations, as well as it explores the differentiated view of magistrates, sometimes condescending, sometimes rigid, depending on the gender perspective, on this macrocriminality.

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Introdução

O crime organizado constitui um problema de dimensões globais, cujos números impressionam. Cuida-se de uma espécie de macrocriminalidade promovida pela organização criminosa.

Sob a âncora, em especial, de Edwin Sutherland (1983) e Winfried Hassemer (1994;1998), e a partir do exame e da comparação de estudos, teorias e posicionamentos, no campo da doutrina jurídico-penal e da pesquisa histórica e criminológica, de diplomas internacionais e da legislação penal e processual-penal de vários países, consideramos como traços principais da organização criminosa:

Note de bas de page 1 :

Para um aprofundamento do tema, ver o Capítulo 1 de nossa obra inaugural sobre o crime organizado: Ferro, Ana Luiza Almeida. Crime organizado e organizações criminosas mundiais. Curitiba: Juruá, 2009, pp. 494-499, 624. Ver também Ferro, Ana Luiza Almeida; Pereira, Flávio Cardoso; Gazzola, Gustavo dos Reis. Criminalidade organizada: comentários à Lei 12.850, de 02 de agosto de 2013. Curitiba: Juruá, 2014, pp. 28-31.

  1. a estabilidade e permanência da associação;

  2. a composição mínima de três membros (Dias, 1988 : 135);

  3. a estruturação empresarial e hierárquica;

  4. o fim de perpetração de infrações penais para a consecução do objetivo prioritário de lucro e poder;

  5. a conexão estrutural ou funcional com o Poder Público ou com algum(ns) de seus representantes para a garantia de impunidade mediante neutralização da ação dos órgãos de controle social e persecução penal;

  6. a penetração no sistema econômico via formação de um mercado econômico paralelo e infiltração no mercado econômico oficial;

  7. a grande capacidade de prática de fraude difusa;

  8. o considerável poder de intimidação;

  9. o uso de instrumentos e recursos tecnológicos sofisticados;

  10. o cultivo de valores compartilhados por uma parcela social;

  11. a territorialidade;

  12. o estabelecimento de uma rede de conexões com outras associações ilícitas, instituições e setores comunitários;

  13. a tendência à transnacionalidade.1

Conquanto o envolvimento masculino nas fileiras do crime organizado seja, indubitavelmente, preponderante, tem aumentado, sistemática e notadamente, a participação feminina nas organizações criminosas.

Este artigo pretende apresentar uma visão sintética sobre as motivações e os diferentes papéis das mulheres do crime organizado, em particular na Itália, no México e no Brasil, bem como explorar a visão diferenciada dos magistrados, ora condescendente, ora rígida, em função da perspectiva de gênero, sobre essa macrocriminalidade.

I. Teorias sobre as mudanças de tipo e volume da criminalidade feminina e sobre a desproporção quantitativa entre a delinquência masculina e a feminina

Esclarecendo que há dois posicionamentos doutrinários marcantes sobre o assunto das supostas mudanças qualitativas e quantitativas da criminalidade feminina, um defendendo que esta aumentou em relação aos crimes frequentemente perpetrados e passou a traduzir novas modalidades delitivas, o que justificaria a adoção de medidas de política criminal para o seu combate, e outro sustentando que a nova criminalidade feminina representa mais um invento social que uma realidade empírica, María de la Luz Lima Malvido enumera as teorias concernentes ao tema:

  1. da imitação do homem, pela qual a mulher, cada vez mais, imitaria o homem na sua forma de delinquir, adotando atitudes, técnicas e modus operandi tradicionalmente associados ao varão, de modo a assumir um papel mais ativo, eventualmente como autora intelectual, coautora e instigadora, em lugar da simples submissão às ordens masculinas;

  2. da emancipação feminina, pela qual a criminalidade feminina aumentaria à proporção que a mulher adquiriria maior liberdade no contexto social, de maneira que os efeitos da participação feminina em papéis extrafamiliares as exporiam a maiores possibilidades de prática de ilícitos;

  3. do movimento de liberação feminina, pela qual tal movimento seria o responsável pelo incremento da criminalidade feminina, ao estimular a mulher, na luta por igualdade, a mudar a sua percepção no tocante às suas próprias capacidades e aspirações, gerando condições para que ela supere suas inibições e cometa delitos anteriormente considerados “masculinos”, caracterizados pela agressividade, ao invés de se limitar às infrações tidas como “femininas” (prostituição, crimes patrimoniais), teoria essa bastante polêmica, uma vez que seus defensores pregam que o sistema se ponha em guarda ante a rebeldia daquelas antes vistas como dóceis e obedientes, sendo veementemente contestada pelos estudiosos que a enxergam como uma trama para fomentar estereótipos sexuais e desviar o foco investigativo, daí ocasionando uma terceira corrente, a qual sustenta haver muitas causas para o aumento da criminalidade feminina, não constituindo o movimento de liberação e emancipação feminina um fator determinante, embora ofereça a sua cota de contribuição;

  4. da mudança de oportunidades no contexto social, pela qual a criminalidade feminina teria aumentado em decorrência da ampliação das possibilidades oferecidas à mulher para participar da sociedade nos últimos tempos, representando uma das teorias mais aceitas;

  5. do desenvolvimento, ligada à anterior, porém mais completa, porquanto afirma que as mudanças sociais, provocadas pelo crescimento econômico, teriam uma influência direta sobre a criminalidade, incluindo a feminina, pois o desenvolvimento não planejado pode levar ao desemprego e, consequentemente, à marginalização, enquanto o urbanismo teria propiciado à mulher condições de maior engajamento em práticas delitivas;

  6. do cavalheirismo, pela qual há o reconhecimento de que as cifras de criminalidade feminina sofreram incremento, não em virtude do maior cometimento de crimes por parte da mulher, mas da mudança de atitude dos responsáveis pelas engrenagens da persecução penal e da Justiça, isto é, policiais, membros do parquet, magistrados, dentre outros, os quais teriam renunciado ao cavalheirismo nos casos relacionados à mulher, de modo que seriam aplicadas novas categorias e diferentes convicções, a repercutirem na individualização penal (Lima Malvido, 1998: 101-112).

Na Introdução à obra Women and the Mafia (originalmente Donne e mafie), após se referir ao crescente fenômeno das mulheres desempenhando papéis além daqueles tradicionais do auxílio e apoio, Giovanni Fiandaca especula se estamos realmente lidando aqui com uma forma de emancipação expressiva numa passagem da tradição cultural para a modernidade ou se tal é uma forma de emancipação “parcial”, “incompleta” ou “aparente” caracterizada por uma hibridização persistente entre tradição e modernidade

Já Ryu Otomo pensa que a evolução socioeconômica em curso oferece às mulheres maiores possibilidades e compensa a desigualdade entre os sexos, de maneira que a entrada da mulher nos domínios do crime seria ainda frequentemente uma reação contra a discriminação. Cita Manabu Miyazaki no comentário de que os homens entrariam no mundo do crime organizado em razão de interesses pessoais ou de uma série de circunstâncias, enquanto para as mulheres tal se daria mais como uma reação à sociedade, que tenderia a tratá-las com desprezo ou marginalizá-las, o que explicaria o fato de que, ao darem um grande passo, elas amiúde seriam mais determinadas que os homens (Otomo, 2010: 216).

