Corona virus en Catalunya: los días de confinamiento en el frente de Aragón 36 Corona virus in Catalonia: the days of confinement on the Aragon 36 front
Este é o relato de nossa experiência in loco na pandemia de coronavírus (COVID-19) em Barcelona/Catalunha, entre 28 de fevereiro e 19 de março de 2020, quando os dois primeiros casos foram confirmados na Catalunha (um em Girona e outro em Sant Cugat del Vallès) até chegar a 11.592 doentes e 672 mortos quando deixamos a cidade rumo a São Paulo. Descobrimos que este seria o último voo da empresa até o fim da crise sanitária. Inicialmente, o governo espanhol instituiu o estado de atenção e posteriormente, em 14 de março, instituiu o estado de alarme, que estabelecia que as pessoas deveriam permanecer em suas casas e poderiam circular nas vias públicas, sempre individualmente, exceto no caso de acompanharem pessoas com deficiência, menores, idosos ou por outros motivos justificados. Mas, na vida cotidiana, o confinamento já havia começado dois dias antes, assim estávamos confinados com nossa amiga, uma senhora de 82 anos, em um apartamento da Calle Aragón. Este trabalho narra na primeira pessoa, estes dias de tensão, preocupação e incerteza e até medo do que poderia acontecer. Por se tratar do apartamento de uma senhora idosa, a TV ficava ligada o tempo todo, o que possibilita uma análise de como a mídia lidou com a questão da pandemia, sabendo que as pessoas estavam confinadas. Outra dificuldade foi voltar ao Brasil deixando para trás uma senhora idosa, sozinha
This is a description of an in loco experience of the coronavirus pandemic (COVID-19) in Barcelona/Catalonia between 28 February and 19 March 2020. At that time, the first two cases were confirmed in Catalonia (one in Girona and the other in Sant Cugat del Vallès) and there were 11592 people ill and 672 deaths when we left the city for São Paulo and, on this flight, we discovered that it was the company's last until the end of the health crisis. Initially, Spain as a whole enters a state of care and then, on March 14, the state of alarm that establishes that people had to stay in their homes and could circulate on public roads, always individually, unless accompanied by disabled people, minors, elderly, or for another justified cause. However, in everyday life, confinement had already been in place for two days. We were confined with our friend, an 82-year-old lady in a flat in Aragon Street. This article narrates in first person these days of tension, worry and uncertainty and even fear of what could happen. Since it was an old woman's apartment, the TV was always on, so it was possible to analyze how the media would treat the subject of the pandemic knowing that people were confined. Another difficulty was to return to Brazil, leaving behind an old woman alone and confined at her apartment.
Introdução – Feito um diário para o Caos
Em janeiro de 2020, notícias provenientes da China indicavam a existência de um vírus. Mas, tal como em outros momentos em que pandemias eram anunciadas, a impressão geral era de que ficaria restrito a própria China. Não nos atingiria tão longe, no Brasil. Com essa perspectiva, planos futuros de viagens, encontros com amigos, diversão e outras atividades ao ar livre foram mantidas no verão que se anunciava forte nos trópicos e nas férias escolares iniciadas dias antes das festas de fim de ano.
Com uma viagem marcada para Barcelona no final de fevereiro, os preparativos continuaram na normalidade a qual acreditávamos existir nesses dias. Dia do embarque, viajar para a cidade de São Paulo, distante 84 km de Sorocaba, onde estávamos eu e minha mulher, chegar no Aeroporto Internacional de Guarulhos, embarcar. Algumas pessoas portavam máscaras descartáveis, a maioria não. Inclusive não havia um consenso com relação às máscaras: deveríamos usa-las ou não? Ninguém no avião de ida à Barcelona utilizou.
No desembarque em Barcelona na manhã do último dia de fevereiro de 2020, um funcionário do aeroporto, que era uruguaio, ele fez questão de informar, nos diz que, se tivesse dinheiro, teria comprado um estoque de máscaras de hospital para vender, pois as pessoas já estavam neuróticas com o vírus novo, na versão do uruguaio.
