Narrativas manicomiais: a produção de sentidos e as práticas comunicativas sobre a loucura no Brasil Manicomial narratives: the production of meanings and communicative practices about madness in Brazil

Camila Fortes Monte Franklin 
y Wilson Couto Borges 

https://doi.org/10.25965/trahs.5014

Após 21 anos da implementação da Lei 10.216, que sanciona a mudança do modelo de saúde manicomial para uma sociedade livre de manicômios, o Ministério da Saúde decretou, por meio da Portaria 596, de 22 de março de 2022, o Programa de Desinstitucionalização para a reinserção social de pessoas com transtornos mentais e/ou decorrentes do uso de álcool e outras drogas, em hospitais psiquiátricos. Metodologicamente, tomaremos as narrativas sobre a lógica manicomial, bem como o sistema psiquiátrico e as internações compulsórias, evidenciando as consequências das práticas comunicativas na construção de sentidos sobre a loucura e/ou desvios. Em que medida esse movimento acentua o avanço de um processo conservador, colocando em xeque a Reforma Psiquiátrica e as políticas púbicas de saúde, é o objeto da reflexão que desenvolveremos nas próximas páginas.

Après 21 ans de mise en œuvre de la loi 10.216, qui sanctionne le passage du modèle de santé asilaire à une société sans asile, le ministère de la Santé a décrété, par l'ordonnance 596, du 22 mars 2022, le programme de désinstitutionnalisation de la réinsertion des personnes atteintes de troubles mentaux et/ou résultant de l'usage d'alcool et d'autres drogues, dans les hôpitaux psychiatriques. D’un point de vue méthodologiquet, nouspartirons des textes sur la logique asilaire, ainsi que sur le système psychiatrique et les hospitalisations forcées, en mettant en évidence les conséquences des pratiques communicatives dans la construction de sens sur la folie et/ou les déviations. Dans quelle mesure ce mouvement accentue l'avancée d'un processus conservateur qui met en échec la Réforme Psychiatrique et les politiques de santé publique? Tel est l’objet de la réflexion que nous développerons dans les pages suivantes.

Luego de 21 años de la implementación de la Ley 10.216, que sanciona el cambio del modelo de salud asilo a una sociedad libre de asilos, el Ministerio de Salud decretó, a través de la Ordenanza 596, del 22 de marzo de 2022, el Programa de Desinstitucionalización de la reinserción de personas con trastornos mentales y/o derivados del consumo de alcohol y otras drogas, en hospitales psiquiátricos. Metodológicamente, tomaremos las narrativas sobre la lógica del asilo, así como del sistema psiquiátrico y de las internaciones obligatorias, destacando las consecuencias de las prácticas comunicativas en la construcción de significados sobre la locura y/o las desviaciones. ¿En qué medida este movimiento acentúa el avance de un proceso conservador, poniendo en jaque a la Reforma Psiquiátrica ya las políticas de salud pública? Tal es el objeto de la reflexión que desarrollaremos en las siguientes páginas.

After 21 years of the implementation of Law 10.216, which sanctions the change in the asylum health model to a society free of asylums, the Ministry of Health decreed, through Ordinance 596, of March 22, 2022, the Deinstitutionalization Program for the social reintegration of people with mental disorders and/or those resulting from the use of alcohol and other drugs, in psychiatric hospitals. Methodologically, we will take the narratives about the asylum logic, as well as the psychiatric system and compulsory hospitalizations, highlighting the consequences of communicative practices in the construction of meanings about madness and/or deviations. To what extent this movement accentuates the advance of a conservative process, putting the Psychiatric Reform and public health policies in check, is the object of the reflection that we will develop in the following pages.

Índice
Texto completo

Introdução

Note de bas de page 1 :

A Portaria nº 596/2022 revoga artigos das Portarias de Consolidação GM/MS de nº 5 e 6 de 2017, as quais regulamentavam e financiavam programas de desinstitucionalização, assim como a reabilitação psicossocial de pessoas com transtornos mentais e de usuários de álcool e outras drogas. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2022/prt0596_23_03_2022.html. Acesso em: 08 out 2022.

Em 22 de março de 2022, o Ministério da Saúde, através da Portaria 596/221, susta o Programa e o Incentivo Financeiro de Custeio Mensal para o Programa de Desinstitucionalização, integrante do Componente Estratégias de Desinstitucionalização da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e redireciona para a reinserção social de pessoas com transtornos mentais e/ou decorrentes do uso de álcool e outras drogas, em hospitais psiquiátricos. Além da determinação, foi lançado um edital público pela Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (SENAPRED), vinculado ao Ministério da Cidadania, com o repasse de R$ 10 milhões a hospitais psiquiátricos, demonstrando o incentivo aos grandes proprietários de hospitais e alimentando um sistema manicomial. Em outras palavras, a Portaria do Ministério da Saúde invalida o financiamento e a garantia de incentivos financeiros para as estratégias de desinstitucionalização da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) a partir do Sistema Único de Saúde (SUS).

Note de bas de page 2 :

Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2151637. Acesso em: 08 out 2022.

Note de bas de page 3 :

A lei 10.216/01 ou Lei da Reforma Psiquiátrica de 2001 dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais através da desinstitucionalização dos hospitais psiquiátricos e manicômios judiciários, e redireciona o modelo assistencial em saúde mental de modo integrativo, multiprofissional, inserindo essas pessoas na vida social, de forma plena.