María de la Luz Lima Malvido igualmente se reporta às correntes criminológicas que, ao longo do tempo, ofereceram explicações no atinente à persistente desproporção quantitativa entre a delinquência masculina e a feminina. Dentre as teorias biologistas, influenciadas por Cesare Lombroso, cita a da inferioridade física, patentemente absurda, pela qual a mulher não chegaria ou chegaria menos ao delito por ser supostamente inferior física e intelectualmente em comparação com o homem, visualizado como o protótipo da evolução; e a da diferenciação, que, conquanto não a enxergasse como um ser inferior, deixava a mulher numa posição de quase inimputabilidade, baseada na sua suposta realidade física e psicológica distinta, traduzindo, apesar de tudo, avanços no estudo do ser humano.

Dentre as teorias psicologistas, menciona a da inclinação ao bem, dominante nos fins do século XIX, pela qual a mulher era vista como essencialmente melhor, mais inclinada à bondade, de modo que seus atos visavam a obras piedosas, abnegadas e passivas, que as impediam de praticar crimes, sendo que as verdadeiras mulheres criminosas possuiriam traços masculinos; e a do complemento, pela qual a mulher procuraria seu complemento no homem, o que lhe faria mais mulher que delinquente, pois seria passional e emotiva e buscaria o homem para ser seu condutor, daí resultando o seu papel secundário de cúmplice, ajudante e encobridora.

Em terceiro lugar, a autora discorre sobre as teorias sociológicas, indicando a da inter-relação social, pela qual o déficit da criminalidade feminina em contraste com a masculina se deveria a que, na média, a mulher teria menos inter-relação social que o homem; e aquela sobre as diferentes oportunidades, pela qual as restrições estruturais a respeito das oportunidades restringiriam a mulher em sua vida delitiva. Por derradeiro, alude à corrente crítica, destacando a teoria sobre a ficção estatística e o controle social, que se alicerça na ideia de que a reação social ante o crime é seletiva e de que existiria uma grande cifra negra de diversidade delitiva sem registro. Nessa lógica, a mulher usufruiria proteção quando do cometimento de ilícitos convencionais, existindo diversos filtros impeditivos da sua detenção, prisão formal ou sentença, revelados no tratamento “cavalheiresco”, no paternalismo e no afã de proteção dos agentes públicos dedicados à persecução penal e ao julgamento de causas penais, os quais os levariam a uma estratégia de controle com papel político mais que científico. E arremata comentando brevemente o acerto da noção do controle social informal para explicar mais adequadamente a razão da desproporção quantitativa entre as criminalidades masculina e feminina, pela qual é afirmado que a mulher já é controlada extralegalmente, desde o âmbito familiar, sob o domínio patriarcal, de que resultaria o fato de que apenas um número simbólico de crimes chegaria ao conhecimento das autoridades (Lima Malvido, 1998: 112-116).

II- Algumas notas sobre a evolução da participação da mulher no crime organizado

Para Gemma Marotta, até o momento a literatura criminológica “não tomou em consideração a participação feminina nas organizações criminosas, senão de forma marginal ou tendo em vista um conceito amplo de criminalidade organizada” (2004: 75). Na sua concepção, este termo deve ser compreendido na sua acepção mais estrita, correspondente à noção de uma “associação compacta, duradoura”, além de hierarquicamente estruturada (Marotta, 2004: 78).

A professora ressalta os estudos de língua inglesa sobre o tema que se restringiam ao elo entre prostituição e crime organizado, de sorte que a mulher “criminosa” era identificada exclusivamente com a prostituta ou com aquela posicionada, ela própria, no vértice de estruturas dedicadas ao desfrute da prostituição, numa visão machista do crime organizado, ainda comum, a que se contrapõem estudos de história social das subculturas criminais do século XIX, nos quais emergiu um mundo desviante sexualmente integrado, em que as mulheres já desenvolviam uma infinidade de papéis relevantes (Marotta, 2004: 76).

Note de bas de page 2 :

Nesse particular, pensamos que o terrorismo e as organizações terroristas e o crime organizado e suas organizações criminosas representam fenômenos delitivos distintos, com características próprias, que não se confundem. Ver, sobre o assunto, Ferro, Ana Luiza Almeida. Crime organizado e..., pp. 345-346.

Todavia, na sua avaliação, em verdade, “as mulheres sempre tiveram um papel importante nas organizações criminosas, intensificado nos últimos anos com o grande business da droga” (Marotta, 2004: 77). Por outro lado, a autora constata que, até os anos 70 do século XX, era “raro individualizar protagonistas femininos nas sociedades criminosas realizando papéis de responsabilidade” (Marotta, 2004: 79), residindo os casos mais frequentes nas “formas de atividades de assistência e suporte, ou de cumplicidade” (Marotta, 2004: 79). Essa situação foi gradativamente se modificando, no atinente à maneira de inclusão da mulher na criminalidade organizada nas sociedades ocidentais, em decorrência dos fenômenos da “emancipação no contexto social” e da “difusão da droga” (Marotta, 2004: 79). Eles teriam desencadeado “uma ruptura no sistema de relações, muitas vezes apenas aparentemente patriarcais” (Marotta, 2004: 79), tendo, “de um lado (positivo), a mulher traída em seus afetos que denuncia, não mais se silencia, mas pede justiça” (Marotta, 2004: 80), enquanto se impõe, do outro (negativo), “aquela que assume sempre maior importância dentro da organização” (Marotta, 2004: 80). Marotta também lembra a figura da terrorista, que despertou interesse, particularmente, na Itália, “enquanto mulher que rejeita a própria representação social estereotipada, praticando fatos desviantes considerados de exclusiva prerrogativa masculina no imaginário coletivo” (Marotta, 2004: 77).2

Para Ombretta Ingrascì, no entanto, antes houve uma pseudoemancipação do que uma verdadeira liberação da mulher mafiosa, porquanto as conquistas no campo laboral não tiveram a mesma repercussão nos domínios individuais (Ingrascì, 2010: 52). Esta é, contudo, uma questão complexa, uma vez que não há como negar que o crescimento qualitativo e quantitativo da participação da mulher nas engrenagens do crime organizado, grandemente influenciado pela mudança de oportunidades no contexto social e pelo desenvolvimento socioeconômico, acabou e acaba por lhe trazer avanços também na seara individual.