Os primeiros dias de Barcelona em março, foram em uma cidade já conhecida por nós, com sua movimentação de pessoas que, nesses dias, são menos turistas e mais locais, o que traz uma sensação de cotidianidade imediata. Voltávamos, depois de um ano, para a Calle Aragón 36, na L'Antiga Esquerra de l'Eixample como é a denominação catalã para esse bairro. Eu gosto de pensar, que aquele apartamento dos anos 1930 é o ‘Front de Aragón’, uma denominação que muitos conheceram pelas imagens de Gerda Taro referentes à Guerra Civil Espanhola (1936-1939).
Figura 1- Foto de Gerda Taro (1911-1937).
Disponível em: https://iphotochannel.com.br/gerda-taro-a-mulher-por-tras-de-robert-capa/
Todavia, em nosso Front de Aragón, a luta a ser travada seria distinta da guerra civil, mas também seria pela vida. Assim como em momentos de grandes acontecimentos mundiais, as informações não eram claras e muitas vezes eram desencontradas. As notícias que vinham da China aliadas ao desconhecimento da ‘nova doença’ e às informações na mídia, principalmente televisiva da Espanha, mais confundiam do que informavam de como agir dali em diante.
O Front de Aragón é um apartamento com três quartos, dois banheiros, uma cozinha e uma sala que serve também de copa, duas varandas, uma na frente para a rua e outra nos fundos, algo em torno de 100 m2. O elevador do prédio, assim como a fachada são originais e restaurados de tempo em tempo. A vizinhança, dos quatro andares com dois apartamentos por andar, é composta de idosos. Há apenas uma criança no quarto andar que sai para a escola às 7,30 horas e retorna por volta das 17 horas. A partir das 6,30 horas já é possível ouvir os movimentos do pequeno pelos cômodos, no seu ritual diário de preparação para sair.
Dona Clara, a vizinha do apartamento de frente pouco sai para a rua. Às quartas feiras uma cuidadora da Prefeitura de Barcelona vem para que elas façam as compras. Sua rotina é de acordar depois das 10 horas da manhã e assistir televisão pela madrugada adentro. Aliás, a programação fílmica da TV espanhola, para quem não tem os canais pagos, começa sempre perto da meia noite, é o caso dela.
O Sr. Jordi era o morador mais velho da escalera (escalera é o conjunto dos vizinhos do prédio, escada em português), mudou-se para a Calle Aragón quando menino e nos contava que jogava futebol na rua, naqueles dias havia apenas esse edifício construído e podia-se ver o Paseo de Gracia que está a 2 Km de distância. Em 2018 o Sr. Jordi faleceu e seu filho, que também é Jordi, veio morar no apartamento, assim como o pai, ele é podólogo (calista, como as senhoras da escalera o chamam) e, além de atender todas as vizinhas, recebe algumas pessoas de fora.
No andar de baixo, está a Sra. Lupe, contadora do estacionamento na outra calçada da rua e do bar da Chinesa que é vizinho. O trabalho dela exige visitas e contatos diários com os clientes das imediações. Suas filhas vêm sempre a visitar nos fins de semana.
A Senhora Fernandes, dona do Front de Aragón, é uma cuidadora aposentada, todas as manhãs “precisa” comprar algo no Mercado de Sant Antonio, apenas 1,5 km de distância, no qual vai com o ônibus que passa na rua transversal. Às segundas e quartas feiras vai para Hospitalet de Llobregat (cidade conurbada com Barcelona) para fazer ioga no Centro Cívico do bairro Santa Eulália. Pelas manhãs faz Tai Chi Chuan na Praça Joan Miró, em uma atividade oferecida pela Prefeitura de Barcelona. Na hora do almoço assiste programas de receita na televisão e, no período da tarde, gosta de descansar assistindo, preferencialmente, os canais em catalão, algum seriado da TVE, um cochilo e após isso uma volta pelo bairro e, 20,30 horas ou mais tardar 21,00 horas, recolhe-se para dormir ouvindo as notícias do dia na rádio usando seu fone de ouvido, a rádio em galego.
