Mulheres Donas de Seus Destinos: a constituição do sujeito enquanto mulher profissional do sexo Women Owners of Their Destinations: the constitution of the subject as a sex professional woman

Gabriela Pereira da Silva 
y Luciane Pinho de Almeida 

https://doi.org/10.25965/trahs.1866

A prostituição se configura como prática recorrente no cotidiano da vida social e ainda é muito estigmatizado e abominado, sem que sejam avaliados os determinantes sociais e práticas de exclusão que levam a esta escolha. Assim, postula-se como objetivo estudar como se dá a constituição do sujeito enquanto mulher profissional do sexo partindo dos aspectos psicossociais envolvidos em suas histórias de vida, estudando subjetividade, processos de exclusão/inclusão, sofrimento psíquico e ético-político desta população.A metodologia deste trabalho foi constituída a partir de uma pesquisa qualitativa, na qual inicialmente foi realizado um estudo bibliográfico e, em um segundo momento, foi utilizado o Grupo Focal estruturado por um grupo de oito mulheres profissionais do sexo. Os encontros do Grupo Focal foram gravados, tendo posteriormente as entrevistas transcritas e analisadas segundo a perspectiva sócio-histórica. Os resultados apontam para as contradições do capital e sua relação com a prostituição enquanto categoria trabalho, visto que a sociedade capitalista diz que todos têm possibilidades de ascender socialmente, sem dar condições para isso, é nesse sentido que a prostituição aparece como uma opção. As histórias de vida das mulheres participantes da pesquisa são marcadas por violência doméstica, falta de oportunidades educacionais e baixas condições sócio-econômicas. Além disso, apresentam diferentes tipos de sofrimento, aquele advindo da prática profissional, do preconceito e ético-político. Assim, destaca-se a importância de políticas públicas voltadas para este público específico.

La prostitution est une pratique recurrente dans la vie quotidienne de la vie sociale et est encore très estigmatisée et abominable, sans évaluer les déterminants sociaux et les pratiques d’exclusion qui ont conduit à cechoix. L’objectif est donc d’étudier comment se constitue le sujet entant que femme professionnelle du sexe à partir des aspects psychosociaux impliqués dans leur histoire, en étudiant la subjectivité, les processus d’exclusion / inclusion, les souffrances psychologiques et éthiques de cette population. La méthodologie de ce travail a été constituée à partir d'une étude qualitative dans la quelle une étude bibliographique a d'abord étéréalisée et, dans un deuxième temps, a été utilisée par le groupe de discussion structuré par un groupe de huit professionnelles du sexe. Les réunions du groupe focal ont été enregistrées puis transcrites et analysées du point de vue socio-historique. Les résultats soulignent les contradictions du capital et son rapport à la prostitution en tant que catégorie de travail, puis quel a société capitaliste dit que tout le monde a la possibilité d'une ascensión sociale, sans en donner les conditions, c'est encesens que la prostitution apparaît comme une option. Les histoires de vie des femmes participant à la recherche sont marquées par la violence domestique, le manque d'opportunités en matière d'éducation et les faibles conditions socio-économiques. En outre, ils présentent différent stypes de souffrances, qui découlent de pratiques professionnelles, de préjugés et de politiques éthiques. Ainsi, l’importance des politiques publiques destinées à ce public spécifique se démarque.

La prostitución es una práctica recurrente en la vida diaria de la vida social y todavía es muy estigmatizada y abominada, sine valuar los determinantes sociales y las prácticas de exclusión que conducen a esta elección. Así, el objetivo es estudiar cómo se produce la constitución del sujeto como mujer sexual profesional a partir de los aspectos psicosociales involucrados en sus historias de vida, estudiando la subjetividad, los procesos de exclusión / inclusión, el sufrimiento psicológico y ético de esta población. La metodología de este trabajo se constituyó a partir de una investigación cualitativa, en la que inicialmente se realizó un estudio bibliográfico y, en un segundo momento, se utilizó el Grupo de enfoque estructurado por un grupo de ocho trabajadoras sexuales. Las reuniones del Grupo focal se registraron y luego se transcribieron y analizaron desde la perspectiva socio histórica. Los resultados apuntan a las contradicciones del capital y su relación con la prostitución como categoría de trabajo, ya que la sociedad capitalista dice que todos tienen la posibilidad de ascensión social, sin darle condiciones, es en este sentido que la prostitución aparece como una opción. Las historias de vida de las mujeres que participan en la investigación están marcadas por la violencia doméstica, la falta de oportunidades educativas y las bajas condiciones socioeconómicas. Además, presentan diferentes tipos de sufrimiento, el que surge de la práctica profesional, el prejuicio y el ético-político. Así, se destaca la importancia de las políticas públicas dirigidas a este público específico.

Prostitution is a recurring practice in the daily life of social life and is still very stigmatized and abominated, without evaluating the social determinants and practices of exclusion that lead to this choice. Thus, the objective is to study how the constitution of the subject occurs as a professional sex woman starting from the psychosocial aspects involved in her life histories, studying subjectivity, exclusion / inclusion processes, psychological and ethical suffering of this population. The methodology of this work was constituted from a qualitative research, in which initially a bibliographic study was carried through and, in a second moment, it was used the Focal Group structured by a group of eight female sex workers. The Focal Group meetings were recorded and later transcribed and analyzed from the socio-historical perspective. The results point to the contradictions of capital and its relation to prostitution as a work category, since capitalist society says that everyone has the possibility of social ascension, without giving conditions for it, it is in this sense that prostitution appears as an option. The life histories of the women participating in the research are marked by domestic violence, lack of educational opportunities and low socioeconomic conditions. In addition, they present different types of suffering, that arising from professional practice, prejudice and ethical-political. Thus, the importance of public policies aimed at this specific public stands out.

Índice

Texto completo

Introdução

A prostituição se configura enquanto fenômeno que ocorre no cotidiano da vida social, no entanto, pouco se discute a respeito do tema, que quanto colocado em pauta é foco de discursos extremistas e polêmicos. O tema só ganha destaque quando a mídia nacional promove séries e novelas que envolvam a prostituição, no entanto, o que se percebe é que tais produções mostram estereótipos de uma prostituição de luxo, resultando em ascensão social, possibilidades de consumo e status.