III. Os papéis desempenhados pelas mulheres do crime organizado

No artigo “A força das mulheres nas estruturas do crime organizado”, o escritor Roberto Saviano narra que, nas organizações criminosas italianas, particularmente na Camorra napolitana, na ’Ndrangheta calabresa e em algumas famílias da Cosa Nostra, elas são “submetidas a regras ancestrais, rituais rigorosos e compromissos inabaláveis” (Saviano, 2015), encontrando-se aprisionadas “numa espécie de terra de ninguém, entre a modernidade e a tradição” (Saviano, 2015). Elas “podem impor sentenças de morte, mas não podem ter amantes nem deixar os seus maridos” (Saviano, 2015), podem escolher “investir em sectores inteiros do mercado, mas não podem maquilhar-se enquanto os seus maridos estão presos” (Saviano, 2015). Tal equivaleria à confissão de uma infidelidade, de modo que, casos excepcionais à parte, “a mulher mafiosa existe unicamente à sombra do seu marido” (Saviano, 2015). Essa é a razão pela qual “as esposas da máfia vão tão despenteadas e mal vestidas quando acompanham os maridos aos julgamentos”, diferentemente de quando eles usufruem liberdade, com o propósito de “enfatizar a sua fidelidade”, pois o “homem manda, e quando manda, o seu poder reflecte-se na sua mulher e comunica-se através de sua imagem” (Saviano, 2015).

Note de bas de page 3 :

Encaixa-se nesse perfil, no Brasil, a título ilustrativo, Danúbia de Souza Rangel, conhecida como “Xerifa da Rocinha”, mulher do traficante Antonio Francisco Bonfim Lopes, o Nem da Rocinha, pivô de guerra entre traficantes de droga de facções rivais ocorrida na favela da Rocinha em 2017. Prado, Thiago; Bustamante, Luisa. “Ninguém mexe com ela”. Veja. São Paulo. V. 50, N.º 2550, 2017, pp. 72-73.

Nos cartéis mexicanos, a situação da mulher é bastante similar. Roberto Saviano relata que, nessas organizações criminosas, “a mulher é considerada como uma espécie de troféu para os traficantes de drogas, um reflexo de sua virilidade e do seu poder”, de maneira que, quanto maior a impressão causada por uma mulher, maior a autoridade demonstrada pelo traficante que a conduz. Isso sugere, para o autor, o motivo da grande popularidade dos concursos de beleza no México e na América Latina, porquanto as mulheres aparecem como “um recurso tão valioso no currículo dos traficantes, que alguns narcos manipulam os concursos de beleza onde participam as suas meninas” (Saviano, 2015). Trata-se de uma relação de contrapartidas, na qual “os traficantes oferecem a estas raparigas dinheiro e uma vida de conforto, enquanto elas, com a sua beleza, proporcionam-lhes prazer e prestígio” (Saviano, 2015).3

O escritor napolitano, na comparação entre as organizações criminosas italianas e os cartéis mexicanos, entende que as mulheres destes tendem a ser mais modernas e desinibidas que as daquelas, todavia ressalva que as esposas dos mafiosos, quando se apresentam de forma descuidada e são quase invisíveis, não sinalizam falta de autonomia, posto que, constantemente, assumem a liderança durante o tempo de ergástulo do cônjuge. O autor de Gomorra (2006) diz que, independentemente de sua origem, as mulheres do crime organizado costumam ter histórias semelhantes:

Marido e mulher conhecem-se ainda adolescentes e casam-se entre os 20 e os 25 anos. É muito comum que os homens se casem com a vizinha do lado, que conhecem desde pequena e, assim, podem ter a certeza de que ela mantém a sua virgindade. Por outro lado, ele pode ter amantes, antes ou depois do casamento. [...] Contudo, ultimamente as mulheres dos mafiosos começaram a exigir que as amantes dos seus maridos sejam estrangeiras – russas, polacas, romenas, moldavas –, que elas consideram socialmente inferiores e incapazes de constituir família e educar os filhos correctamente. Ter uma amante italiana ou, pior ainda, da própria comunidade, é prejudicial porque pode desestabilizar o equilíbrio familiar. E não só no sentido tradicional da família nuclear, mas também as relações dentro do clã. Um homem não pode arriscar-se a roubar a amante de outro chefe mafioso, enganar a irmã de um membro do próprio clã, ou envergonhar a sua própria mulher aos olhos de toda a comunidade. Este tipo de acções iria criar conflitos e choques, pondo em perigo a sobrevivência do clã. É um tipo de comportamento que viola o código de honra, as fundações sobre as quais a máfia se sustenta e que pode ser punido com a morte (Saviano, 2015).

Tratando da ’Ndrangheta, Enzo Ciconte ressalta que as mulheres têm um papel central na realidade familiar desta organização criminosa, não apenas porque o seu casamento contribui para o fortalecimento do clã de origem, mas porque a transmissão cultural do patrimônio mafioso aos filhos e a administração da família, compreendendo a gestão direta dos negócios diante da impossibilidade do marido, por estar preso, ou de sua limitação, por estar foragido, as levaram, gradualmente, à descoberta de funções relevantes, as quais explicam o processo de preservação e renovação controlada da cultura mafiosa:

Rimanere a casa voleva dire svolgere il ruolo insostituibile di trasmissione della cultura ’ndranghetista ai propri figli che dovevano essere allevati esattamente in quel modo per poter cooperare alle attività della famiglia e prendere il posto del padre alla morte di costui o in caso di impedimento nell’esercizio del suo potere di comando perché era in galera. Questa è la ragione che spiega come mai la cultura mafiosa si è trasmessa da una generazione all’altra, mummificata ma nel contempo vivificata da nuovi apporti (Ciconte, 2011: 54, 56).

Clare Longrigg, por sua vez, salienta a posição de dualidade ocupada pela esposa do mafioso nas vidas pública e privada e o papel da amante do mafioso como símbolo de seu poder:

In public, the wife of a mafioso enjoys the prestige of being married to the mob: in private, she is forced to endure the humiliation of his infidelities. The mafioso may claim to be the soul of honour, but a mistress is essential to his entourage: she is the symbol of his power and wealth (1988:212).

É muito peculiar a relação da mulher mafiosa com a morte e a viuvez, caracterizada por regras estritas e simbolismos marcantes. A sombra da morte ronda frequentemente os casamentos mafiosos, de sorte que, nos territórios sob seu controle, muitas mulheres se trajam apenas de negro, em sinal de luto perene, posto ou renovado ora pela morte violenta de um esposo, ora de um filho ou outro parente próximo; entretanto, por debaixo, vestem-se de vermelho, cor do sangue, cor da vingança, traduzido nos saiotes de antigamente ou na roupa interior usada hodiernamente, em especial, pelas mais jovens. Com a morte do marido, a mulher perde quase completamente a própria identidade como tal, restringindo-se à persona de mãe; para casar de novo, deve preencher várias condições, dentre as quais a aceitação dos filhos, a condição hierárquica equivalente do noivo em relação ao falecido e, principalmente, o cumprimento do tempo de duração do luto estabelecido pelo clã, em abstinência (Saviano, 2015).