Narrado dessa forma, até bucólica, pode parecer que o cotidiano no Front de Aragón seja pacato, alienado, repetitivo, sendo um dia como todos os outros dias. Contudo, como reforça Lefebvre (1991: 8) “a história de um dia engloba a do mundo e a da sociedade” e, no Front de Aragón, não é diferente, apenas que temos a impressão de ser pacato aqueles lugares nos quais não conhecemos as dinâmicas que o regem.
- Note de bas de page 1 :
-
No original: la Conselleria de Salud de la Generalitat ha confirmado la mañana de este sábado dos nuevos casos de coronavirus, por lo que ascienden a seis las personas afectadas en Catalunya. La Generalitat confirma dos nuevos casos de coronavirus en Catalunya.Tradução nossa. (https://www.lavanguardia.com/vida/20200229/473834417385/dos-casos-coronavirus-cataluna-seis-contagios.html)
Retomando o fio narrativo, no dia em que chegamos, uma notícia do jornal La Vanguardia não chegou a chamar tanto a atenção: a Secretaria de Saúde da Generalitat confirmou na manhã deste sábado dois novos dados de coronavírus, agora são seis as pessoas afetadas na Catalunha1. O jornal computava para esse dia que eram 46 casos, sendo a Comunitat Valenciana são dez, oito em Madrid, seis nas Ilhas Canárias e na Catalunha - com as duas neste sábado-, três no País Vasco, duas em Castilla-León e nas Ilhas Baleares, e o último caso em Aragón. Entretanto, no dia 3 de março, o mapa do contagio na Espanha já aparecia com as atualizações indicando que a situação e mais grave do que parecia ao cidadão comum. Praticamente toda a Espanha já contava com pelo menos um caso, como mostra o mapa abaixo:
Figura 2- Mapa do contagio em Espanha 3/3/2020.
Para o mesmo período, o ministério da saúde da Italia informava a gravidade que atingia o país:
- Note de bas de page 2 :
-
No original: Nell’ambito del monitoraggio sanitario relativo alla diffusione del Coronavirus sul territorio nazionale, al momento 2263 sono le persone che risultano positive al virus. I pazienti ricoverati con sintomi sono 1034, 229 sono in terapia intensiva, mentre 1000 si trovano in isolamento domiciliare. Tradução nossa. Ministerio della Satutti (2020). Covid-19: i casi in Italia alle ore 18 del 3 marzo. https://www.salute.gov.it/portale/news/p3_2_1_1_1.jsp?lingua=italiano&menu=notizie&p=dalministero&id=4148 Consultado em 20 de março de 2020.
No âmbito da vigilância sanitária relativa à propagação do Coronavírus em todo o país, neste momento são 2.263 pessoas com teste positivo para o vírus. Existem 1.034 pacientes hospitalizados com sintomas, 229 estão em terapia intensiva, enquanto 1000 estão em isolamento domiciliar2 (Ministerio dela Salute, 2021).
Nesse interim, os idosos e demais moradores do prédio não pareciam preocupados, pois era uma doença “de quem tinha viajado”. As informações preliminares vindas do Ministério da Saúde, baseadas na experiência da Gripe Espanhola, indicavam que era indicado o uso de máscaras; lavar bem as mãos, principalmente com álcool e evitar aglomerações. Isso gerou a escassez, já não havia mais máscaras para comprar nas farmácias, faltavam álcool e papel higiênico, tanto nos supermercados quanto nas farmácias. O papel higiênico motivado pelo boato de que o principal sintoma seria a diarreia, resultado da virose. Então, ninguém se atentava para o fato mais grave das complicações pulmonares.
No pequeno elevador dos anos 1930, piadas e brincadeiras entre os vizinhos por causa da falta de papel higiênico e álcool tentavam manter o cotidiano na escalera. E ainda com Lefebvre, a força e movimento do cotidiano com suas repetições de gestos e espaços podem também ser a capacidade de transformar o social, que pode ser uma revolução, uma rebelião ou uma crise que faz com que a criatividade do cotidiano possa emergir. E estávamos frente à uma crise tríplice: sanitária, social e econômica que transformaria, nos meses seguintes, o mundo. Mas nesses primeiros dias de março de 2020 ainda não dávamos a devida dimensão dos fatos.