O presente artigo se propõe trabalhar a temática da prostituição, focalizando na prática que não envolve riqueza, e, sim, de mulheres de classes econômicas baixas. Postula-se como objetivo principal estudar como se dá a constituição do sujeito enquanto mulher profissional do sexo partindo dos aspectos psicossociais envolvidos em suas histórias de vida, estudando subjetividade, processos de exclusão/inclusão, sofrimento psíquico e ético-político desta população.

A metodologia deste trabalho foi constituída a partir de uma pesquisa qualitativa, pois esta trabalha com o universo dos sentidos e dos significados (Minayo, 2010). Inicialmente foi realizado um estudo bibliográfico sobre a temática proposta, utilizando como descritor principal “prostituição” nas bases de dados Scielo e Google Acadêmico. Tal estudo possibilitou a construção de um referencial teórico acerca da temática, entendendo como a prostituição se deu historicamente e principais tendências de estudos na atualidade.

Em um segundo momento foi utilizado o Grupo Focal estruturado por um grupo de 08 mulheres profissionais do sexo, buscando compreender suas histórias de vida e quais seus contextos de desigualdade social. Para resguardar a identidade das participantes desta pesquisa optou-se pela utilização de nomes de deusas gregas como forma de evidenciar a sua grandiosidade como mulheres. Pois estas apresentam histórias de vida marcadas por sofrimento, no entanto, mostram-se mulheres fortes e capazes de enfrentar as adversidades da vida, lutando para serem donas de seus próprios destinos.

Segundo Backes et al (2011), o Grupo Focal “se trata de uma entrevista em grupo, na qual a interação configura-se como parte integrante do método”. Ou seja, na utilização deste método de coleta de dados de maneira qualitativa, os participantes podem debater sobre determinado tema, utilizando sua própria linguagem e seus conhecimentos.

Foram realizados 03 encontros com duração de 50 (cinquenta) minutos a 01 (uma) hora cada. Em cada encontro foi proposto uma pergunta norteadora da discussão, que, no seu decorrer, pôde revelar outras questões devido às discussões realizadas. As perguntas norteadoras dos encontros foram: 1) Primeiro encontro: “Como foi sua infância e adolescência e como foi seu relacionamento familiar nessas duas fases da vida?”; 2) Segundo encontro: “Como e por que você se envolveu com a prostituição?”; 3) Terceiro encontro “Quais são suas perspectivas de vida futura? O que planeja para o seu futuro? É possível realizar um projeto de vida futura?”.

Os encontros foram realizados em sala privativa na sede de uma instituição de atendimento a mulheres profissionais do sexo. A pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa e as participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido autorizando a gravação dos encontros e a utilização do mesmo para fins de pesquisa. As informações coletadas a partir da realização do Grupo Focal foram gravadas, posteriormente transcritas e analisadas segundo a perspectiva sócio-histórica, a qual tem como base o materialismo histórico dialético de Karl Marx, o qual pauta sua análise na objetividade do mundo real e concreto.

Tal perspectiva tem por interesse conhecer a lógica de um objeto real e determinado. José Paulo Netto (2011) afirma que “descobrir esta lógica consiste em reproduzir idealmente (teoricamente) a estrutura e a dinâmica deste objeto”. Pretendeu-se analisar o objeto real concreto, assim para a teoria sócio-histórica, a história é constituída por movimentos contraditórios do fazer humano (Bock, Gonçalves & Furtado, 2007).

É válido ressaltar que o presente trabalho opta por tratar de um tipo de prostituição que envolve a população de condições socioeconômicas mais baixas devido à relevância social atribuída à temática. O nível de vulnerabilidade social vivenciado por estes indivíduos acentua a necessidade de olhar para este sujeito e pensar de forma crítica os contextos e histórias que o levaram a esta situação, articulando com soluções de melhoria na qualidade de vida e promoção de saúde através de políticas públicas.

Faz-se importante destacar, ainda, que esta pesquisa teve a pretensão de trabalhar com mulheres que desejam sair da prostituição, não negando a existência daquelas que querem permanecer na prática. A prostituição tratada aqui é aquela feita como escolha própria, ou seja, difere-se da exploração sexual e do tráfico de pessoas. No entanto, a questão de análise é até que ponto esta profissão é livremente escolhida, visto que esta escolha permeada por determinantes sociais que as levam a optar por se prostituir. Assim, trabalhamos com a prostituição de baixa renda causada pela desigualdade social e de gênero presente na sociedade contemporânea. Tendo isso em vista, o presente trabalho levanta a importância da discussão da temática, visto que os estudos neste campo ainda são escassos e o tema prostituição ainda é considerado polêmico, apesar de tão presente na sociedade atual. Assim, com o objetivo de estudar a prostituição, aspectos psicológicos presentes em suas histórias, subjetividade e exclusão, pretende-se traçar um histórico acerca do tema, a fim de fornecer subsídios para a reflexão dos indicadores coletados através do Grupo Focal.

1. Prostituição: um olhar para história para compreender o presente

Para compreender um fenômeno social, é importante voltar-se para a realidade concreta, a fim de analisá-lo pela forma como se apresenta na vida material dos sujeitos. Para a teoria sócio-histórica, a história é constituída por movimentos contraditórios do constante fazer humano (Bock, Gonçalves & Furtado, 2007). Assim, para a compreensão de um determinado objeto de estudo é necessário que se realize uma retomada histórica acerca do tema, a fim de analisar quais seus fatores propiciadores e de que forma foram constituídos, embora os fenômenos não aconteçam de forma linear, mas dialética.