A Portaria foi revogada pelo Projeto de Decreto Legislativo 66/222, de 23 de março do mesmo ano, anulando os efeitos da Portaria 596/22 do Ministério da Saúde; porém, nos revela sobre como as políticas de saúde mental se encontram fragilizadas no país. Passam pelas estratégias de desinstitucionalização determinadas práticas que incentivam a promoção de autonomia e cidadania, garantindo uma ressocialização dessas pessoas com a sociedade, com o trabalho, com o lazer e com as relações socioafetivas. Essas ações foram estabelecidas através da Lei 10.216/013, que garante às pessoas com transtornos mentais e aos usuários de álcool e outras drogas um tratamento e acompanhamento no sistema de saúde, com a importância de serem tratados no ambiente terapêutico de forma respeitosa, humana e digna.

Note de bas de page 4 :

A série histórica apresentada pelo IBGE mostra que a taxa de desocupação de mulheres sempre esteve acima da média nacional, chegando a atingir quase 20% no segundo trimestre de 2021. Hoje, ela está acima dos 12%, chegando a ser quase o dobro se comparada aos homens, mantendo-se ainda bem acima da média nacional. Para maiores detalhes ver: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9173-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-trimestral.html?=&t=series-historicas&utm_source=landing&utm_medium=explica&utm_campaign=desemprego. Acesso em: 18 out 2022.

Para além da reflexão que aponta os retrocessos na saúde mental brasileira (Borges, 2015), se faz necessário discutir a quem essas contrarreformas mais prejudicam. São as mulheres, e em especial, as negras e pobres, que mais sofrem os abalos e ameaças de garantias de direitos, uma vez que são maioria em empregos precários e acumulam jornadas contínuas de trabalho, sendo pouco ou não-remuneradas4. Por isso, se apresenta como urgente a discussão sobre os impactos de ameaças como a Portaria 596/22 do Ministério da Saúde, pois, mais do que nunca, se faz necessário debater sobre como as mulheres ainda são as mais prejudicadas, invisibilizadas e subalternizadas nessa questão.

Note de bas de page 5 :

Trata-se de uma tese de doutoramento que está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS).

Dito isso, o presente trabalho visa apontar e destacar de que modos as práticas comunicativas e as narrativas jornalísticas produzidas sobre a lógica manicomial, o sistema psiquiátrico e a internação compulsória podem construir sentidos sobre a loucura, abrindo espaço para um processo conservador. Do mesmo modo, essa reflexão se conecta a uma pesquisa em curso5 que investiga e problematiza os processos de subjetivação e patologização das mulheres vistas como loucas na história e no tempo através das narrativas jornalísticas, considerando as questões de raça e classe como fatores determinantes nesses processos.

Por fim, será proposta uma reflexão sobre o processo comunicativo em sua afetação e construção de sentidos formados na sociedade em relação às pessoas com transtornos mentais e/ou usuários de álcool e outras drogas e de como influenciam na formação e (re)atualização dos estereótipos de gênero. Para além disso, o presente artigo cria corpo em um cenário particular onde há um avanço no pensamento conservador e uma sequência de retrocessos na Rede de Saúde Mental e Atenção Psicossocial, como também no Sistema Único de Saúde (SUS), nos direitos trabalhistas dos profissionais de saúde e em outras ordens, que colocam, diretamente, em xeque a Reforma Psiquiátrica Brasileira e o funcionamento de políticas públicas de saúde no país.

O Sistema Único de Saúde (SUS) e a Reforma Psiquiátrica Brasileira: uma breve contextualização

Para compreendermos como o Sistema Único de Saúde (SUS) foi construído no Brasil, se faz necessário refletir sobre as noções de saúde e doença. Almeida Filho (2011) discute sobre as diversas tensões que atravessam a definição conceitual do fenômeno saúde-doença, enquanto um fenômeno que não pode ser compreendido somente a partir de uma perspectiva biomédica, clínica e/ou epidemiológica, mas que é preciso considerar a sua complexidade ao ser atravessada por questões sociais, políticas, institucionais e ideológicas. Para o autor, o estado ou grau de saúde é multidimensional, tornando difícil a elaboração de instrumentos para medir o completo bem-estar físico, mental e social, como é compreendido pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

E é pensando não somente nos cuidados assistenciais que o Sistema Único de Saúde foi criado, a partir da Constituição Federal de 1988. Com o objetivo de abranger desde o simples atendimento médico na atenção primária até o transplante de órgãos e serviços mais complexos, o SUS visa dar atenção integral à saúde a todos os brasileiros, desde a gestação e por toda a vida, com foco na saúde com qualidade de vida, na prevenção e na promoção da saúde (SAÚDE, 2020).

Note de bas de page 6 :

Disponível em:
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html#:~:text=Art.,%C3%9Anico%20de%20Sa%C3%BAde%20(SUS). Acesso em: 08 out 2022.

Note de bas de page 7 :

Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2011/decreto-7508-28-junho-2011-610868-publicacaooriginal-132963-pe.html. Acesso em: 08 out 2022.

A atenção em saúde mental oferecida pelo Sistema Único de Saúde se dá através do financiamento tripartite (uma negociação entre gestores federal, estadual e municipal, quanto aos aspectos operacionais do sistema) e de ações municipalizadas e organizadas por níveis de complexidade. Pactuada em dezembro de 2011, através da Portaria nº 3.088 de 23 de dezembro de 20116, atribui-se à Rede de Atenção Psicossocial a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais e/ou usuários de álcool e outras drogas. A Rede se desenvolve como parte das discussões de implantação do Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 20117 e prevê, a partir da Política Nacional de Saúde Mental, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), os Serviços Residenciais Terapêuticos, os Centros de Convivência e Cultura, as Unidades de Acolhimento e os leitos de atenção integral em Hospitais Gerais, todos destinados à atenção psicossocial.

Além de atender pessoas com transtornos mentais, estes espaços acolhem usuários de álcool e outras drogas e estão espalhados pelo país, modificando a estrutura da assistência à saúde mental. Substituindo progressivamente o modelo hospitalocêntrico e manicomial, esses espaços buscam construir um sistema de assistência orientado pelos princípios fundamentais do SUS (universalidade, equidade e integralidade).