O cenário começa a mudar quando, em uma reunião de trabalho na Universitat de Barcelona, na qual fazíamos um cronograma para dezembro 2020 e janeiro/fevereiro 2021 com aulas e trabalhos técnicos de campo com os alunos, um professor ligado
à reitoria informa da “possibilidade” do anúncio, por parte do reitor, do fechamento da universidade por prazo indefinido. Um breve silencio na reunião seguido do ceticismo geral dessa “possibilidade”. Poucos dias depois, a “possibilidade” era a realidade.
O decreto do Estado de Alarme, o qual fecharia tudo e restringiria os deslocamentos passa a ser o tema central da escalera, assim como o da escassez alimentar. O clima vivido na guerra civil e nos anos seguintes em Barcelona é relembrado e paira sobre a cidade. Alarme na escalera: Lupe está com covid19.
A reclusão no Front de Aragón
O decreto do Estado de Alarme realmente aconteceu. No dia 13 de março de 2020, o jornal anunciava: “O Governo espanhol decidiu declarar estado de alarme durante 15 dias para conter a expansão da pandemia do coronavírus. O Conselho de Ministros se reunirá neste sábado para decretá-lo” (El País, 2020). Um almoço com nosso amigo Dr. Carles Carreras na quinta-feira foi cancelado. Na noite de quinta-feira, deixamos de participar do lançamento de um Comics na Librería Universal na Ronda de Sant Antoni, 9 pois a ordem era evitar aglomeração. Na sexta feira havia um desentendimento geral do que deveria e poderia abrir nas cidades. Mal sabíamos que os 15 dias do decreto durariam por tanto tempo...
Apesar do decreto valer a partir da segunda feira, desde a sexta-feira, certamente por medo e desinformação do que podíamos ou não fazer, começamos a reclusão no apartamento. Estar como estrangeiro em um lugar, mesmo sendo possível criar um cotidiano, traz inseguranças acerca dos seus direitos. Assim como em outras ocasiões, piadas e brincadeiras eram parte da incompreensão do momento, pois essa é uma maneira de dar sentido aquele espaço de atuação. Voltando com Lefebvre, o qual nos ensina que os componentes da vida cotidiana são: o espaço, o tempo as pluralidades de sentido, o simbólico e as práticas (1991: 8-9), penso que passamos a experenciar isso em profundidade no Front de Aragón.
Figura 3 - Imagem desde o Front de Aragón, Barcelona março 2020.
fonte : autor
Figura 4 - Imagem desde o Front de Aragón, Barcelona março 2020.
fonte : autor
- Note de bas de page 3 :
-
No original: En lo cotidiano, esto resulta en la interacción permanente de estos ritmos con los procesos repetitivos relacionados al tiempo homogéneo. Lefebvre, H. (2004). Tradução nossa. Ritmo‐análisis Espacio, tiempo y vida cotidiana. Trad. Stuart Elden y Gerald Moore. Con una introducción de Stuart Elden. New York, Continuum.
O tempo para o cotidiano é imprescindível, uma vez que é vivido socialmente em confluência com os tempos da natureza, e essa relaçao Lefebvre vai conceituar como ritmo-analise, “no cotidiano, isto resulta na interação permanente destes ritmos [sociais] com os processos repetitivos relacionados ao tempo homogêneo [da natureza]3 (lefebvre, 2004: 47).
Estaríamos imersos, durante os próximos dias, em uma nova rotina, a qual o tempo da natureza queria se impor ao tempo social fabricado pelos relógios que comandam os atos e os descansos e nossa racionalidade ocidental e capitalista. A necessidade de conhecer e querer controlar tudo daria passo à uma vida des-medida, ou seja, o vírus trouxe o descontrole do cotidiano regrado pelo tempo social. Não podíamos sair de casa para trabalhar, não havia mais esse horário fixo, e o trabalho passa para online. A única criança da escalera já não caminha pelo apartamento tão cedo pelas manhãs e sua voz pode ser escutada em horários, antes alternativos e agora comuns. A escalera com todos os seus vizinhos fica silenciosa.