Popularmente a prostituição é tratada como “a profissão mais antiga do mundo”. É fato que a origem da prostituição foi se perdendo com o tempo, porém, é certo de que a prostituição é uma criação social do homem. A ênfase de que esta profissão não é advinda da natureza humana é fundamental para que não seja uma norma representacional das mulheres. Sobre a crítica a proposição citada, Swain comenta:

Esta proposição – a mais antiga profissão do mundo – cria e reproduz a idéia da existência inexorável da prostituição, ligada à própria existência das mulheres, parte de seu destino biológico; nesta asserção é mantida, no senso comum, a noção da essência maléfica e viciosa das mulheres, que, através dos tempos, se concretiza na figura da prostituta, o lado sombrio e negativo da representação construída sobre a mulher-mãe na historicidade discursiva ocidental. Por outro lado, fica materializada e generalizada a idéia da condição inferior das mulheres ao longo da história, despossuídas de seus corpos e de sua condição de sujeito, no social e no político. (2004: 24)

Assim, é possível perceber que a noção popular da prostituição como a profissão mais antiga do mundo torna este ato como intrínseco da mulher e isenta a sociedade de qualquer responsabilidade acerca do fenômeno. As mulheres que se envolvem com a prostituição são usualmente criminalizadas e julgadas pelo caráter, a prática se torna naturalizada e banalizada, sem que exista reflexão acerca da mesma, buscando suas origens e causas.

Cada momento histórico, portanto, possui uma definição própria para a prostituição. Sendo que em determinadas épocas a prostituta era a mulher que não era casada, mulher adúltera, além de designar mulheres que trabalhavam fora de casa, principalmente as que trabalhavam à noite como cantoras e atrizes. O título de prostituta cabia à todas àquelas mulheres que não se enquadravam às normas do seu tempo/espaço (Swain, 2004). Hoje a prostituição é entendida como uma atividade profissional em troca de um valor monetário e é caracterizado pelo desapego afetivo (Silva, 2001), bem como o “comércio habitual do próprio corpo para a satisfação sexual de indiscriminado número de pessoas.” (Rodrigues, 2004: 151)

De acordo com Paiva et al (2013), há relatos da prostituição como uma prática profissional desde a Grécia Antiga e está presente em diversas civilizações desde então. A prostituição acentua-se em um momento histórico marcado pela pobreza e miséria, em que se caracteriza como um modo de sobrevivência. Engels (2008) em sua descrição da classe trabalhadora da Inglaterra no período de ascensão do capitalismo como modo de produção traz relatos da prostituição ocorrendo no cotidiano da vida social da classe operária, em especial nas tabernas, locais onde se bebia muito e era a única forma de lazer. Os valores morais vindos da Igreja perdem força e resta à promiscuidade para homens e mulheres que davam suas vidas para o trabalho e, muitas vezes, nele morriam.

No Brasil, a prostituição está presente desde o período colonial, todavia, só passou a ser objeto de estudos científicos a partir da segunda metade do século XX. A relação da prostituição com a extrema pobreza da época fez com que esta fosse foco de produções científicas, visto que a prostituição foi vista como uma forma de trabalho que estava ligada à sobrevivência (Silva, 2001), fato que é corroborado até os dias atuais.

Apesar de ter sua origem perdida no tempo, é possível afirmar que o estigma e o preconceito com mulheres que se prostituem nem sempre foi presente. Um exemplo disso a figura da deusa Innana, deusa da Mesopotâmia e Egito, que era prostituta, além disso, muitas mulheres que se prostituíam eram tidas como sagradas, tendo grande influência religiosa, política e econômica. O mesmo se dá na Grécia Antiga, onde eram mulheres de posição social elevada e tinham níveis educacionais acima da média.

Apenas com o advento da moral sexual é que prostituição é tida como sinônimo de devassidão (Sacramento & Ribeiro, 2014). Assim, o estigma desta profissão presente no mundo contemporâneo é resultado de um processo relacional em que determinado grupo projeta elementos de personalidade que atribuem marginalidade à prostituição, excluindo da sociedade quem a pratica. Atualmente a profissional do sexo não é vista com preconceito por estar praticando um ato ilegal, no Brasil e em outros países o ato em si é considerado um delito (Rodrigues, 2004; Sacramento & Ribeiro, 2014).  

No Brasil, a prostituição não é considerada um delito – portanto, não sendo objeto do Código Penal Brasileiro de acordo com o Decreto Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940 e ainda em vigor (Rodrigues, 2004), visto que os cidadãos têm a liberdade de disposição do próprio corpo, sendo apenas punidos os casos de exploração da prostituição, quando uma terceira pessoa recebe algo em troca do serviço prestado pela profissional do sexo (Schreiner et al, 2004). O Código Penal institui como crime apenas o lenocínio que consiste em induzir ou tirar proveito sobre a prostituição de terceiros e também manter casas de prostituição, sendo considerado “crime contra costumes” de acordo com o Título VI (Rodrigues, 2004). A prostituição tem foco no Código Penal, o que mostra que apesar de não ser uma prática ilegal, é vigiada de perto por policiais para que a sociedade não seja colocada em risco, partindo da percepção popular que a prostituição é algo ruim que pode abalar a estabilidade de famílias.

Assim, o estigma se dá pela divergência quanto aos valores regulatórios da sexualidade feminina (Sacramento & Ribeiro, 2014). Ao tratar da sexualidade feminina, Freud vê a mulher como um ser inferior em relação aos homens pela ausência do pênis. De acordo com o autor, a mulher seria um ser mutilado e isso estaria na base da sua relação com o homem. Somado a isso, está a mulher como alguém que precisa de cuidado e proteção, sendo constantemente vigiadas. Assim, a mulher se torna incapaz de viver sua sexualidade (Silva & Capelle, 2015). É nesse sentido que a pesquisa de Nascimento e Garcia (2015) retrata a prostituição de jovens mulheres da zona rural da Paraíba, para elas a prostituição é vista como forma de empoderamento em relação ao próprio corpo. 