Essa forma de atendimento e assistência é fruto de uma luta extensa que resultou na Reforma Psiquiátrica Brasileira, no final da década de 1970, ao criticar o modelo asilar de assistência em saúde mental, bem como a mercantilização da loucura. Profissionais da saúde mental, como psicólogos, psiquiatras, enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, dentre outros, se mobilizavam para denunciar os maus tratos cometidos dentro das instituições psiquiátricas e para se auto-organizarem nos movimentos sociais de saúde, reivindicando novas formas de assistência e medicalização (Franklin, 2020). A atual conjuntura de saúde mental do Brasil recomenda a inclusão da pessoa com transtorno mental na sociedade em busca de superar os antigos métodos de internação e o inserir num contexto sociofamiliar através de novas formas de assistência à saúde mental.

Mesmo com as modificações que vem ocorrendo na assistência à saúde mental brasileira nas últimas décadas, ainda são poucos ou limitantes os serviços de assistência às pessoas com transtornos mentais e/ou usuárias de álcool e outras drogas. E isso se dá pela precarização dos serviços, pelas poucas unidades de apoio ou a falta de informação. A partir da necessidade de uma lei que contemplasse as pessoas com transtornos mentais de modo humanizado, assistencial e educativo, é promulgada a Lei Federal de número 10.216 do ano de 2001 (BRASIL, 2001), que assegura a necessidade de respeito, igualdade e dignidade às pessoas com transtornos mentais.

Considerando que as legislações anteriores visavam excluir os então denominados “psicopatas” e “alienados”, a fim de manter a ordem social, se fazia necessário uma lei mais atual que contemplasse essas pessoas de modo assistencial. O Art. 1º da Lei de Reforma Psiquiátrica ou Lei Antimanicomial (como ficou conhecida a Lei 10.216), afirma que os direitos e a proteção das pessoas com transtorno mental são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno (BRASIL, 2001).

A Lei em questão é responsável pela criação dos serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos, sendo eles os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), as Residências Terapêuticas (RT’s) e os leitos psiquiátricos nos hospitais gerais de atendimento público. A lei também reconhece, pela primeira vez, a pessoa com transtorno mental como cidadão de direito, regulamentado e com assistência de instituições responsáveis, como profissionais de saúde, do direito, bem como familiares, sociedade e Estado, uma vez que todos juntos formam a rede de assistência à pessoa com transtorno mental.

Os direitos são assegurados a todos; contudo, existe um grupo que mais sente os impactos da precarização da assistência à saúde mental no Brasil. São as mulheres e, em especial, as negras e de baixa renda, as que mais sofrem os abalos e ameaças de garantias de direitos, uma vez que são maioria em empregos precários e acumulam jornadas contínuas de trabalho, sendo pouco ou não-remuneradas. Se aprofundarmos esse recorte, devemos lembrar que mulheres transexuais também são constantemente silenciadas na assistência à saúde e na saúde mental na rede pública e privada, agravando ainda mais o quadro.

Embora avanços tenham sido alcançados na legislação e na assistência às pessoas com transtornos mentais – acionando os exemplos citados acima –, a lentidão dessas medidas de segurança tem tornado cada vez mais comprometido o processo de desinstitucionalização dessas pessoas, mantendo, assim, a superlotação dessas instituições. Esse processo de desinstitucionalização é respaldado por organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. É importante destacar que os compromissos assinados pelo Brasil em matéria de direitos humanos não permitem retrocessos como os representados pelas últimas ameaças.

Desse modo, é dever do Estado brasileiro garantir a efetivação das recomendações que dizem respeito à desinstitucionalização, como também é responsabilidade do governo federal apurar os motivos e os reais interesses por trás das Portarias e buscar sanar o problema identificado, promovendo uma mobilização nacional para que os recursos de desinstitucionalização sejam corretamente distribuídos. Um outro ponto fundamental na compreensão do funcionamento sistêmico de determinadas políticas públicas se refere ao processo comunicativo e aos modos de narrar sobre determinadas práticas – o que nos leva ao próximo tópico.

A construção de narrativas e a produção de sentidos

Nos aspectos comunicacionais, se faz necessário perceber não apenas as formações discursivas construídas pelos media, mas, principalmente, observar e discutir o processo comunicativo em sua afetação e construção de sentidos formados na sociedade. A comunicação, enquanto processo relacional, não se apresenta apenas como uma representação da realidade, mas como uma forma de organizar nossas ações em função de estratégias culturais em contexto (Motta, 2007). A partir do modelo relacional ou praxiológico da Comunicação, desenvolvido por França (2008), discutimos o papel dos processos comunicacionais na construção de sentidos acerca de uma realidade que, historicamente, invisibiliza e silencia a existência de pessoas com transtornos mentais e, em especial, de mulheres, negras, lésbicas, transexuais e/ou pobres com transtornos mentais, reverberando as suas sequelas até os dias atuais, incluindo nas políticas públicas de saúde – ou na ausência delas.

Observar os fenômenos pela perspectiva dos estudos comunicacionais exige do(a) analista uma reflexão sobre as práticas socioculturais de determinada comunidade e em determinado contexto. Para França (2018), as práticas comunicacionais são constitutivas das relações sociais, de modo que se apresentem imbricadas às dinâmicas de poder. Para a autora, os estudos que buscam analisar os fenômenos comunicacionais e suas interações devem refletir sobre os impactos e consequências das práticas comunicativas na dinâmica social, percebendo quais aspectos são acionados e quais esferas dialogam nesse processo.