Ombretta Ingrascì anota que, embora a igualdade aparente e presumida alcançada pelas mulheres dentro do universo mafioso possa se manifestar na dimensão laboral, o mesmo raciocínio não se aplica à esfera individual (2010 : 52)

Mas o fato é que a mulher do crime organizado de matriz mafiosa tem, cada vez mais, desafiado as regras ancestrais que a aprisionam no seio da organização criminosa e buscado preencher os espaços vazios deixados naquele universo por seus familiares presos, procurando manter vivas as “famílias”, inclusive e especialmente quando o mafioso decide colaborar com a Justiça:

Note de bas de page 4 :

“‘La mafia, ahora, es asunto de mujeres” [on-line]. La nación, 7 de julho de 2002. Consultado em: 29 de novembro de 2018. Disponível em: https://www.lanacion.com.ar/411812-la-mafia-ahora-es-asunto-de-mujeres.

No extraña entonces que muchas esposas de capomafias hayan repudiado a sus cónyuges arrestados, al enterarse de que éstos habían decidido arrepentirse: por esta traición a la fundamental regla del silencio, la famosa ‘omertá’, las mujeres no dudaron en definir a sus esposos, con desprecio, ‘ex-maridos’.”4

Por outro lado, há as mulheres que decidem, elas próprias, trilhar o caminho inverso e colaborar com a Justiça, expondo as entranhas do mundo do crime organizado no qual até então estiveram imersas. Iñigo Domínguez conta a triste história de Lea Garofalo, filha e irmã de chefes da ‘Ndrangheta’, que se casou com Carlo Cosco, outro mafioso, com quem viveu em Milão, nos círculos calabreses da droga, até a prisão deste em 1996, a partir da qual resolveu deixá-lo, por estar cansada daquela vida e desejar propiciar um futuro diferente à sua filha Denise, acabando por entrar no programa de proteção de arrependidos em 2002, com identidade e residência secretas, do qual, no entanto, se afastaria em 2009, por se sentir abandonada e se ressentir da vida solitária, na ilusão de que poderia restabelecer a comunicação com seu rico ex-marido. Foi um erro fatal que levaria ao seu desaparecimento em novembro do mesmo ano, resultando no seu assassinato após tortura e estrangulamento, com o seu corpo sendo metido em um tambor e incinerado, bem como na condenação à prisão perpétua de Carlo Cosco e seus cúmplices em 2012, para a qual contribuiu a sua filha Denise, que ainda passou, durante o processo, pelo profundo dissabor de descobrir que seu próprio noivo estava entre os assassinos de sua mãe (Domínguez, 2016).

Saviano menciona duas mulheres – Immacolata Capone e Anna Mazza – que marcaram época na história do crime organizado de matriz mafiosa:

Uma chefe da qual me lembro muito bem, já que pude testemunhar a sua ascensão ao poder na região onde nasci, era Immacolata Capone. Era uma mulher de negócios mas, de acordo com o Procurador Nacional Anti-Mafia de Nápoles, era também madrinha da Camorra. Membro do Clã Moccia, Capone foi fundamental na gestão das obras públicas do clã Zagaria de Casal di Principe, uma das famílias mais poderosas da região. Uma das suas funções mais importantes e delicadas era a de obter o “certificado anti-máfia” (um documento que garante que uma empresa está limpa e livre de ligações criminosas) para os negócios do clã. Sem este certificado, os camorristi não poderiam participar nos concursos para as obras públicas, por exemplo.
[...]
Criada no seio da Camorra, Capone era uma pequena mulher com um carácter muito forte, capaz de intimidar qualquer pessoa quando se tratava de fazer negócio. Cresceu sob a tutela de Anna Mazza, esposa do chefe do clã Moccia e a primeira mulher em Itália a ser condenada por crimes relacionados com a máfia pelo seu papel como dirigente de uma das associações empresariais e criminais mais poderosas do Sul do país.
Mazza, aproveitando-se da reputação do marido, Gennaro Moccia, assassinado nos anos 70, rapidamente tomou a liderança dentro do clã. Conhecida como a viúva da Camorra, ela foi o cérebro da família Moccia durante mais de vinte anos. Mazza introduziu uma espécie de matriarcado dentro da Camorra. Pretendia que as posições de prestígio estivessem ocupadas exclusivamente por mulheres porque, segundo ela, tinham menos obsessões com o poder militar e eram melhores mediadoras. Esta era a sua forma de dirigir a organização.
Capone aprendeu o ofício com Mazza, de modo que soube como construir uma rede de negócios e de influência política de enorme importância. Muitos camorristi tentavam conquistá-la, na esperança de se tornarem consortes de uma chefe posicionada no mais alto nível da hierarquia e, assim, partilharem tanto a cama como os negócios. Mas foi o seu próprio talento que precipitou a sua queda. Em Novembro de 2004, poucos meses após o assassinato do seu marido pelas mãos da máfia, ela foi assassinada num banho de sangue em Sant’Antimo, na província de Nápoles.
Tinha apenas 37 anos de idade. A polícia nunca descobriu o motivo do assassinato, mas é provável que os clãs não estivessem satisfeitos com as suas tentativas de subir na hierarquia. Podiam estar com medo da sua feroz ambição e, tendo em conta a sua capacidade para os negócios, ela podia tentar fazer algum tipo de acordo por conta própria, sem o conhecimento da família Casalese. Tudo o que sabemos na realidade é que Capone tinha conseguido abrir caminho entre as pressões, limitações e expectativas que são impostas às mulheres, deixando a sua marca na história da Máfia (2015).

Note de bas de page 5 :

Ver “‘La mafia, ahora...” [on-line]. La nación, 7 de julho de 2002. Consultado em: 29 de novembro de 2018. Disponível em: https://www.lanacion.com.ar/411812-la-mafia-ahora-es-asunto-de-mujeres.

Note de bas de page 6 :

Ver ibidem. Na mesma matéria, é atribuído à emancipação feminina o motivo desse aumento da relevância feminina na criminalidade mafiosa: “La emancipación femenina – dice un viejo informe del Ministerio del Interior –, ha dado a la mujer la libertad de convertirse en protagonista en cualquier sector de la vida social. Y este cambio radical no fue ajeno a ese mundo cerrado y oculto que caracteriza a las organizaciones criminales de tipo mafioso”. Ibidem.