 Atualmente no Brasil, a prostituição integra a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), sendo, portanto, considerada uma profissão como qualquer outra. As discussões sobre o tema tiveram início nos anos 2.000 sob a coordenação do Ministério do Trabalho e Emprego (TEM) buscando defender os direitos e interesses das profissionais do sexo. A ocupação de “profissional do sexo” é encontrada na CBO com o número 5198-05 e pertence ao conjunto de atuação profissional de “prestador de serviço.” (Rodrigues, 2009)  

Muito vem sendo discutido a respeito da regulamentação da prostituição, pois, ao apontar parâmetros legais em que a profissão deve ocorrer estar-se-ia aceitando a prostituição como uma profissão qualquer, negando a construção social da mesma, os motivos que levam a esta escolha e todo sofrimento envolvido (Afonso, 2017). No entanto, ao regulamentar a prostituição, as mulheres envolvidas podem ganhar atenção em políticas públicas de segurança e de saída da profissão, caso desejem.

No Brasil, as oportunidades de ascensão social são para poucos, isto é comprovado a partir da grande desigualdade social e de gênero existente, pois para muitos as chances ainda apresentam-se de forma insuficiente para saírem das situações de pobreza. Essa desigualdade agrava-se quando nos reportamos à questão de gênero e ainda mais acentuada é quando tratamos de questões de raça.  Deste modo, muitas mulheres buscando sair de situações de extrema pobreza buscam meios para garantir a sobrevivência de si e de suas famílias recorrendo à prática antiga da prostituição.  

É nesse sentindo que Oliveira (2013: 19) descreve a prostituição como “uma resposta compreensível e razoável às necessidades socioeconómicas entendidas num contexto de cultura consumista e num enquadramento social que privilegia a sexualidade masculina”. Assim, vê-se a desigualdade social e de gênero impossibilitando que mulheres consigam ter meios de subsistência, além da sociedade capitalista produzindo o desejo do consumo sem que se tenham oportunidades socioeconômicas para isto. Assim, a prostituição surge como opção para a sobrevivência e possibilitar o consumo. 

Cada história de como e, por quê adentra-se na prostituição é particular e subjetiva. Os motivos que a levou a ser inserida nesta prática, a forma como esta se dá, se acontece nas ruas, casas de massagem ou online, a quantia de dinheiro envolvida, o público alvo de seus serviços, o sofrimento atribuído a prática, o desejo de sair ou da prostituição, visão da família quanto a isso, todos esses, entre outros, são elementos a serem avaliados de forma particular de acordo com a percepção e a história de cada mulher. Desta forma, justifica-se o uso do materialismo histórico dialético, que visa analisar o fenômeno de forma objetiva pela forma como este se apresenta no mundo real concreto. (Netto, 2011)  

Considerando, portanto, o contexto sócio-histórico, econômico e cultural que estas mulheres estão inseridas, teceu-se uma reflexão sobre os aspectos psicossociais envolvidos nas histórias de vida de profissionais do sexo, procurando entender como os aspectos psicossociais influenciam na construção da subjetividade. Além de olhar mais a fundo os processos de exclusão/inclusão vivenciados por elas, propiciando sofrimento psíquico e o chamado sofrimento ético-político, bem como estudar as contradições do capital e a relação da prostituição enquanto categoria de trabalho. Tais questões serão abordadas a seguir ao longo do presente trabalho.

2. A luta de guerreiras: aspectos psicossociais e subjetividade de profissionais do sexo

O fenômeno psicológico se desenvolve ao longo do tempo, ele não pertence à natureza humana e não preexiste ao homem. Mas, sim, reflete as condições sociais, econômicas e culturais do homem, por isso falar do fenômeno psicológico é necessariamente falar sobre a sociedade, falar de subjetividade é falar da objetividade na qual os homens vivem. Compreender o mundo interno de um indivíduo é compreender o mundo externo, visto que são dois aspectos de um mesmo movimento dialético no qual o homem modifica o mundo e este propicia a constituição psicológica do homem. (Bock, Gonçalves & Furtado, 2007)

O fenômeno psicológico deve ser concebido como a construção do nível individual a partir do mundo simbólico que é o social. O fenômeno, portanto, deve ser visto como subjetividade, algo que se constitui na relação com o mundo social e real, tal mundo que existe apenas através da atividade do homem. Subjetividade e objetividade são elementos constituintes, porém, que não se confundem, sendo a linguagem a mediação para a internalização da objetividade, elemento que permite a construção dos sentidos pessoas que dão origem a subjetividade. (Bock, Gonçalves & Furtado, 2007)

As subjetividades das mulheres participantes da pesquisa que se envolvem com a prostituição são produzidas a partir da internalização de um contexto de exclusão, encontram-se a margem da sociedade em estado de desigualdade e vulnerabilidade social. Entende-se exclusão como um processo sócio-histórico, sutil e dialético, visto que apenas existe porque o seu contrário existe, a inclusão. Esta dialética gera processos de subjetivação específicos, envolvendo o homem em sua totalidade e com suas relações. (Sawaia, 1999)

Além disso, no modelo de sociedade presente no Brasil, o Estado se configura como principal mecanismo de integração social que se dá através do trabalho e proteção social. Estes dois eixos encontram-se articulados, visto que os direitos sociais estão relacionados à condição de trabalhador. O trabalho define a identidade social nos países industrializados. Desta forma, quanto mais os sujeitos estão inseridos na sociedade, mais incluídos estão em ambos os eixos. O mesmo vale para o contrário, se os sujeitos estão distantes da sociedade, mais excluídos são e menos usufruem do trabalho e proteção social (Sawaia, 1999). Como consequência, os sujeitos são deixados à margem da sociedade e não tem acesso a emprego e têm seus direitos sociais negados.

Ao se realizar uma retomada na história de vida das participantes da pesquisa nota-se alguns pontos de intersecção entre elas. No tange a sua infância e adolescência, dois pontos fundamentais aparecem de forma recorrente: a fome e a violência doméstica. Não houve, no entanto, relatos de abuso sexual na infância, fator comumente associado a prostituição. Há indícios de pais rígidos, ambientes familiares marcados por miséria, instabilidade e violência física e psicológica tanto consigo mesmas quanto com suas mães. Conforme Swain (2004), mulheres que se envolvem na prostituição têm suas histórias permeadas por abusos, estupros ou outros tipos de violência social.