Alarme na escalera: Lupe está com covid19 e complicando sua saúde.
- Note de bas de page 4 :
-
La monotonía repetitiva de lo cotidiano, ritmada por los medios de comunicación (mediatizados) no tiene por qué provocar el olvido de lo excepcional. Tradução nossa.
Lefebvre, H. (2004). Ritmo‐análisis Espacio, tiempo y vida cotidiana. Trad. Stuart Elden y Gerald Moore. Con una introducción de Stuart Elden. New York, Continuum.
A partir daquela sexta-feira 13, nosso cotidiano passa a ser - ainda mais - mediatizado e cada vez mais feito uma presa dos veículos de mídia, fato exacerbado pela pandemia mundial, trazendo uma, “A monotonia repetitiva do cotidiano, rítmica pelos meios de comunicação (mediatizada), não deve causar o esquecimento do excepcional”4 (Lefebvre, 2004: 35).
E o excepcional é que Lupe está com covid19. Seu apartamento está fechado e ela em quarentena, o medo é geral os vizinhos evitam o andar em que ela mora, suas filhas trazem a comida e a filha que teve contato direto com a mãe, também está em monitoramento pelo médico da família (medico de cabecera, como é usado ali) sem sair de casa porque não tem nenhum sintoma.
Em nosso apartamento, a televisão fica ligada durante todo o dia, das 9 às 20 - 21 horas para saber as novidades da Espanha e de outros lugares. Praticamente toda a programação é para o tema da pandemia com dados atualizados, informações do que fazer e do que não fazer, desencontros das normas, tentativas de burlar as restrições. Na televisão espanhola, toda atividade ligada à covid gera notícia, pois mais estranhamento que possa causar nos telespectadores. Ficava a impressão geral que logo a covid não seria mais notícia.
Um artigo de Francesca Morelli, psicóloga italiana, me chega no smartphone pelas redes sociais, vindo de Itália no dia 13 de março. E nele, palavras que refletiam alguns pensamentos dos três componentes do Front de Aragón:
- Note de bas de page 5 :
-
Original disponível em: Morelli, F. (2020). Francesca Morelli: ecco cosa ci sta spiegando il virus. Tradução nossa. http://www.vita.it/it/article/2020/03/10/francesca-morelli-ecco-cosa-ci-sta-spiegando-il-virus/154346 Consultado em 13 de março de 2020.
Eu acredito que o cosmos tem sua própria maneira de reequilibrar as coisas e suas leis quando elas são violadas.
O momento que vivemos, cheio de anomalias e paradoxos, dá o que pensar ...
Em um estágio em que as mudanças climáticas causadas por desastres ambientais atingiram níveis preocupantes, a China primeiro e depois outros países são forçados a se isolar; a economia entra em colapso, mas a poluição cai consideravelmente. O ar melhora; você usa a máscara, mas você respira ...
Num momento histórico em que certas ideologias e políticas discriminatórias, com fortes pretensões a um passado mesquinho, que vão sendo reativadas em todo o mundo, chega então um vírus que nos faz sentir que, em um segundo, podemos nos tornar os discriminados, os segregados, os detidos nas fronteiras, os portadores da doença. Embora não tenhamos culpa. Embora sejamos brancos, ocidentais e viajemos em classe executiva.
Numa sociedade fundada na produtividade e no consumo, em que todos corremos 14 horas por dia atrasados não se sabe para que, sem sábados ou domingos, sem feriados no calendário, de repente chega o intervalo. Desempregado, em casa, dias e dias. Fazendo contas com um tempo do qual perdemos o seu valor se não for medido em compensação, em dinheiro. E então sabemos o que fazer com isso?
Numa fase em que o crescimento dos próprios filhos é, por força dos fatos, frequentemente delegado a outras pessoas ou instituições, o vírus fecha escolas e os obriga a procurar soluções alternativas, para reunir mães e pais com os próprios filhos. Somos forçados a reconstruir uma família.
Numa dimensão em que as relações, as comunicações, a sociabilidade se jogam predominantemente no “não-espaço” do virtual, do networking, produzindo a ilusão de proximidade, o vírus tira a verdade da proximidade, o real: ninguém toca, nem um só beijo, sem abraços, à distância, na frieza do não contato. Quanto consideramos esses gestos e seu significado como garantidos?