Outras “mulheres de honra” lembradas são Pupetta Maresca, da Camorra, que, em 1955, assassinou, grávida, o apontado mandante do homicídio de seu marido; Antonietta “Ninetta” Bagarella, que se casou com o grande chefe mafioso Salvatore “Totò” Riina; e Rosetta Cutolo, que, após a prisão de seu irmão Raffaele, assumiu o controle dos negócios da Nova Camorra Organizada e foi, por muito tempo, considerada o cérebro do clã Ottaviano,5 dentre outras. São as mulheres da chamada “máfia rosa”, as quais têm se tornado cada vez mais numerosas e trocado os antigos papéis secundários por posições de destaque na hierarquia das organizações criminosas italianas. De fato, não obstante os homens permanecerem sendo mais importantes no contexto do crime organizado de estilo mafioso, o que igualmente vale para a criminalidade organizada em geral no mundo, os últimos anos têm assistido a um significativo incremento do número de mulheres denunciadas por associação de tipo mafioso, de forma que, em 1990, apenas uma mulher fora processada por envolvimento em tal modalidade delituosa, enquanto, cinco anos depois, as mulheres investigadas por ilícitos ligados à criminalidade mafiosa já somavam quase 100.6

Num esforço de síntese, Alessandra Dino enumera, dentre as muitas possíveis atividades femininas, as principais funções exercidas pelas mulheres do crime organizado:

  1. elas fortalecem os laços entre as famílias mafiosas mediante específicas estratégias matrimoniais;

  2. o papel feminino é central nos processos educacionais e de socialização;

  3. a importante relação com o sagrado e a religião e com a Igreja é preponderantemente deixada para a gestão feminina;

  4. o papel delas é estratégico nos processos de comunicação;

  5. elas também são os instrumentos de manutenção de uma imagem respeitável da organização;

  6. elas usualmente contribuem para dar à organização uma face normal e, em virtude desta normalidade presumida, ajudam a fomentar a aprovação geral da organização;

  7. elas são as figuras mais confiáveis (além de qualquer outra representação delas), e são empregadas em momentos de emergência real e para tarefas de grande responsabilidade (de coleta de pagamentos à gestão do clã);

  8. elas igualmente se tornam instrumentos simbólicos e vítimas em “vendette transversale”, isto é, vendetas cruzadas contra o parente mais próximo;

  9. elas são úteis em contrariar o controle de autoridades policiais e judiciais (Dino, 2010: 75).

A mesma autora elenca diferentes tipologias relacionadas aos papéis desempenhados por essas mulheres:

  1. esposas em consonância com o estereótipo tradicional, ou seja, aquelas que agem e se comportam dentro e fora da organização em conformidade com a expectativa de seus membros, têm, em geral, mais de 50 anos e provêm de famílias mafiosas ou nelas estão poderosamente integradas, caso de Antonietta Bagarella, Saveria Benedetta Palazzolo, Carmela Grazia Minniti, Antonina Brusca e Rosaria Castellana;

  2. mulheres que são parte ativa das engrenagens da organização, para quem os procedimentos legais estão em curso ou já findaram, situação de Maria Filippa Messina, Giovanna Santoro, Maria Stella Madonia, Giuseppina Vitale, Nunzia Graviano e muitas mais;

  3. mulheres razoavelmente autônomas e independentes, capazes de expressar a sua própria iniciativa, apoiadas ou combatidas pelos próprios membros da família, se necessário contrariando até os interesses da organização mafiosa, a exemplo de Margherita Petaglia, Carla Cottone, Margherita Gangemi e Piera Aiello;

  4. mulheres entre 30 e 40 anos, frequentemente oriundas de famílias mafiosas, cujas atividades parecem flutuar um pouco, envolvendo-se em constantes reconsiderações e conflitos, como é o perfil de Rosalia Basile, Concetta Ferrante, Giusy Spadaro, Angela Marino e Rosanna Cristiano;

  5. companheiras ou amantes, às vezes detentoras de muito maior influência do que as esposas legítimas, caso de Rita Simoncini e Elisabetta Scalici;

  6. mulheres vítimas, assassinadas pela organização de tipo mafioso, a exemplo de Francesca Citarda, a mãe, tia e irmã de Francesco Marino Mannoia, Carmela Grazia Minniti, Rosalia Pipitone, Luisa Gritti, Pina Lucchese, Santa Puglisi e muitas outras (Dino, 2010: 76).

Note de bas de page 7 :

Sobre a representação social das mulheres mafiosas construída pela televisão, é emblemática, no Brasil, a glamorização da personagem Bibi Perigosa, representada pela atriz Juliana Paes, na novela “A força do querer”, da Rede Globo, exibida em 2017, a qual se baseou na figura real da hoje escritora Fabiana Escobar, “Ex-Baronesa do Pó”, autora do livro Perigosa: a história de Bibi Perigosa (2017). “Bibi Perigosa real invade ‘A força do querer’”. O Estado do Maranhão, São Luís, 5 e 6 de agosto de 2017. Revista da TV, p. 3. Já no México, a narcotraficante Sandra Ávila Beltrán, mais conhecida como La Reina del Pacífico, do poderoso Cartel de Sinaloa, sobrinha do narcotraficante Miguel Ángel Félix Gallardo, chamado El Padrino, é considerada uma das principais inspirações da protagonista Teresa Mendoza, do romance La Reina del Sur (2002), de autoria do escritor espanhol Arturo Pérez-Reverte, o qual foi posteriormente levado como série à tela pequena pela Telemundo, transformando-se em fenômeno televisivo, com elenco encabeçado pela atriz Kate del Castillo.

Alessandra Dino também consigna que esses papéis, ao contrário de outros contextos internacionais, como o do Brasil, onde há o envolvimento de mulheres das classes sociais mais baixas, não estão simplesmente relegados a delitos relacionados ao tráfico de drogas, mas estão distribuídos em diversos tipos de atividades criminosas, bem como chama a atenção para o importante papel exercido pela televisão e pelo cinema na construção da representação social das mulheres mafiosas, aparentemente muito distante de imagens jornalísticas (Dino, 2010: 77-82).7

No âmbito da Sacra Corona Unita, Monica Massari e Cataldo Motta identificam os seguintes papéis particulares femininos:

    1. a mensageira, que é a ligação entre a prisão e o mundo exterior, ocupada em fazer chegar mensagens ao membro da família preso;

    2. a coletora de dinheiro, que coleta o dinheiro oriundo das várias atividades do grupo criminoso e o redistribui para os membros;

    3. a administratora, que gerencia certas atividades ilegais ou determinados setores do mercado ilícito;

    4. a conselheira, cuja opinião ou ponto de vista é geralmente solicitado, por exemplo, em conflitos em curso com grupos rivais, na liquidação de contas dentro do clã e na repartição de poder dentro de uma família (Massari, Motta, 2010:65).

Registra Giovanni Fiandaca, a propósito, que ainda é infrequente, em termos estatísticos, o fenômeno da assunção eventual, pelas mulheres do crime organizado, de papéis de liderança em situações de crise, como nas situações de chefe varão preso, fugitivo ou incapacitado de algum modo para exercê-la (Fiandaca, :2).

Não somente tem aumentado a participação da mulher na criminalidade organizada, qualitativa e quantitativamente, como também há evidências de que esta tem praticado delitos cada vez mais violentos:

Note de bas de page 8 :

Ver “‘La mafia, ahora...” [on-line]. La nación, 7 de julho de 2002. Consultado em: 29 de novembro de 2018. Disponível em: https://www.lanacion.com.ar/411812-la-mafia-ahora-es-asunto-de-mujeres.