França (2008), ao trabalhar sobre o modelo relacional da Comunicação, aborda essas interações considerando o contexto, evidenciando as relações entre as práticas e os produtos comunicacionais, apresentando normas, valores, ideologias e relações de poder na sociedade que são capazes de revelar narrativas sobre determinado processo. Isso permite observar certos fenômenos e práticas específicas sem desconsiderar o todo social, tendo em mente que o contexto evidencia essas disputas de força e que essa reflexividade – inerente às interações sociais – acontece de maneira relacional. Para a autora, “vivemos em um mundo ordenado por instituições, marcado por estruturas. Elas não são fixas nem eternas, e tanto se mantêm como são modificadas através da ação conjunta dos sujeitos sociais” (França, 2018: 112). Ou seja, sujeitos e fenômenos se modificam e se reconstroem mutuamente.

A partir das contribuições do sociólogo Louis Quéré, a autora apresenta dois planos comunicacionais: a mensagem e a metamensagem. Esses modelos representam justamente essa reflexividade entre sujeitos e fenômenos que se dão por meio de ações comunicativas – enquanto atividades de construção de um ambiente compartilhado – que definem sua própria configuração na sociedade. Porém, de quais fenômenos exatamente estamos falando? Essas interações são atravessadas por estruturas de raça, classe, sexualidade, gênero e entre outras formas de poder. São interseccionalidades que permeiam e são permeadas por assimetrias, expectativas, hierarquias, lugares sociais e entre outros fenômenos que, enquanto ações comunicativas, são capazes de configurar e reconfigurar sentidos às relações entre os sujeitos.

Ao fazermos um recorte brasileiro, não precisamos ir muito longe para identificar de que modos esses eixos permeavam e ainda permeiam a sociedade. As atribuições impostas e as identificações construídas subjetivamente pelos sujeitos e pelas sujeitas, bem como as suas significações atribuídas a elas, não determinam de maneira integral as ações comunicativas, mas se apresentam como parte significativa nesse processo de configuração.

Aplicando ao presente trabalho, o processo de construção de sentidos a respeito da loucura e das pessoas apontadas como loucas, como também as práticas comunicativas sobre a lógica manicomial, o sistema psiquiátrico e a internação compulsória, impactam diretamente na luta antimanicomial. Tal processo passa diretamente pela construção de sentidos sobre os padrões de normalidade, considerando que, se havia o “normal”, havia o “desviante” e este, não era bem-vindo. Ao mesmo tempo, nos revela como debates emergentes como os citados acima, podem ocupar um lugar de silenciamento e esquecimento, acentuando o avanço de um processo conservador que coloca em xeque a Reforma Psiquiátrica e outros avanços nas políticas públicas de saúde mental no país (Borges, 2015).

Posto isto, se faz necessário discutir sobre como as atribuições impostas aos sujeitos passavam e ainda passam por esse crivo que afirma quem é louco e quem é são, bem como quem merece estar à margem, fora da cena pública, ou não. A loucura se torna uma experiência social, onde as noções variam de tempo e espaço. Na Idade Média, quem assumia esse poder eram os padres, pessoas com boas condições financeiras que as colocavam em um patamar de autoridade; já entre os séculos XVI e XVIII, os poderes jurídico, médico e religioso assumem esse papel, enquadrando sujeitos em eixos. Além do estigma da loucura, as mulheres também passavam e ainda passam pelo crivo do Outro. Com o objetivo de se apoderar de um sistema patriarcal, o saber médico se utiliza da sua condição de saber-poder para reduzir a saúde mental das mulheres à sua condição biológica, atribuindo, assim, as funções reprodutivas e biológicas como as únicas dimensões relevantes, ignorando as relações sociais, os sistemas de poder e toda a subjetividade que permeia as mulheres e suas interseccionalidades.

A internação e a medicalização foram utilizadas como estratégias de contenção desses corpos, como também o foram os diagnósticos que eram a elas atribuídos, refletindo a realidade social que as acompanhava em diferentes momentos da história. Esse processo se dava e ainda se dá de maneira diferente para mulheres brancas, negras, casadas, solteiras, jovens, idosas, indígenas, lésbicas, transexuais, gordas e outras especificações que distinguem comportamentos e tratamentos no convívio social, quiçá em instituições manicomiais. Desse modo, é possível afirmar que a construção de narrativas sobre a figura do louco produziu sentidos sobre esses sujeitos, transformando experiências sociais em ações comunicativas.

Para além da lógica manicomial enquanto processo comunicativo sobre sujeitos e sujeitas em específico, é importante destacar as transformações da noção do estereótipo – o que nos leva ao nosso segundo ponto fundamental. O entendimento sobre estereótipo passa pela construção de sentidos e suas formas de narrar. Etimologicamente, estereótipo vem do grego stereos (sólido) e typos (impressão), ou seja, formam uma impressão sólida sobre algo ou alguém, como uma marca que lhe é atribuída e jamais esquecida. Nesse sentido, observa-se que este movimento de solidificar impressões – impressões essas que que se inscrevem na memória – “se aproxima do sistema educativo antigo cujas afetações implicam impressões sensoriais: memória e retórica que, juntas, conduzem à imaginação, à ação” (Borges, 2014: 103).

Para Maria Aparecida Baccega (1998), o estereótipo se manifesta em bases emocionais, trazendo em si juízos de valor pré-concebidos, comportando uma carga adicional do fator subjetivo, que se manifesta sob a forma de elementos emocionais, valorativos e volitivos, que vão influenciar o comportamento humano e construir sentidos coletivos sobre determinados sujeitos. Desse modo, é por meio da interação cultural, da construção de narrativas que valores e significados são formados, gerando sentidos, cristalizando perspectivas e ameaçando a existência de pessoas. É nesse cenário que o papel desempenhado pelos media não pode ser negligenciado. Afinal, ao evidenciar determinadas concepções, invisibilizando outras, tais narrativas constroem mundos, apontando que está na ordem e quem está na margem.