Numa fase social em que pensar na própria horta é a regra, o vírus nos manda uma mensagem clara: a única saída é a reciprocidade, o sentimento de pertencimento, a comunidade, a sensação de fazer parte de algo maior que precisa ser feito, cuidar e quem pode cuidar de nós. Responsabilidade compartilhada, a sensação de fazer parte de algo maior para cuidar e que pode cuidar de nós.
Se pararmos a caça às bruxas, nos perguntando de quem é a culpa ou por que tudo isso aconteceu, e imaginando o que podemos aprender, acho que temos muito o que refletir e lidar. Porque estamos em dívida com o cosmos e suas leis. O vírus está nos explicando a um preço alto”5.
- Note de bas de page 6 :
-
BBC NEWS. 2 momentos em que Bolsonaro chamou covid-19 de 'gripezinha', o que agora nega. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55107536 .Consultado em 5 janeiro de 2021.
Estávamos em três pessoas adultas, a dona do apartamento com seus 82 anos completos em dezembro 2019 e minha mulher e eu com 58 anos. Sabíamos os três que eram faixas de idade perigosas, principalmente os 82 anos, pois muitas pessoas nessa faixa etária já haviam falecido ou estavam seriamente contaminadas. Ainda que não falássemos sobre isso constantemente, o medo de que um contagiasse o outro era grande. Minha mulher e eu, temíamos ainda pelo fato de que éramos estrangeiros, de um lugar o qual o presidente e seu séquito negavam a força do vírus afirmando que “era apenas uma gripe”6, e não queríamos ser cobrados por insinuações de que partilhávamos dessas posições e por isso havíamos ficado doentes e contagiado a senhora. Além desse medo pela impressão ou até mesmo pelo aprendizado cultural subjugado que tivemos com relação aos europeus, ou seja, de que não podíamos errar nada, qualquer falha seria considerada normal pelo fato de sermos sul americanos, pesava ainda a certeza de que iríamos deixa-la só em seu apartamento, uma vez que nossas passagens estavam marcadas para 2 de abril.
Faltavam muitos dias para a volta, mas chegaria. A preocupação de nossa amiga, ao contrário, era de que ficássemos doentes ali, viajar de tão longe para sermos contaminados em Barcelona? Parecia-lhe uma contradição, ainda que considere que os médicos e o sistema de saúde espanhol sejam os melhores e o fato de termos os seguros de viagem válidos até a volta. Também ela pensava se não era melhor adiantar o retorno, uma vez que não havia Covid19 no Brasil.
Alarme na escalera: Lupe está internada e entubada com covid19.
No desespero de sentir que estávamos protegidos e para limpar tudo, muita água sanitária: corredor, apartamento, janelas, sacadas. A consequência dessa limpeza desesperada foi que tive uma crise alérgica e o médico do seguro saúde me fez uma visita. Apreensão, medo e desconfiança na escalera, mais um caso de covid? Mas não foi, apenas resultado do uso de água sanitária, em estado puro, em ambiente fechado.
A TVE5 ligada todo dia informava os casos em ascensão na Espanha para aquele março, os números assustavam pela subida brusca e por ter atingido a população idosa. Em residências de idosos pessoas foram encontradas mortas, residências foram abandonadas pelos funcionários e, ao contrário disso, no Centre Geriàtric de Lleida (Catalunha) os 24 funcionários se mantiveram dentro do centro com os 90 idosos que ali vivem, como uma forma de evitar contágios e mortes e as primeiras visitas foram possíveis apenas no mês de julho (La Vanguardia, 2020).
- Note de bas de page 7 :
-
No original: Hola Paulo, buenos días! El coronavirus sigue despoblando las ciudades! Mensagem de Franca Mercatili por WhatsApp em 16/03/2020. Tradução nossa.