En polleras y tacos altos, ahora hasta se atreven a apretar el gatillo abiertamente, sin ningún reparo.
Una masacre ocurrida hace un mes en Quindici, un pueblito cercano a Nápoles, en el sur del país, confirmó este fenómeno.
Una realidad de la cual se habla poco, pero que existe. Tras una emboscada y un violento tiroteo callejero, tres mujeres de un clan mafioso fueron asesinadas por otro grupo de mujeres de la familia de los Graziano, un clan rival. Las víctimas fueron Michelina Cava, María Scibelli y Clarissa Cava, de 51, 53 y 16 años, respectivamente, una hermana, la otra cuñada y la última hija de Biagio Cava, el “capoclan” de la familia homónima, que se encuentra detenido en Francia.
Los carabineros, que desde hace tiempo investigaban a estas dos familias, tardaron poco en descubrir que esa masacre, en la que por primera vez víctimas y victimarios eran mujeres, había sido fruto de una historia totalmente femenina.
Lo que desató la furia homicida, en efecto, fue una discusión en la peluquería. Allí, entre un brushing y una manicure, se habían trenzado “madrinas” de estos dos familias, enemigas desde tiempos inmemoriales. En la trifulca, que incluyó hasta una cachetada, salieron ganando las Cava. Y las Graziano decidieron la vendetta, organizando para el día siguiente una expedición punitiva que terminó en un baño de sangre para las Cava.
Según los expertos, este brutal ajuste de cuentas – en el que por primera vez se violó aquella regla del “código de honor” por la que las mujeres son intocables –, se enmarca dentro de una nueva realidad en el mundo de la mafia, en el que las mujeres ya no tienen papeles secundarios, sino que son protagonistas y virtuales ejes de la organización.8

O Brasil não foge à regra. Em reportagem intitulada “Perfil de mulheres envolvidas no crime organizado mudou”, Paola Carvalho observa que, em Roraima, tem aumentado significativamente o número de mulheres ligadas ao crime organizado, assumindo posições hierárquicas cada vez mais relevantes na facção, incluindo a de líder. Ela se baseia, em especial, na avaliação de um especialista no tema:

Para o professor e pesquisador da Universidade Estadual de Roraima (Uerr) e especialista em Segurança Pública, Carlos Borges, antigamente se tinha um quadro em que as mulheres que eram presas por conta do envolvimento dos companheiros ou familiares e elas acabavam cometendo crimes, indo para a prisão para ajudar os aprisionados.
No entanto, o sistema de informações estatísticas do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) apontou que houve um crescimento de 67% de mulheres no sistema prisional no período de 2000 até 2015.
Conforme Borges, a entrada das mulheres no crime por conta dos seus parceiros continua sendo uma das razões. Porém, no segundo momento, se tem a expansão de mulheres comandando o crime. “Isso é oriundo, via de regra, das facções”, afirma o especialista.
O professor acredita que, quando o companheiro é recolhido ao sistema prisional, é ela que assume não só a contabilidade da relação econômica com a facção, mas muitas vezes assume o próprio comando da facção.
O especialista diz ainda que este não é mais um fenômeno só das grandes capitais e que já pode ser percebido em Roraima, onde as brigas pelo controle de mercado da droga acabam resultando no elevado número de mortes. “Quando uma facção assume controle, põe sua equipe, a sua célula. Essas pequenas células já devem submissão ao crime organizado e são responsáveis por atrair mulheres jovens”, explicou (Carvalho, 2018).

A jornalista cita o mesmo especialista para informar que o alvo preferencial de recrutamento das facções locais é a mulher jovem com sérios problemas familiares e que as mulheres do crime organizado têm se envolvido mais em crimes violentos e até cruéis, na qualidade de executoras ou mesmo de líderes:

O pesquisador em Segurança Pública acredita que o alvo preferido das facções são as mulheres jovens, em uma faixa etária não muito alta, com passagem pelo sistema de recuperação juvenil e por graves problemas familiares, como estupro e abandono.
Borges explicou que elas são cooptadas por já terem passado por um processo de desilusão e terem uma falta de sensibilidade com relação à vida e, por conta desse aspecto, podem se tornar mais violentas. ‘Ela tem um imaginário que foi moldado seja no ambiente familiar, tóxico, agressivo, seja nos centros de correção que não corrigem e só pioram o estado da pessoa. Ao sair de lá, ela é cooptada porque já é hábil, já tem experiência com a violência’, disse o professor.
O nível de crueldade demonstrado nos crimes praticados por mulheres, para o professor, não deixa nenhuma inveja por atos executados por membros masculinos das facções, a exemplo do caso de execução das duas jovens no Anel Viário. “As mulheres têm uma qualidade de fazerem várias coisas ao mesmo tempo, então ela se torna pior. Como gestora do crime, tem que mostrar tanto poder quanto os homens, talvez mostrando violência maior”, analisou (Carvalho, 2018).

Note de bas de page 9 :

Tratamos do tema da participação feminina no crime organizado em artigo recente. Ver FERRO, Ana Luiza Almeida. “As mulheres do crime organizado”. In: CASTRO, Zília Osório de e MONTEIRO, Natividade (coords.). Falar de mulheres: percursos e desafios latino-americanos. V. N. Famalicão: Húmus, 2020, pp. 175-196.

Por último, cabe mencionar que, na América Latina, não sendo o Brasil exceção, há muito envolvimento feminino no crime organizado9 relativo ao tráfico, inclusive internacional, de mulheres e crianças, sobretudo para fins de exploração sexual, mas não somente, destacando-se o papel de recrutadora, dentre outros relacionados, pelo fato de a mulher, a priori, com mais facilidade que o homem, despertar confiança.

IV- A questão do paternalismo judicial

Os aparatos da justiça criminal inequivocamente reproduzem as relações de poder existentes no social, quanto à raça, à classe e ao gênero, atuando no fortalecimento dos controles informais exercidos sobre as mulheres, mediante um trato mais rígido em relação àquelas que não estão em conformidade com os padrões destes, de sorte que alguns doutrinadores optam pela palavra “paternalismo” em vez de “cavalheirismo” para designar a visão do cavalheiro a serviço das damas que é substituído pela do pai também protetor, controlador e dominador, como assinala María Luisa Maqueda Abreu.

Ela entende ser ingênua a posição dos que celebram essa consideração privilegiada do Estado no concernente às mulheres nas diferentes etapas do procedimento penal, porquanto lembra a perspectiva crítica que denuncia exatamente o oposto, consistente na discriminação sofrida pelas mulheres em contato com a polícia ou a justiça nas situações em que se afastam dos papéis tradicionais de gênero e, em consequência, do comportamento ideado pelas agências de controle (Maqueda Abreu, 2014: 116-117). Partindo desse pressuposto, Maqueda Abreu, tomando por base estudo de Kruttschnitt, aponta alguns dos critérios determinantes na prolação de uma sentença judicial de tom mais severo ou mais condescendente pela ótica do gênero:

En un estudio sobre la respetabilidad de las mujeres, Kruttschnitt ofrece una serie de indicadores internos y externos al sistema criminal para determinar su influencia sobre las actitudes más o menos benevolentes de los tribunales. No sólo la existencia de condenas anteriores sino otros indicadores externos como tener una historia de enfermedad mental, previo abuso de drogas o alcohol, despido de un trabajo o mala reputación personal o de las personas del entorno (familia, amigos, vecindario...) serían critérios decisivos para recibir sentencias judiciales más severas. En esa misma línea, otras investigaciones han mostrado que la integración social y familiar (empleo, matrimonio...) es un índice positivo, de modo que las mujeres con lazos familiares adecuadas, casadas y con niños y dependientes económicamente reciben un trato más lenitivo por parte de los jueces, que se comportam también más indulgentemente con las que pertenecen a su misma clase social discriminando, a cambio, a las mujeres pobres y solas, inmigrantes o integrantes de minorías raciales (afro-americanas) o étnicas (como las gitanas o las zíngaras) que resultan sentenciadas con más dureza (Maqueda Abreu, 2014: 118).