Note de bas de page 1 :

Trechos de falas coletadas através da realização de Grupo Focal, aprovado pelo Comitê de Ética, com oito mulheres profissionais do sexo cuja identidade foi resguardada, sendo seus nomes substituídos por nomes de deusas gregas.

[...] eu sempre via meu pai bater na minha mãe, então você vai crescendo com aquilo, entendeu, aí eu resolvi sair de casa, então, não tive infância (Ártemis)1
[..] desde pequenininha vi violência e pobreza... (Deméter)
[..] porque meu pai ficava o dia inteiro na rua, num bar e chegava bravo, não tinha o que comer, aí ele batia, era a vida dele, entendeu? (Deméter)
Uma coisa que me marcou demais foi quando minha mãe saiu na rua, meu pai batia muito nela, nós tudo pequeno, nós falô, mãe nós tá com fome, o que nós vaijantá? Aí minha... falô assim, espera aí, que a mãe já volta. Ela saiu e não demorou uma hora, ela veio com um monte de abacate verde e deu pra nois comer. Ela falô assim, é isso que nois vai jantá. (Deméter)

Vê-se que as condições sócio-econômicas das famílias das participantes da pesquisa não possibilitavam suprir nem mesmo necessidades biológicas como a de alimentação, abrigo e segurança. Para Vygotsky, o funcionamento psicológico do indivíduo será constituído a partir das relações sociais estabelecidas entre ele e o mundo exterior. O desenvolvimento do funcionamento psicológico acontece de forma contextualizada a um momento histórico, social e cultural (Felipe, 2001). Assim, as pessoas que a criança normalmente recorreria em busca de apoio e proteção, também não supriam suas necessidades básicas. Estas mulheres crescem percebendo o mundo como um ambiente hostil do qual devem se defender e elaborar estratégias alternativas para sua sobrevivência.

A forma com que o processo de socialização passa pelo indivíduo abrange sistemas maiores e complexos. De forma ampla, a criança está inserida em um macrossistema composto pelas práticas e valores societários, a posição de classe em que se encontra. Os indivíduos sofrem influência direta de seus pais e da escola, os microssistemas, que por sua vez, são influenciados pelo exossistema, ou seja, as condições de trabalho que vivenciam (Ratner, 2002). Assim, o ambiente familiar se relaciona com a criança de acordo com suas possibilidades afetivas, psicológicas e sócio-econômicas advindas de situações anteriores de vida também marcadas por pobreza e violência, sendo esta a forma que sabem se relacionar e que se perpetua em um ciclo de violência internalizado pelo indivíduo.

Atrelados à questão financeira, encontra-se as falhas no sistema educacional vivenciadas por estas mulheres. Devido às necessidades econômicas, muitas deixam de ir à escola muito cedo para ajudar sua família ou mesmo não são estimuladas a continuarem estudando, como no relato abaixo.

Ele nunca chego em casa e disse toma pega esse lápis aqui, esse lápis é pra você estuda, ele nunca chego e disse isso pra mim (Afrodite)
Ia pra escola, quando tinha o sapato não tinha a calcinha, quando tinha a calcinha não tinha o short, quando tinha o short não tinha a borracha... (Atena)

A vontade de continuar os estudos é expressa por todas as participantes, as quais atribuem também à falta de educação de qualidade e qualificação profissional a sua entrada na prostituição. Vygotsky afirma existir o nível de desenvolvimento real e o potencial. O primeiro se refere às coisas que a criança consegue fazer sozinha sem precisar de ajuda, enquanto o segundo é sua capacidade de desempenhar atividades com a ajuda de terceiros. Nesse sentido, cabe a escola estimular a criança para que ela consiga desempenhar todas as atividades que possui potencial. (Felipe, 2001)

No entanto, a falta de suporte escolar que ocorre em suas histórias dificulta a trajetória profissional destas mulheres, as quais veem na prostituição uma saída para uma série de dificuldades enfrentadas ao longo do seu desenvolvimento infantil, como as citadas anteriormente, a violência, fome, pobreza e falta de oportunidade escolar. Apesar dos relatos acima, o que fica evidente é a falta de informações sobre a infância e adolescência, com falas curtas e poucas reflexões sobre estas fases de suas vidas, logo iniciam a falar sobre sua entrada na prostituição, demonstrando que este foi o acontecimento que mais as marcou, percebendo outras informações como menos válidas de serem mencionadas.

O que ocorre é a internalização de uma história marcada por sofrimento, no qual se buscou fugir com a prostituição. O relacionamento primário, ou seja, com a família, destas mulheres foi um período conturbado de suas vidas que afeta o seu desenvolvimento psicológico, a forma como vêem a si mesmas e como se relacionarão com o outro e com o mundo. O desenvolvimento se dá a partir da individualização de funções sociais, tornando-se funções psicológicas, assim, o desenvolvimento cultural aparece primeiro de forma interpsicológica, entre as pessoas, e depois torna-seintrapsicológica, dentro da própria criança. (Ratner, 2002)

Desta forma, as relações sociais estabelecidas pela criança irão fundamentar todas as funções superiores do indivíduo. Ou seja, o indivíduo irá se relacionar consigo mesmo da mesma maneira que as pessoas se relacionaram com ela (Ratner, 2002). Se crescem, portanto, em um ambiente hostil, e assim serão consigo mesmas e com os demais. Surge, nesse sentido, sentimentos de menos-valia, acreditando que não são capazes de crescer e realizar seus objetivos, que tudo que podem fazer é entrar no mundo da prostituição.

A profissão surge como uma estratégia de enfrentamento da realidade vivida ao longo do seu desenvolvimento. E a partir disso, torna-se mais que uma forma de subsistência diante de baixas condições socioeconômicas. Tal fato é corroborado em outras pesquisas, conforme apontado por Rago (1995) e Silva (2001). Diniz (2009) em sua pesquisa com profissionais do sexo de Natal/RN também aponta este ponto em comum com mulheres que optam pela prostituição tendo como causa principal questões financeiras, agravadas pelo fato de não possuírem qualificação profissional, fato mencionado anteriormente.