Marcos Legais: uma construção de narrativas

Como citamos anteriormente, alguns marcos históricos fizeram parte da extensa (e até aqui inacabada) Reforma Psiquiátrica no Brasil e no mundo, sendo responsáveis pela implementação de políticas públicas direcionadas à saúde mental, e vendo, no processo de desinstitucionalização, a possibilidade de um tratamento e/ou acompanhamento que desenvolvessem cuidados alternativos aos manicomiais.

Note de bas de page 8 :

Disponível em: https://laps.ensp.fiocruz.br/arquivos/documentos/21. Acesso em: 08 out 2022.

No cenário internacional, podemos destacar as propostas do psiquiatra italiano Franco Basaglia que, em 1978, iniciava uma extensa jornada de debates entre profissionais da saúde mental em prol da extinção dos manicômios em seu país, apresentando alternativas de serviços substitutivos que de fato promovessem uma qualidade de vida, dignidade e um possível tratamento às pessoas manicomializadas. Um marco fundamental para a Itália foi o dia 13 de maio do respectivo ano, em que foi instaurada a Lei 1808, também conhecida como Lei Basaglia, responsável por substituir de modo gradual os hospitais psiquiátricos por uma rede multiprofissional de assistência através de serviços comunitários.

No Brasil, em 1979, formava-se o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) composto por uma rede de profissionais, objetivando a inserção das pessoas até então manicomializadas no convívio social, como também criticando o modelo asilar, a mercantilização da loucura e a violência acometida dentro dos hospitais psiquiátricos – 10 anos depois, esse movimento se consolida na luta antimanicomial brasileira, pois o seu fortalecimento permitiu que essas transformações ocorressem de maneira prática e gradual.

Note de bas de page 9 :

Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_caracas.pdf. Acesso em: 09 out 2022.

As Conferências Nacionais de Saúde Mental (CNSM) também se mostraram amplos espaços de transformação na atenção às pessoas com transtornos mentais. Para além de mudanças estruturais no que se refere aos hospitais psiquiátricos, os efeitos das Conferências atravessam níveis éticos, sociais, políticos, culturais, históricos e técnicos, pois foi através dessas propostas que uma agenda começou a ser estabelecida a nível nacional, visando a implementação de políticas públicas direcionadas, criticando o hospitalocentrismo, revisando a legislação psiquiátrica e sua aplicabilidade, e reconfigurando o sistema de atenção à saúde mental. Um outro marco que podemos destacar refere-se aos países da América Latina que, através da Declaração de Caracas,9 em 1990, realizaram o compromisso de restaurar a assistência psiquiátrica através da vigilância e da defesa dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais, como também assegurando a implementação das leis através de atendimento descentralizado, integral e participativo (CARACAS, 1990).

Note de bas de page 10 :

Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt3588_22_12_2017.html. Acesso em: 08 out 2022.

As Conferências, Portarias Ministeriais, Leis e outros marcos históricos na assistência à saúde mental foram fundamentais para os avanços da Reforma Psiquiátrica, embora uma série de desafios e ameaças tenham surgido no processo de constituição e principalmente de implementação dessas propostas. A Portaria 596/22, de 22 de março de 2022, não foi a única ameaça à Reforma Psiquiátrica e às políticas públicas de saúde mental no Brasil. Podemos citar a Portaria nº 3.588, de 21 de dezembro de 201710, instituída no Governo do ex-presidente Michel Temer (2016-2018), que reintroduziu na Rede de Atenção Psicossocial o Hospital Dia, ou seja, uma estrutura manicomial até então já superada e que dispõe de intervenções médicas acima das práticas psicossociais. São exemplos como este que nos revelam as constantes ameaças às RAPS, ao SUS e às políticas de saúde.

É nesse processo de Institucionalização – Desinstitucionalização – Reinstitucionalização que visualizamos ameaças que não se reduzem a um enfraquecimento do sistema de saúde mental, mas as tentativas de enfraquecimento de uma rede complexa, que põe em xeque décadas de avanços, lutas, implementações e efetivações em prol de uma sociedade sem manicômios e com qualidade na assistência à saúde mental no país. Entretanto, além dos entraves políticos, das disputas de interesses hegemônicos no sistema de saúde brasileiro a mais de meio século, da lentidão na efetivação dessas proposições, foi e ainda é necessário superar os estigmas e o imaginário popular sobre a loucura, como também, os modos de narrar sobre a loucura.

Nesse processo de enfraquecimento, observa-se, por exemplo, o quanto a chamada “questão das drogas” contribui para uma retração da Reforma Psiquiátrica. É como parte desse movimento que compreendemos o debate sobre a Internação Compulsória e o Projeto de Lei 7663/2010. Com o objetivo de interferir e modificar a Lei º 11.343/2006 (também conhecida como a Nova Lei de Drogas), o Congresso Nacional, através do PL 7663/2010, estabelecia que a Lei da Reforma Psiquiátrica fosse alterada

Em seu Artigo 11, incluindo o Artigo 23-A na Lei 11.343/2006, alargando (e subvertendo) o espectro de uma internação que deveria estar circunscrita à Lei 10.216/2001, determinando que a internação de usuário ou dependente de drogas obedecerá ao seguinte:

I – será realizada por médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina (CRM) do Estado onde se localize o estabelecimento no qual se dará a internação e com base na avaliação da equipe técnica;

II – ocorrerá em uma das seguintes situações: a) internação voluntária: aquela que é consentida pela pessoa a ser internada; b) internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e c) internação compulsória: aquela determinada pela Justiça. (Borges, 2015: 52-53)

Num só movimento, um Projeto de Lei (7663/2010) visava produzir um dispositivo legal (a Internação Compulsória em hospitais ou Comunidades Terapêuticas) que atualizava simultaneamente tanto a Lei 10.216/2001 quanto a Lei 11.343/2006, com vistas ao alargamento daqueles que poderiam ser retirados do espaço público e apartados da cena política.