Rosemary de Oliveira Almeida nos apresenta outro aspecto da questão. Ela explica, adotando por referência principal a crítica de Michelle Perrot sobre a relação entre o ilícito penal de autoria feminina e a noção de fragilidade, que, pelo prisma desta, “o discurso criminalista difundiu no imaginário social a concepção de características definidoras do perfil da mulher, como fragilidade, mansidão e submissão”, de feição que “a mulher só age criminalmente em ataque a uma criança indefesa ou a um velho, ou defensivamente, por vingança ou ciúme”, perspectiva atestadora do delito como “assunto de homens”, da esfera viril (Almeida, 2001:146).

Seguindo o raciocínio da autora, Adriana de Nunes Martorelli pondera que, se, de uma parte, existe benevolência no tratamento reservado à mulher pelos operadores do sistema de justiça, de outra, tal postura se reveza com uma reação violenta desses mesmos profissionais diante da mulher enxergada como não-mulher:

Sim, pois, seu protagonismo na prática delitiva, especialmente quando há emprego de violência, coloca-a na outra face da mesma moeda: a da mulher marginal, que nega sua natureza feminina, submissa, dominada, preferindo revestir-se pela etiqueta da promiscuidade, da vagabundagem, libertinagem, prostituição, lesbianismo. Tudo do mais de ignóbil e que não tem nada a ver com a figura da frágil donzela, construída no imaginário social, identificada como aquela que deve comportar-se passiva e coadjuvantemente.
No campo de estudo do fenômeno criminal, “é a figura da prostituta como degenerada moral e criminosa que pode ser considerada, nesta análise, a primeira figura feminina de destaque nos discursos criminológicos” (Martorelli, 2018: 40).

Wendy Lower caminha na mesma trilha ao confirmar o tratamento condescendente dispensado por investigadores, membros do Ministério Público e magistrados no caso da grande maioria das mulheres nazistas, particularmente as de aparência submissa, e a frequente deturpação, para um tipo de desvio sexual, da conduta violenta das poucas submetidas a julgamento depois da Segunda Guerra Mundial, visualizadas como cruéis e sedutoras, o mal encarnado na figura da mulher erotizada (Lower, 2014: 185, 212-213).

O paternalismo judicial sempre grassou no cenário jurídico italiano no tocante às mulheres do universo da Máfia. Conta Clare Longrigg que, quando principiou a pesquisa sobre o assunto no final da década de 80, sua maior motivação foi a irritação, dado que havia evidência a indicar que as mulheres desempenhavam um papel ativo na famosa organização criminosa, contudo a ideia era geralmente objeto de descrédito, classificada como risível. Acidamente, ela cita que a irritou profundamente uma decisão judicial de 1983, proferida em Palermo, pela qual foi declarado que as mulheres não poderiam ser consideradas culpadas pela prática de lavagem de dinheiro, pois não gozariam de autonomia e seriam estúpidas demais para tomar parte do “difícil mundo dos negócios”. Pareceu-lhe que tal modo de pensar privava as mulheres de uma escolha moral, acrescentando que alguns juízes ainda propugnam a tese de que uma mulher dirigindo os negócios do marido não está perpetrando um delito, denotando que uma esposa mafiosa não possuiria escolha e, por conseguinte, seria desprovida de responsabilidade moral, o que absolutamente contraria a realidade, conforme lhe afirmou o magistrado Giuseppe Narducci, de Nápoles, em 1995:

Women’s role is in no way subordinate: they make decisions, they plan strategies and commit crimes. Some magistrates have a problem believing that women are equal, but they’ll get over it (Longrigg, :XV).

Longrigg, defendendo a igualdade de tratamento das cortes para homens e mulheres, ambos com direito a um julgamento justo no banco dos réus, confidencia que entendia ser difícil aceitar que as mulheres não seriam inteligentes o suficiente para a prática delituosa e que elas seriam moralmente superiores aos homens, posição que acolhemos plenamente. Ela esclarece a confusão reinante na Sicília, terra originária da Máfia, sobre a capacidade penal das mulheres, destacadas como beldades armadas ou, mais habitualmente, como mães santas:

The veneration of motherhood makes Italians unwilling to think of women as capable of destructive or dangerous behavior, and this atitude has led to a number of questionable acquittals. In 1971 Ninetta Bagarella, fiancée of the Corleone mobster Totò Riina, persuaded a judge not to punish her for working for the Corleone clan, by telling a Palermo court: ‘I am a woman in love. Is that a crime?’
Even though women are supposed to be excluded from the mafia, the Italian media love the image of a killer bimbo. Girls with guns have always held a sexual fascination – in southern Europe, not just in Hollywood – and the media tend to celebrate one single murderess more than hundreds of male killers. Any woman described by the Italian press in connection with the mafia is bella, ‘beautiful’, with black hair and black eyes, mysterious and proud – the reader can just join the dots.
More commonly, mafia women are perceived as saintly mothers. The traditional view of the mafia wife is of sacrifice, loyalty and silence: standing by her man through the tough times, and raising the children to be perfect gangsters. The mafia relies on this image to generate propaganda. [...]
Not only does the press defend such women, without whom none of their husbands’ careers would have been possible, but women have been smart enough to manipulate the media. Some have given press conferences to denounce their turncoat husbands, showing a media awareness which hardly fits with the image of the ignorant mafia wife who never asks questions and never leaves the house (Longrigg, 1998: XV-XVI).

Há uma nítida dissensão na doutrina sobre se o tratamento estritamente igualitário na lei é favorável ou não às mulheres.

O primeiro posicionamento, de orientação feminista, é de que o único modo de eliminar o tratamento discriminatório e a opressão impostos às mulheres no passado consiste em pressionar pela igualdade contínua sob a lei, ou seja, defender emendas e dispositivos legislativos de direitos iguais e rechaçar qualquer legislação contendo tratamento diferencial para as mulheres em relação aos homens, sob o argumento de que, conquanto tal opção possa ser mais dolorosa em curto prazo, ela seria a única forma, a longo prazo, a garantir às mulheres a igualdade de tratamento como parceiras do jogo nas esferas econômica e social.