O gráfico diário do contágio era repassado pela TVE5 no período da manhã e da noite, sempre em alta. Nós três conversávamos acerca do tema, comentando ainda a gravidade na Itália onde os idosos pareciam estar sendo dizimados. Uma amiga da Toscana (Itália) enviou-me pela rede social: “Oi Paulo, bom dia! O coronavírus continua despovoando as cidades”7. O mesmo aconteceu na Espanha, conforme demonstra o gráfico abaixo:
Figura 5 - Casos diários com coronavírus na Espanha.
Fonte: https://www.rtve.es/noticias/coronavirus-graficos-mapas-datos-covid-19-espana-mundo/
- Note de bas de page 8 :
-
A fecha de 15 de noviembre de 2020, 40.749 personas habían fallecido por COVID-19 en España según datos del Ministerio de Sanidad. En un primer momento, diversos estudios estimaron que alrededor del 70% falleció en residencias de personas mayores. Ahora mismo, se está a la espera de que el Gobierno central publique un informe que situaría este porcentaje entre el 50 y el 47%. Amnistía Internacional España (2020). Tradução nossa. España: Las personas mayores en residencias han sido abandonadas durante la pandemia de COVID-19. https://www.amnesty.org/es/latest/news/2020/12/spain-older-people-in-care-homes-abandoned-during-covid19-pandemic/ . Consultado em 5 janeiro de 2021.
Desses números, ainda que não soubéssemos na ocasião precisar a percentagem exata, comentávamos que uma parcela grande de mortos era de idosos. Nossa amiga, que visita conhecidas em casas de idosos, comentava que nem todas essas casas estavam em condições de atender de maneira adequada, suas usuárias e usuários, naquela situação de pandemia. Os estudos posteriores demonstraram em números a nossa impressão, pois “em 15/11/2020, 40.749 pessoas faleceram por covid 19, ...diversos estudos estimaram que ao redor de 70% faleceu em residências de idosos. Agora mesmo, esperamos que o Governo central publique um informe que situariam esta percentagem entre 50 e 47%”8.
No dia 16 de março conseguimos remarcar a passagem de volta para o Brasil para o dia 19 de março. Um misto de alegria por conseguir um lugar no voo com apreensão de deixar nossa amiga solitária no apartamento e com tantas restrições para o deslocamento.
Os últimos dias no Front de Aragón foram ainda mais tensos pela expectativa da partida. No dia 19 de março saímos para o Aeroporto del Prat e as ruas estavam desertas, levávamos as máscaras. No Aeroporto estava tudo fechado, apenas um guichê de Check in da empresa área, não havia duty free, lojas, cafeterias. Ao mesmo tempo de nosso voo havia outro para o Japão e alguns passageiros vestiam roupas de proteção que lembravam filmes de catástrofes. Quando embarcamos ficamos sabendo, pelo comissário de bordo, que aquele seria o último voo da Espanha para o Brasil, todos foram cancelados sem prazo para ‘retornarem à normalidade’. Os dias no Front de Aragón terminavam com mais uma surpresa: poderíamos ter ficado nas trincheiras de Aragón atém julho de 2020, quando foram liberados. Também a expressão ‘retornarem à normalidade’, deixou de ter um sentido literal para abarcar suas múltiplas possibilidades.
Da descrição do cotidiano ao pensamento crítico
Novamente com Lefebvre, faz-se necessário partir da descrição do cotidiano rumo a um pensamento crítico que possa fazer emergir a capacidade criadora e libertadora do cotidiano.
Começamos por um paradoxo que surge ao considerar o próprio front de Aragón ocupado por três pessoas sendo uma idosa e dois adultos como refúgio isolado. Isso porque Barcelona é uma cidade para estar nas ruas, a vida cotidiana acontece em suas ruas e nos encontros e, a proibição dessa circulação em nome da segurança, remete aos dias da guerra civil e, os maiores afetados foram, exatamente aquelas e aqueles que a viveram. Também, a proposta da casa de idosos como local seguro para viver cai por terra. Não estamos seguros em nenhum lugar mais, o perigo externo agora nos chega sorrateiro, trazido pelos nossos entes próximos.