Pensando nisso, este trabalho se propõe a identificar o que esses marcos, do ponto de vista comunicacional, representam e de que modos as práticas comunicativas e as narrativas jornalísticas produzidas sobre a lógica manicomial, são capazes de construir sentidos sobre a loucura, abrindo espaço para um processo conservador. Na presente reflexão, analisamos três matérias jornalísticas do O Globo do ano de 2022 que abordaram questões de transtornos mentais e que tiveram grande repercussão no país. São eles: Caso Sandra Mara Fernandes/Givaldo de Souza – mulher com transtorno bipolar que foi flagrada pelo marido mantendo relações com homem em situação de rua em Planaltina (DF); Caso Genivaldo de Jesus Santos – homem com esquizofrenia que morreu asfixiado no porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal em Umbaúba (SE); e Caso Giovanni Quintella, anestesista que foi submetido a avaliação psiquiátrica forense após estuprar uma mulher grávida durante uma cesária, em São João de Meriti (RJ).

A escolha pelo jornal O Globo se dá por sua ampla circulação a nível nacional, seja através da publicação direta, seja através da reprodução por seus afiliados. Em seus princípios editoriais, afirma destacar-se na agilidade, correção e isenção da informação – esta última, reconhecida pelo veículo um fator subjetivo, visto “que seja impossível atingir um grau bastante elevado de isenção” (O Globo, 2022), com foco na apuração dos acontecimentos e na liberdade de expressão social e jornalística.

Note de bas de page 11 :

Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/laudo-identifica-transtorno-bipolar-em-fase-maniaca-psicotica-em-mulher-flagrada-com-sem-teto-25451957. Acesso em: 9 out 2022.

A primeira notícia analisada refere-se ao Caso Sandra Mara/Givaldo de Souza11, ocorrido em Planaltina (DF). No dia 9 de março de 2022, Sandra Fernandes foi flagrada pelo marido mantendo relações sexuais dentro do próprio carro, com Givaldo de Souza, um homem em situação de rua. O caso, registrado pelas câmeras de segurança da via, mostraram o esposo de Sandra, Eduardo Alves, agredindo o homem. A notícia que analisamos neste trabalho não é a primeira matéria que informa sobre o fato, mas a primeira que associa o ocorrido ao transtorno mental de Sandra Fernandes.

Figura 1 - Caso Sandra Mara/Gilvaldo de Souza - Manchete da notícia

Figura 1 - Caso Sandra Mara/Gilvaldo de Souza - Manchete da notícia

Fonte: O Globo (2022)

No título da matéria é possível perceber que um suposto transtorno mental da vítima é o que caracteriza a notícia. Na linha fina, o trecho “Diagnóstico reforça versão de marido de que a esposa estava em surto” revela o lugar de protagonismo e visibilidade para o homem que foi traído e que pode afirmar que a mulher estava ou não em suas faculdades mentais. O texto segue apontando para o laudo psicológico realizado na vítima, e cita que ela apresenta “sinais de transtorno afetivo bipolar em fase maníaca psicótica”. No dia da notícia, Sandra Mara já estava internada em um hospital psiquiátrico a cerca de 20 dias, sem previsão de alta, o que nos reforça a necessidade de isolamento e contenção dos sujeitos e principalmente das sujeitas em um cenário de exposição da vítima.

Figura 2 - Caso Sandra Mara/Gilvaldo de Souza - Uma sub-voz

Figura 2 - Caso Sandra Mara/Gilvaldo de Souza - Uma sub-voz

Fonte: O Globo (2022)

A advogada de Sandra Fernandes, Auricelia Vieira, pontuava que era cedo para afirmar se Givaldo de Souza teria se aproveitado da fragilidade da vítima para manter relações sexuais com ela, destacando, também, que ainda que a vítima “pode ser representada pelo marido perante a Justiça”. Contudo, no final do parágrafo, a profissional advertia que o marido, que vive com ela há cerca de três anos, desconhecia e sequer percebia algum tipo de sinal transtorno mental. Questões como essa nos revelam como as políticas de saúde mental ainda têm muito o que considerar ao tratar-se da autonomia e das pessoas consideradas incapazes de responder por si, avaliando quem de fato tem condições de assumir essas responsabilidades sobre a vida de outra pessoa. Ao mesmo tempo, nos mostra como o acesso à informação sobre saúde mental ainda é considerado um tabu, repleto de estigmas e, por vezes, desconsiderado ou distante da sociedade: “Naquele dia, até então, tinha cumprido todas as suas funções normais como dona de casa e mãe. Levou a filha na escola, foi ao dentista, trabalhou em sua loja de roupas – conta Auricelia” (O Globo, 2022, grifos nossos).

Percebe-se que as consideradas “funções normais”, associadas à vítima, não se referem a lucidez, a consciência ou qualquer característica de cognição, mas as atribuições e papeis sociais atribuídos cultural e estruturalmente às mulheres. Para além da exposição da vida pessoal, Sandra Mara ainda sofreu ataques machistas e sexistas nas redes sociais ao ter suas fotos associadas a perfis fakes, o que desencadeou uma onda de visibilidade ao homem em situação de rua, que foi convidado dezenas de vezes a participar de entrevistas na mídia e contar em detalhes como foi a relação sexual com a vítima.

Note de bas de page 12 :

Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2022/05/camara-de-gas-agressao-asfixia-e-transtorno-mental-tudo-o-que-se-sabe-sobre-a-morte-de-homem-em-porta-malas-de-viatura-da-prf-em-sergipe.ghtml. Acesso em: 10 out 2022.