Muito além de uma estratégia de sobrevivência, a prostituição passa a ser uma forma de ascensão social. A mídia é um dos principais mecanismos do capitalismo que visam seduzir a população a consumir, gerando não só a necessidade de sobrevivência, bem como a necessidade de consumo e desejo de ascender socialmente. Nesse sentido, a prostituição aparece como opção na vida de mulheres de baixa renda como uma forma de profissão com rápido retorno financeiro.

Foi quando eu conheci uma menina que trabalhava na rua e ela me apresentou esse mundo, aí desde então eu não saí mais. Um Dinheiro fácil, um dinheiro rápido... (Perséfone)

A permanência como profissional do sexo diz respeito, portanto, aos ganhos financeiros possibilitados pela prática. As participantes da pesquisa relatam ganhar mais do que conseguiriam em um emprego formal, além de adquirirem o dinheiro de forma imediata, não tendo que esperar até determinada data para receber como em outros trabalhos assalariados, fato corroborado em pesquisa feita por Rodrigues (2010) como um dos fatores positivos da prostituição. A prostituição como mecanismo para além da sobrevivência, mas também destinada ao consumo também é apontada por Lopes, Rabelo e Pimenta (2007) e por Afonso (2017), a qual também encontra relatos que afirmam ser um dinheiro rápido, porém não é fácil. Além disso, também encontra casos de mulheres que percebem esse dinheiro como muito passageiro e sem valor, pois, com ele não consegue adquirir bens como casa e carro, considerados importantes aquisições. É um dinheiro que da mesma forma que conseguem de forma rápida, também assim ele é gasto.

Sujo, porque ao mesmo tempo que ele vem fácil, ele vai fácil. Só que você não vê... você não vê progressão naquilo ali, você não vê nada. (Hera)
É um dinheiro que te suja. (Deméter)

Ainda assim, a permanência na prostituição passa a estar ligada ao poder aquisitivo proporcionado pelo dinheiro e o consequente status social que adquirem, revelando que seus discursos trazem a lógica do capitalismo de consumo pelo prazer e como forma de assumir sua liberdade, tal qual é mencionado por Marcuse (1964) quando se refere a “sociedade livre” na civilização industrial contemporânea, afirmando que o conceito vai além da liberdade econômica, política e intelectual como fora usado no passado. A liberdade passa a se concretizar no livre direito ao consumo. E ao consumo liga-se a ideia de poder, assim, o indivíduo se sentirá livre de acordo com a sua capacidade de consumo. Se não tiver tal capacidade de consumo o indivíduo passa a ser excluído, em contrapartida aos incluídos que detém o poder de consumo.

Nesse sentido, o capital define modos de viver e modos de liberdade permeados pela questão do trabalho. Desta forma, atualmente afirma-se que todos tem a possibilidade de consumir, meio pelo qual sentem-se livres e se autoafirmam. No entanto, as possibilidades de consumo diminuem para quem não detém os meios de produção, ou seja, o capitalista. Para os indivíduos que possuem apenas sua força de trabalho, as promessas de ascensão e consumo se tornam vazias. Assim, vê-se a contradição do mundo contemporâneo, a sociedade que exige que se consuma a fim de que se afirme a liberdade individual e promete meios para que o consumo se dê, no entanto, este não se concretiza em virtude da falta de possibilidades de ascensão socioeconômica através do trabalho.

A prostituição é vista de forma negativa por sete das oito participantes, que dizem sentir nojo do que fazem e dos clientes com os quais se relacionam, conforme também descrito por Gugik (2001) como dificuldades existentes na prostituição, bem como o desrespeito por parte dos clientes, violência e preconceito devido ao que fazem, levando ao isolamento de sua família e comunidade de origem.

[...] fora o nojo que é... homem nojento, fidido, eles querem lambê a gente (Perséfone)
Então eu sentia nojo daquela vida, né, de tá me prostituindo, dormindo com homi, bêbada, porque eu não suportava fica. (Hera)

A vida das mulheres que se envolvem com a prostituição, o sofrimento psíquico se apresenta de diversas formas que são propiciadoras desta prática. Podemos falar do sofrimento psíquico decorrente da própria prostituição, no qual se vêem presas a esta prática por não conseguirem emprego por falta de qualificação ou por estarem marcadas pela prostituição, quando os proprietários descobrem que se trata de alguém que já foi profissional do sexo logo perdem seu emprego de forma discriminatória. Ademais, existe o sofrimento decorrente de uma ação que não gostariam de estar praticando, assim ocorre o uso de álcool e drogas como forma de fugir da realidade e meio para conseguir continuar se prostituindo a fim de sobreviver.

Uma das participantes relata não se prostituir se não estiver bêbada, além disso, mulheres que trabalham em casas de massagem são obrigadas a beber com o cliente para fazer com que este último consuma mais e obtenha-se mais lucro. O uso de drogas líticas e ilícitas é demonstrado em várias pesquisas sobre prostituição, tal qual Schreiner et al (2004) o qual apontou que 70,7% das prostitutas eram usuárias de álcool. Santos et al (2008) também afirma que a situação de vulnerabilidade é expressa através do uso de drogas líticas e ilícitas.

[...] pra você ficar sem amor é horrível, você tem que beber, ficar bêbada pra ficar com aquela pessoa, senão você não consegue ficar. (Hera)
Tive uma overdose já, né, na Espanha, morei na Espanha, tive crise de overdose... (Atena)
[...] aí ficava uns dois, três dias no hotel só gastando... bebendo... me drogando. (Afrodite)

A sociedade contemporânea globalizada e os avanços tecnológicos cada vez maiores produzem um tipo de exclusão diferente da discriminação que acontecia anteriormente. Tal sociedade tende a criar indivíduos desnecessários ao universo produtivo. Isso provoca, de maneira difusa ou mesmo de forma explícita, sensação de inutilidade causada por trabalhos que não levam à valorização social, processos de não reconhecimento social ou até mesmo a perda da condição de trabalhador.