Falar que Barcelona é para estar na rua foi uma construção social que teve seus custos divididos entre todos. Anteriormente, talvez nos inícios do século XX, a rua não tinha o “status” que adquire posteriormente em uma ‘sociedade burocrática de consumo dirigido’, isto é uma sociedade altamente controlada e na qual o consumo é o estilo da cotidianidade no qual muitas vezes se consome mesmo o discurso e não a mercadoria (Lefebvre, 1991:77). É o caso de Barcelona, uma visita guiada pelo Templo da Sagrada Família com tradução para sua língua no aparato, nos traz discursos acerca da obra de Gaudì, “o valor de uso, a coisa em si (a obra) escapa ao consumo devorador, ficando limitado ao discurso” (Lefebvre, 199:144). Vendeu-se a cidade como Modelo Barcelona, que serviria para influenciar cidades por todo o mundo desde 1992 com os Jogos Olímpicos com seu urbanismo. A imagem matando a imaginação.
Estar “seguro” no Front de Aragón durante aqueles dias de março de 2020 nos fez ver que a crise dentro crise estava posta. Escancarou ainda mais que os sistemas de saúde, principalmente os voltados para os idosos careciam de investimentos, esses ao contrário haviam sido retirados em prol da saúde privada. O Front de Aragón demostrava a situação de reféns do neoliberalismo e não de seguros em um abrigo. A Anistia Internacional indica que
- Note de bas de page 9 :
-
No original La denegación del derecho a la salud a personas mayores está fuertemente vinculada con las medidas de austeridad y la infrafinanciación de la sanidad en España. La década de los recortes sanitarios y sociales ha debilitado el sistema de salud público, deteriorando el acceso, la asequibilidad y la calidad de la atención sanitaria. Amnistía Internacional España (2020). España: Las personas mayores en residencias han sido abandonadas durante la pandemia de COVID-19. https://www.amnesty.org/es/latest/news/2020/12/spain-older-people-in-care-homes-abandoned-during-covid19-pandemic/. Consultado em 5 janeiro de 2021.
a denegação do direito à saúde para os idosos está fortemente vinculada as medidas de austeridade e infrafinanciamento da saúde na Espanha. A década de recortes sanitários e sociais debilitou o sistema de saúde pública, deteriorando o acesso, acessibilidade e a qualidade da atenção sanitária9.
Essa conclusão poderia ser estendida para muitos lugares, inclusive o Brasil.
Retomando uma ideia já indicada aqui de que a “história de um dia engloba a do mundo e a da sociedade” (Lefebvre, 1991: 8), no Front de Aragón vivido 24 horas sob a égide dos meios de comunicação, isso ficava bastante claro. A imagem tomou conta da imaginação, talvez o momento mais imaginativo, pois partira da iniciativa da própria população encerrada, foi o de todos os dias às 20 horas aplaudir os profissionais de saúde, urgências, bombeiros e todos aqueles que socorriam as vítimas. Um ato sincero e desesperado que quebrava o silencio das horas, compondo com as sirenes, um momento de esperança e novas expectativas.
O front de Aragón e toda a escalera viveram momentos de tensão pela saúde de Lupe, que felizmente pode sair do hospital depois de um mês internada. A reclusão trouxe a todos nós, independente da idade, o melhor e o pior de cada um. Caetano Veloso, cantando a cidade de Barcelona, na composição Vaca Profana (1984), vai afirmar no final que:
De perto, ninguém é normal
Às vezes, segue em linha reta
A vida, que é "meu bem, meu mal"
No mais, as "ramblas" do planeta
"Orchata de chufa, si us plau".
E ficamos perto por muitos dias.
Surge o conceito de pós-normalidade pelo fato de configurar uma nova cotidianidade após a pandemia “pois o isolamento produz uma explosão de criatividade no decorrer da história” (Wiñazki, 2021: 20). Ocorre que a pandemia ainda não acabou e as marcas e resultados do cotidiano solitário ou familiar e encerrados nos apartamentos e casas ainda está para ser computado.
Seguramente, de todas as vezes que estivemos em Barcelona para trabalhos de pesquisa e também passeios, esta foi a mais marcante e sem registros fotográficos, pois quando o cotidiano é intenso, não se faz necessária a imagem ou o discurso mediado.