Passemos à segunda notícia analisada: o Caso Genivaldo de Jesus Santos12, um homem com esquizofrenia, que morreu asfixiado no porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal, na cidade de Umbaúba (SE). O título da notícia dá destaque para o contexto da morte de Genivaldo Santos, ressaltando o transtorno mental como um fator decisivo para o ocorrido.

Figura 3 - Caso Genivaldo de Jesus Santos - Manchete da notícia

Figura 3 - Caso Genivaldo de Jesus Santos - Manchete da notícia

Fonte: O Globo (2022)

A matéria segue trazendo imagens que foram compartilhadas nas redes sociais e que mostram Genivaldo de Jesus sendo agredido e algemado por dois agentes policiais e, em seguida, posto no porta-malas da viatura, onde foi inserido gás de pimenta em seu interior. O sobrinho da vítima, Wallyson de Jesus, e a esposa, Maria Fabiana, contam que informaram aos agentes que a vítima tinha transtorno mental, mas que não foi considerado um fator relevante no momento da parada policial.

Figura 4 - Caso Genivaldo de Jesus Santos – uma sub-voz

Figura 4 - Caso Genivaldo de Jesus Santos – uma sub-voz

Fonte: O Globo (2022)

Junto consigo, Genivaldo de Jesus tinha receita médica e cartelas de medicação que foram expostas aos agentes em uma tentativa de diálogo; porém, também não foi considerado por eles. É possível identificar um esforço do jornal em relatar o fato detalhado, visto que se trata de uma abordagem policial que resultou na morte de um cidadão comum, que não era suspeito de nenhum ato, crime ou infração e que atendeu a todos os comandos que os agentes deram.

Em entrevista ao Portal Fan F1 nesta manhã, Maria Fabiana conta que o marido era uma pessoa conhecida e, por isso, muitas testemunhas se dirigiam aos policiais dizendo “Não façam isso, ele tem problemas mentais”. Mas de nada adiantou. (O GLOBO, 2022).

O quadro de transtorno mental da vítima segue sendo uma característica abordada durante toda a notícia, por vezes, como uma forma imediata de cessar as violências cometidas pelos agentes e, por vezes, no esforço de justificar o nervosismo de Genivaldo no momento da abordagem. É necessário destacar que Genivaldo de Jesus Santos era um homem negro, vítima diária do racismo e do sistema policial que ainda massacra, tortura e mata a população negra do brasil diariamente. Genivaldo Santos chegou a ser retirado do porta-malas; porém, foi a óbito antes de chegar ao hospital. Em que medida ser visto como um desviante “autorizava” uma prática policial violenta que imobiliza, tortura, exclui e mata uma parte da população?

Note de bas de page 13 :

Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2022/07/anestesista-preso-por-estupro-sera-avaliado-por-psiquiatra-forense-caso-defesa-alegue-problemas-mentais.ghtml. Acesso em: 9 out 2022.

Note de bas de page 14 :

Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10637167/artigo-26-do-decreto-lei-n-2848-de-07-de-dezembro-de-1940. Acesso em: 14 out 2022.

A terceira notícia analisada refere-se ao Caso Giovanni Quintella13, anestesista que foi submetido a avaliação psiquiátrica forense após estuprar uma mulher grávida durante uma cesária, em São João de Meriti (RJ). O título da notícia chama atenção para uma abordagem preventiva por parte da defesa do anestesista, visto que o crime, quando cometido por uma pessoa com transtornos mentais, pode ser considerado inimputável, de acordo com o artigo de nº 26 do Código Penal Brasileiro (BRASIL, 1940)14.

Figura 5 – Caso Giovanni Quintella - Manchete da notícia

Figura 5 – Caso Giovanni Quintella - Manchete da notícia

Fonte: O Globo (2022)

A notícia segue com a fala de Marcos Argolo, psiquiatra e técnico pericial, destacando sobre o que a defesa do anestesista pode alegar após a repercussão do caso. Durante toda a matéria jornalística, é possível perceber um tensionamento que reforça a ideia de que somente uma pessoa com transtornos mentais seria capaz de cometer um crime tão violento como este – embora nos casos anteriores tenha merecido outro tipo de tratamento. Diversos diagnósticos são acionados como uma tentativa de compreender ou mesmo justificar o estupro cometido, mesmo que a defesa de Giovanni Quintella não tenha se manifestado nesse sentido.

Figura 6 – Caso Giovanni Quintella - O uso do diagnóstico

Figura 6 – Caso Giovanni Quintella - O uso do diagnóstico

Fonte: O Globo (2022)

É importante destacar que a construção de narrativas jornalísticas que dão visibilidade e justificam certos atos e até mesmo crimes por conta de transtornos mentais, reforçam um processo mnemônico onde atualiza-se uma forma de pensamento onde a máxima “se o fez, é porque é louco” manifesta-se com toda força, especialmente quando existe uma soma de fatores psicossociais, culturais, históricos, econômicos, genéticos, que influenciam direta ou indiretamente no comportamento humano. Como citamos anteriormente, as práticas comunicativas e os modos de se narrar são capazes de gerar impactos e consequências no entendimento social sobre a loucura, o desvio, o fora da norma. Nossa intenção nessa análise não é questionar os diagnósticos, mas perceber como os modos de narrar, presentes nos exemplos acima, são capazes de acionar elementos de uma lógica manicomial, especialmente em um contexto conservador e de ameaças às políticas públicas de saúde.