Assim, a sensação de inutilidade provoca um sofrimento psíquico. Este sofrimento não é reconhecido ou legitimado como tal e é experimentado de maneira subjetiva (Sawaia, 1999). Ademais, há o sofrimento ético-político, o qual está presente na vida destas mulheres até mesmo antes de entrar na prostituição, no sentido de não conseguirem meios para melhorar suas vidas, vendo-se presas a um contexto de servidão que não propicia a liberdade de escolher o que realmente querem, visto que suas escolhas são permeadas por aspectos socioeconômicos e histórico-culturais do local onde vivem.

Ponto central nos estudos de Sawaia (2009) é a categoria sofrimento ético-político, este se constitui enquanto diferenciação ao sofrimento ontológico do ser a partir da relação entre a desigualdade social e as respostas afetivas do sujeito. O sofrimento ético-político faz parte do cotidiano de todo sujeito que não é detentor dos meios de produção, sendo estes dominados. Tal conceito é subsidiado por Heller, Espinosa e Vygotsky e é considerado um meio para explicar a dialética exclusão/inclusão. (Sawaia, 1999)

O sofrimento ético-político retrata a vivência no cotidiano das questões sociais existentes em cada momento histórico, especialmente a dor que surge a partir de situações sociais de ser tratado como inferior, dominado, sem valor, de forma inútil para a sociedade Tal fato é comum a um contexto capitalista produtor de desigualdade social, no qual existem sujeitos que são inúteis à produtividade dos meios de produção que visam à mais-valia. Portanto, tal sofrimento revelará a ética da vivência cotidiana da desigualdade social, na impossibilidade da maior parte da camada da população se apropriar da produção material, cultural e social de sua época, sem possibilidades de se movimentar no espaço público e expressar seus desejos e afetos (Sawaia, 1999). É nesse sentido que a felicidade se torna um ato político, como forma de oposição ao sofrimento produzido por relações de servidão da cadeia de paixões tristes.

Assim, analisar o sofrimento ético-político faz-se necessário conhecer as formas sutis de exploração humana escondidas em meio à aparência de integração social, e, portanto, entender a exclusão e a inclusão como modos modernos de velhos problemas sociais, a desigualdade, injustiça e exploração (Sawaia, 1999). Assim, mulheres que se envolvem com a prostituição passam por situações de exclusão ao longo da vida, desde a situação de desigualdade social em que estão inseridas, passando pela falta de oportunidade de ensino educacional e qualificação profissional, escolha profissional que acentua contextos de desigualdade social e vulnerabilidade, violência e desejo de consumo como forma de se sentirem incluídas como parte da sociedade. No entanto, o que se percebe é que estas mulheres são deixadas à margem, vistas com preconceito e discriminação. Assim, o sofrimento ético-político está presente em suas vidas desde a infância, de forma não legitimada e crescente ao longo de suas histórias.

A prostituição enquanto categoria de trabalho faz com que as mulheres sejam o próprio objeto de mediação da profissão. Trocam seus corpos por dinheiro, tornando-se objetificadas e assim tratadas por seus clientes e pela sociedade de maneira geral. Tornam-se objetos, tornam-se máquinas que devem apenas se utilizar de sua força de trabalho para ter retorno financeiro que as subsidie. É possível que seja feita uma diferenciação entre trabalho e força de trabalho. No primeiro caso, o homem é que transforma a natureza de forma consciente e intencional, tendo domínio de sua ação. Já no segundo, o trabalho se constitui enquanto capacidades físicas e mentais próprias da corporeidade do homem, que é colocada em movimento para produção de valor de uso. Assim, a força de trabalho é considerada uma mercadoria que pode ser vendida e barganhada pelos detentores dos meios de produção (Marx, 2013).

A categoria trabalho enquanto categoria constituinte do ser humano e que o dignifica não é concretizada visto que os homens perdem a liberdade de seus corpos para produzir o que desejam. O homem deixa de produzir bens que são significativos para si e tornam-se alienados em seus trabalhos. Desta forma, o que lhes restam é vender sua força de trabalho, fazer com que seus corpos virem mercadoria com possibilidade de produzir mais-valia para seu empregador, a fim de que possam subsidiar sua existência. (Marx, 2013)

Ao tornarem-se máquina enquanto objeto a ser utilizado, são consideradas apenas mais uma engrenagem que gira o modo de produção capitalista, o qual não dá luz sob aqueles que o produzem, apenas visa o aumento do capital. Assim, tornam-se alheias aos próprios corpos que são utilizados como bens de consumo de clientes. Alienam-se de si mesmas e não entram em contato com sua realidade, seu sofrimento e a dor advinda do sofrimento ético-político.

A partir de divisão social do trabalho, os homens passam a ter uma dificuldade maior de pensar seus problemas e vê-los de forma universal, isso se dá, pois mesmo que tentem ser sinceros, acabam sendo influenciados pela ideologia vigente, ou seja, pelo ponto de vista daqueles que exploravam o trabalho alheio. Assim, as condições de trabalho, de forma geral, produzem certo estranhamento entre o trabalhador e o trabalho em si, visto que antes mesmo de o trabalho se realizar, o produto do mesmo já pertence à outra pessoa e não aquele que o produziu. Ao invés de realizar-se no trabalho, o trabalhador se aliena a ele; ao invés de se reconhecer nas suas criações, o trabalhador se sente ameaçado por elas; ao invés de se libertar, o trabalhador se vê enrolado em novas opressões. (Konder, 2008)

O mesmo processo de alienação ocorre com profissionais do sexo. São exploradas em prol do ganho de aliciadores, donos de casas de massagem, pelos próprios clientes que se tornam proprietários pelos seus corpos enquanto estiverem pagando por isso. Não há identificação com o trabalho, não há reflexão sobre como precisou chegar até ali ou de como sair. Deixam de estar em contato consigo mesmas para viver um dia-a-dia em que estão expostas a riscos constantes de violências físicas, morais, psicológicas e sexuais.