Já o posicionamento oposto, na linha “separados mas iguais”, lembra que as mulheres não são iguais aos homens, além do que a própria igualdade é medida por um padrão masculino, daí resultando que aquelas sempre perderiam para estes, o que justificaria que fossem levadas em conta as necessidades diferenciais, com a consequência de que mulheres e homens poderiam ser tratados diferentemente, sob a condição de que isso não pusesse aquelas numa posição mais negativa do que ocorreria na ausência de legislação, ao que os adeptos da equalização rebatem alegando que, considerando as realidades legais e sociais, o tratamento diferencial para as mulheres sempre terá um caráter desigual, sendo que, com a aceitação de distintas definições e tratamentos, as mulheres se arriscam a ensejarem a perpetuação do estereótipo de serem “diferentes” e, pior, “inferiores” em comparação com os homens (Chesney-Lind, 2013: 140-141).

Meda Chesney-Lind e Lisa Pasko, tratando da realidade americana, observam que o sistema de justiça criminal agora parece mais disposto a encarcerar mulheres, atribuindo tal fato, de maneira especulativa, às seguintes razões:

  1. o caráter obrigatório da condenação para tipos específicos de crimes, em especial os relacionados às drogas, tanto no nível estadual, quanto no federal, com o agravamento das sanções penais para todas as modalidades delituosas, promovido pelos legisladores, talvez em resposta ao aumento significativo na cobertura da mídia sobre a criminalidade, e não necessariamente à taxa real de delitos;

  2. a “reforma” da sentença nos Estados Unidos, em particular o desenvolvimento de diretrizes para a condenação e mínimos obrigatórios resultantes das legislações conhecidas como “Three Strikes and You’re Out” (algo como “Três Violações e Você está Fora”, significando, na seara criminal, que o agente é punido muito severamente quando vem a praticar três infrações penais, independentemente da gravidade em si de cada ilícito perpetrado, política inspirada no beisebol, esporte no qual o jogador é excluído da partida quando comete a terceira falta no mesmo jogo) e “Truth in Sentencing” (“Verdade na Sentença”, política na qual é reduzida a possibilidade de liberação antecipada do encarceramento, devendo determinados condenados cumprir parte substancial da pena de prisão antes da concessão de livramento condicional, sem direito a certos créditos disciplinares), a qual criou alguns problemas para as mulheres, porque se refere a questões desenvolvidas no tratamento de criminosos do sexo masculino, sem reconhecimento, por exemplo, de peculiaridades na situação daquelas para efeito de acolhimento de circunstâncias atenuantes;

  3. o sistema de justiça criminal simplesmente se tornou mais rígido em qualquer nível da tomada de decisão, atingindo delitos tradicionalmente associados à autoria feminina (Chesney-Lind, 2013: 125-126).

Elas comparam a presente explosão do encarceramento feminino nos Estados Unidos com as primeiras manifestações do encarceramento organizado de mulheres, frisando as semelhanças e as diferenças de concepção da justiça criminal:

A careful review of the evidence on the current surge in women’s incarceration suggests that this explosion may have little to do with a major change in women’s behavior. This surge stands in stark contrast to the earlier growth of women’s incarceration at the turn of the 20th century.
Perhaps the best way to place the current wave of women’s imprisonment in perspective is to recall earlier approaches to women’s incarceration. Historically, women prisoners have been few in number and were apparently an afterthought in a system devoted to the imprisonment of men. In fact, early women’s facilities were often an outgrowth of men’s prisons. In those early days, women inmates were seen as “more depraved” than their male counterparts because they were viewed as acting in contradiction to their whole “moral organization” (Rafter, 1990: 13).
The first large-scale, organized imprisonment of women occurred in the United States when many women’s reformatories were established between 1870 and 1900. Women’s imprisonment was justified not because the women posed a public safety risk, but because women were thought to need moral revision and protection. [...]
The current trend in adult women’s imprisonment seems to revisit the earliest approach to female offenders: Women are once again an afterthought in a correctional process that is punitive rather than corrective. Women are also, however, no longer being accorded the benefits, however dubious, of the chivalry that had characterized the reformatory movement. Rather, they are increasingly likely to be incarcerated, not because society has decided to crack down on women’s crime specifically, but because women are being swept up in a societal move to “get tough on crime” that is driven by images of violent criminals (almost always male and often members of minority groups) “getting away with murder” (Chesney-Lind, 2013: 127).

Meda Chesney-Lind e Lisa Pasko igualmente anotam que o movimento reformatório possuía um viés seletivo de gênero, resultando no encarceramento de uma grande quantidade de garotas e mulheres brancas da classe trabalhadora por infrações muitas vezes de natureza não criminal ou de mera conduta, mas não no de mulheres afro-americanas, especialmente no sul, as quais continuaram a ter prisões como destino, onde recebiam tratamento similar ao dos homens, sujeitas a espancamentos no caso de não acompanharem o ritmo de trabalho, de modo que esse legado racista, no respeitante à exclusão das mulheres negras do tratamento “cavalheiresco” conferido às mulheres brancas, não pode ser esquecido diante da atual explosão da população carcerária feminina (Chesney-Lind, 2013: 127).

Considerações finais

Embora ainda seja expressivamente majoritária a presença masculina nas organizações criminosas, a participação feminina tem, ao longo dos anos, crescido em quantidade e qualidade, o que tem representado um desafio para os representantes do sistema criminal.

Seja em virtude do movimento de emancipação feminina, seja em decorrência do aumento de oportunidades no contexto social, do desenvolvimento socioeconômico e das demandas do mercado de trabalho nas sociedade ocidentais, especialmente as capitalistas, é indubitável que a mulher está cada vez mais presente nas engrenagens do crime organizado, e não apenas desempenhando os tradicionais papéis de assistência e suporte e de centralidade nos processos educacionais e de socialização, mas ocupando espaços antes insuspeitos, inclusive de exercício de atividades de administração e, até, em casos cada vez menos raros, conquanto ainda infrequentes no terreno dos números, de chefia, geralmente ligados a situações de crise no seio do clã, como a morte ou a prisão do líder natural ou de seu sucessor designado.

Essa evolução da participação da mulher na esfera laboral do crime organizado não significa que ela não continue a enfrentar resistências veladas ou explícitas no mundo masculino da criminalidade organizada e, mormente, grandes discriminações e limitações nos domínios privados, muito pelo contrário. Por outro lado, tal evolução laboral não deve ser vista como um processo de “masculinização” da mulher, no passado visualizada como um ser inferior e dócil, ou um símbolo da bondade, porém como um espelho das transformações sociais.

A reação do sistema judicial à crescente participação feminina no universo do crime organizado tem, com alguma frequência, oscilado entre um excessivo rigor e um paternalismo ora sutil, ora patente, marcados por visões muitas vezes estereotipadas e irrealistas sobre a mulher, sua atuação ilícita e suas motivações, com tons e sobretons em função de fatores raciais, étnicos e socioeconômicos.

Não obstante as semelhanças apontadas de papéis exercidos pelas mulheres do crime organizado pelo mundo, e particularmente na Itália, no México e no Brasil, há de ser notado que, em cada sociedade, com seus diferentes códigos culturais, a mulher se vê impulsionada por diversas motivações para o envolvimento nas engrenagens do crime organizado.