Genivaldo de Jesus Santos era um homem negro. Sandra Mara Fernandes é uma mulher. Historicamente, essas pessoas estão “fora da norma”, num movimento que é secular, e não são escutadas. Ou melhor, se chegam a serem ouvidas, são ignoradas. O recorte de transtornos mentais evidencia uma aniquilação que acontece a séculos no mundo e especialmente no Brasil – um país majoritariamente racista, machista e elitista. Ambos tiveram seus corpos contidos, presos, no esforço de suas existências serem ainda mais silenciadas. Já para Giovanni Quintella, um médico, homem branco, o transtorno mental se torna uma alternativa para que seus atos não sejam considerados. Se tomarmos por referência os casos em tela, nos vemos diante de um cenário em que, um mesmo adjetivo (louco), pode significar a culpa ou a desculpa, a insanidade ou a sanidade, o excesso ou a contenção, o desvio ou a norma, a patologização ou a despatologização (Borges; Franklin, 2022).

Casos como esses nos revelam a lentidão para efetivação e obliteração de políticas públicas direcionadas à saúde mental no Brasil e os abalos gravíssimos que a Rede de Atenção Psicossocial vem sofrendo nos últimos anos, em um cenário de conservadorismo.

Considerações Finais

O manicômio e a representação social construída sobre a loucura potencializam as múltiplas violências expressas pelas opressões culturais. As narrativas construídas social e historicamente, reforçam, até os dias atuais, uma dicotomia bastante presente nos estudos sobre a loucura: o sujeito louco que se torna notícia quando, ou comete violência ou sofre violência, que pode ser uma ou mais, se considerarmos as interseccionalidades de raça, classe e gênero. Esse é um processo histórico que ainda deixa suas marcas. Em um cenário de abalos gravíssimos e de retrocessos nas políticas de saúde mental, que reduzem uma política social a uma dimensão de mercado, a retomada de um modelo hospitalocêntrico põe em xeque a garantia de políticas públicas e são especialmente as mulheres, as mulheres negras, as mulheres pobres as que mais sofrem os abalos objetivos e subjetivos dessa conjuntura.

Em uma sociedade onde o machismo, racismo e elitismo ainda se fazem presentes, a lógica manicomial se torna uma estratégia para manter o controle sobre os corpos desses sujeitos e sujeitas, destinando esse poder ao Estado, aos aparelhos repressivos, à medicina e aos homens. Ameaças como estas colocam em xeque, não apenas a Reforma Psiquiátrica Brasileira, mas, em especial, as lutas que reivindicam a décadas por melhores condições de trabalho, visibilidade e qualidade de vida.

Decisões tão complexas como as materializadas na Portaria 596/22, tendo sido definida sem consulta popular, nos mostra uma desconexão por parte do governo federal com os princípios do SUS e da política nacional de saúde mental, demonstrando convergência com os interesses corporativos de proprietários de hospitais, grandes empresas, grupos religiosos (através da criação e ampliação das Comunidades Terapêuticas) em detrimento das garantias legais aos direitos das pessoas com transtornos mentais e dos usuários de álcool e outras drogas, corroborando com o desmonte da política nacional de saúde mental e de décadas de avanço da reforma psiquiátrica.

Dito isto, abrimos outras discussões que se sucedem a partir desse debate. Podemos afirmar que a lógica manicomial é estrutural. A necessidade de internação e isolamento de pessoas consideradas desviantes, que ganham “novo colorido” com a atualização e alargamento do dispositivo da Internação Compulsória, permeia a história do mundo a séculos, como citamos anteriormente. Porém, não podemos deixar de registrar que, para determinados grupos sociais, a força com que esse banimento da cena pública se efetiva, produzindo alguns recortes que são agravados dependendo de a quem se dirige. Enquanto as políticas públicas de saúde mental direcionadas aos homens são configuradas como ineficientes, para as mulheres, elas se tornam inexistentes.

Assim, também afirmamos que a lógica manicomial também (re)atualiza os estereótipos de gênero em um cenário de retrocesso das políticas de saúde mental do Sistema Único de Saúde, destacando o quanto a violência de gênero, observada como um fator de risco para a saúde mental, também torna-se capaz de gerar quadros de depressão, ansiedade, fobias, traumas, suicídio, problemas alimentares, entre outros. Não menos significativo desse processo é o fenômeno da ampliação da medicalização compulsória de mulheres, como mais uma tentativa de controle, através da medicalização dos sentimentos, sem citar as jornadas contínuas de trabalho, no ambiente profissional e do lar, que impedem um acompanhamento psicossocial mais completo e uma concepção mais equânime de sociedade.

Otras versiones
Para citar este documento

Fortes Monte Franklin, C. y Couto Borges, W. (2022). Narrativas manicomiais: a produção de sentidos e as práticas comunicativas sobre a loucura no Brasil. Trayectorias Humanas Trascontinentales, (9). https://doi.org/10.25965/trahs.5014

Autores
Camila Fortes Monte Franklin
Jornalista. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS/ICICT) na Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Pesquisadora em saúde mental, memória e gênero. Membro NUJOC (UFPI) e NECHS (FIOCRUZ). Mestra em Comunicação. Bolsista CAPES/CNPq. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4342832226266349
Fundação Oswaldo Cruz
Rio de Janeiro, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-7316-1134
camilafortesmonte@gmail.com
Wilson Couto Borges
Pesquisador em Saúde Pública / Laboratório de Comunicação e Saúde (Laces/ICICT/Fiocruz). Doutor em Comunicação, Mestre em Ciência Política e Especialista em História do Brasil, todos pela Universidade Federal Fluminense. É pesquisador associado ao Grupo de Pesquisa Laboratório Cidade e Poder (LCP/UFF) e vice-líder do Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos em Comunicação, História e Saúde (Nechs/Fiocruz). Atualmente, além de docente da Especialização em Comunicação e Saúde, também é pesquisador associado ao Observatório Saúde na Mídia. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9564907740432251
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