Marx (2013) entende trabalho enquanto essência do ser humano. É a mediação entre o homem e a natureza, e este se difere do trabalho realizado por outros animais devido à consciência. Os animais trabalham por instinto, já os homens conseguem visualizar o produto final do seu trabalho, como em seu clássico exemplo da diferença entre o trabalho das abelhas e de um arquiteto, este último “tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera.” (Marx, 2013: 327) Assim, o trabalho é um processo entre homem e natureza, em que o homem por sua ação pode controlar a natureza. O ser humano coloca em movimento suas forças naturais para que a matéria-prima se torne útil à sua vida, sendo, portanto, uma atividade orientada para determinado fim. (Marx, 2013)

O sistema econômico vigente capitalista produz certa divisão social do trabalho, papéis sociais exercidos pelos sujeitos, em que alguns detêm os meios de produção, meios de explorar o trabalho dos outros, passando a impor certas condições de trabalho que não foram livremente assumidas por eles, enquanto do outro lado restam aquele que detêm apenas sua força de trabalho. (Konder, 2008) Isso gera determinados tipos de relações entre os indivíduos, produzindo certos tipos de subjetivação. Processos estes que têm início desde o nascimento, a partir do contexto cultural, social e histórico em que crescem, as relações que assumem e os condicionantes que permearão certas escolhas.

Para profissionais do sexo, este processo as leva a optar por um tipo de trabalho que as desumaniza e as objetifica. O trabalho deixa de ser consciente como forma de mediação com a natureza e retorna a fatores instintivos relacionados a sobrevivência. O trabalho deixa de envolver inclusão social, passa a significar mais um motivo de exclusão. Não as dignifica, produzem sofrimento. São oprimidas pela sociedade que não lhes permite recursos para saída da profissão para aquelas que desejam, sete entre as oito participantes da pesquisa.

No que diz respeito às mencionadas opressões, Sawaia (2009) trabalha com conceitos de Espinosa de cadeia das paixões tristes, em que o sujeito se vê preso em relações de servidão, as quais se constituem enquanto ilusão de liberdade. Nesse sentido, a alegria e a felicidade seriam a base da liberdade. A ontologia espinosana supera a noção de que a liberdade tem pouco valor para aqueles que têm fome e estão em estado de pobreza, na sua concepção a falta do direito de escolha gera tanto sofrimento quanto a falta de moradia.

A autora trás, ainda, a ideia de Vygotsky de que só será possível atingir a liberdade a partir da criatividade. Desta forma, viver é mais do que a sobrevivência, a necessidade de dinheiro para sua subsistência é tão necessária quanto à de relações potencializadoras de liberdade e felicidade, esta entendida como ato político. Pois só quando há consciência e quebra da alienação é que a liberdade é possível, e isso só será possível quando os sujeitos se libertarem das relações de servidão. (Sawaia, 2009) Assim, profissionais do sexo precisam mais do que dinheiro para que consigam sobreviver, para que consigam subsidiar o sustento de suas famílias. É preciso que haja liberdade de escolha para a saída desta profissão, a mesma que houve quando optaram por entrar. A criatividade e felicidade se tornam verdadeiros atos políticos libertadores das cadeias de paixões tristes, às quais se vêem presas desde muito cedo enquanto suas escolhas foram sendo influenciadas pela história que tiveram, pautadas na ideologia vigente. É preciso que se libertem, que assumam suas vidas enquanto donas do próprio destino.

Considerações finais

A prostituição é um fenômeno complexo que pode se apresentar de diferentes formas e possuir trajetórias distintas. O presente trabalhou buscou delinear a trajetória de vida de profissionais do sexo de baixa renda que apresentam determinados pontos em comum ao longo de suas histórias. Foi possível apontar certos aspectos psicossociais que perpassam as histórias das mulheres participantes da pesquisa de forma que gera certos tipos de subjetivação. Assim, estes aspectos moldam a forma destas mulheres de ver o mundo e de se relacionar com ele. Portanto, cada aspecto internalizado ao longo da vida destas mulheres as forma enquanto sujeito e resulta em determinadas opções de como dar continuidade a sua vida.

A exclusão e desigualdade social ao longo da vida destas mulheres as influenciaram a seguir por certos caminhos e optar por certas escolhas, gerando sofrimento psíquico de diversas maneiras. A vivência na prostituição marcada por vulnerabilidade social gera tipos de subjetivação que faz com que o estigma seja aumentado e reforçado por elas próprias, que repudiam sua profissão e muitas vezes a si mesmas. As contradições do mundo capitalista reforçam a necessidade da busca por um dinheiro rápido, visto que faz promessas de ascensão sem dar os meios possíveis para isso. Estratégias alternativas são encontradas para subsistência e para concretizar o poder de consumo. Portanto, observa-se que contextos de exclusão provocados pelo modo de produção vigente, o capitalismo, gera o sofrimento ético-político, o qual não é legitimado e percebido como tal. Acontece no cotidiano de ambientes marcados pela vulnerabilidade, ao não conseguirem assumir plenamente sua liberdade, ao não poderem de fato escolher os seus destinos. São presas a um contexto de desigualdade social sem possibilidades de ascensão e, muitas vezes, nem mesmo de subsistência, caso apresentado desde a infância pelas profissionais do sexo aqui citadas.

Apesar de estarem inseridas em um determinado contexto social e histórico que perpassam por certos aspectos psicossociais, o sujeito não é passivo no processo de subjetivação. Ele não age apenas de acordo a estímulos internos, mas provocam reações únicas, e apesar de serem encontrados pontos em comum nas histórias aqui apresentadas, cada mulher vive e experiência os acontecimentos de forma distinta e singular. E muito mais do que apenas a reagir ao mundo externo, as profissionais do sexo participantes da pesquisa assumem sua liberdade e optam pela saída da prostituição. Embora a decisão de saída não seja fácil e não sendo subsidiada por políticas públicas educacionais e de incentivo à entrada no mundo formal de trabalho. Restam às ações assistencialistas, comumente de cunho religioso, a fornecer a elas o apoio que o Estado não forneceu.