Jovens indígenas que cumprem medida socioeducativa de internação em Mato Grosso do Sul – Brasil

Silvia Mara Pagliuzo Muraki 
et Sonia Grubits 

https://doi.org/10.25965/trahs.558

Este estudo tem como objetivo proporcionar uma reflexão sobre as percepções dos educadores a respeito do processo de ensino aprendizagem dos adolescentes indígenas Guarani Kaiowá, que cumprem medida socioeducativa de internação no interior de Mato Grosso do Sul – Brasil. Esses adolescentes, por cometerem atos infracionais, ficam internados na instituição por tempo indeterminado. Em muitos casos até 3 anos, que é o máximo permitido. Eles participam de aulas na instituição. Este estudo é parte de um projeto de doutorado1 em Psicologia da Saúde2. Partimos do pressuposto de que os adolescentes indígenas internados na Unidade Educacional de Internação (UNEI)passam despercebidos por muitos operadores do sistema, que desconhecemounegligenciam sua cultura, seus costumes e seus direitos. Se constatou que um dos principais dificultador da aprendizagem está relacionado com o uso do dialeto indígena guarani. Busca-se com esse estudo respostas que possam contribuir para a não violação de direitos desses adolescentes, bem como, posteriormente, subsidiar a criação de políticas públicas educacionais que atendam, de modo mais específico, os adolescentes indígenas autores de atos infracionais que cumprem medida socioeducativa de internação e se encontram invisíveis nas estatísticas digitais e à margem das políticas públicas.

This survey seeks to propose a reflection on the perception of educators regarding the teaching learning process of Guarani Kaiowá indigenous adolescents under socio-educational committal measure in inner Mato Grosso do Sul – Brazil. These adolescents stay in custody indefinitely for committing infractions. Many of these people stay for 3 years, which is the longest they can do. They take classes in the institution. This survey is part of a Health Psychology doctoral program. We assume the indigenous adolescents doing time at Unidade Educacional de Internação (UNEI) go unnoticed by a number of system operators, who are not aware or neglect their culture, customs and rights. We see one of the main obstacles regarding learning is connected to the use of the indigenous dialect guarani. This survey is a tool to find answers that may contribute to the non-violation of the rights of these adolescent interns under socio-educational measure, as well as ultimately subsidize the creation of educational public policies that specifically meet their needs, since they are invisible to digital statistics and on the fringe of public policies.

El objetivo de este estudio es proporcionar una reflexión sobre las percepciones de los educadores acerca del proceso de enseñanza-aprendizaje de los adolescentes indígenas guaraní kaiowá, los cuales cumplen una medida socioeducativa en los centros de internación en el interior del Estado de Mato Grosso do Sul, Brasil. Estos adolescentes, por haber cometido actos infracciónales, se quedan internados en la misma institución, por un tiempo indefinido y, muchas veces, llegan a permanecer hasta 3 años, que es lo máximo permitido. Y ahí, enel centro de internación participan de las clases. Este estudio es parte de un proyecto de doctorado en Psicología de la Salud, del cual partimos de la suposición que los adolescentes indígenas internados en la Unidad Educativa de Internación (UNEI), pasan desapercibidos por muchos operadores del sistema, siendo desconocidos o no se interesan por sus costumbres culturales y sus derechos. Se constató que uno de los principales dificultadores del aprendizaje está relacionado con el usode su lengua indígena guaraní. Así, con este estudio, se buscan las respuestas que puedan contribuir a la no violación de los derechos de estos adolescentes, así como, posteriormente, subsidiar a la creación de políticas públicas educativas que atiendan, de manera más específica, a los adolescentes indígenas que son autores de actos infracciónales y que cumplen con una medida socioeducativa en los centros de internación, siendo invisibles a las estadísticas digitales y quedando al margen de las políticas públicas.

Sommaire

Texte intégral

Introdução

Este estudo tem como objetivo proporcionar uma reflexão sobre as percepções dos educadores, no processo de ensino aprendizagem dos adolescentes indígenas Guarani – Kaiowá que cumprem medida socioeducativa de internação numa UNEI no interior de MS. Desta forma, busca-se, com esse estudo, respostas que possam contribuir para a não violação de direitos desses adolescentes, bem como, posteriormente, subsidiar a criação de políticas públicas educacionais que atendam, de modo mais específico, os adolescentes indígenas autores de atos infracionais que cumprem medida socioeducativa de internação.

Os adolescentes indígenas, autores de atos infracionais, passam despercebidos perante o Estatuto da Criança e Adolescente - ECA. Eles têm estado quase sempre à margem das políticas públicas e invisíveis nas estatísticas digitais. Essa lei não prevê, até a data de hoje, nenhuma orientação sobre os adolescentes indígenas que estão em conflito com a lei, bem como nenhuma normativa de que os adolescentes indígenas devam ser encaminhados às Unidades Educacionais de Internação (UNEIs), nomenclatura institucional recebida no Estado de Mato Grosso do Sul (MS) - Brasil. Embora o ECA contemple o princípio de respeito à diversidade cultural das crianças e adolescentes brasileiros, tem gerado muitas vezes conflitos e preconceitos na sua aplicação junto aos povos indígenas, em lugar de garantir a sua proteção e o respeito a sua diversidade.

Ao longo da história da sociedade, as crianças e adolescentesmuitas vezestiveram seus direitos violados. Na década de 1980, por influência de âmbito internacional, surgiram vários movimentos que lutaram pela garantia de seus direitosno Brasil. E entre esses, o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), formados por juristas e sociedade civil, efetivaram a proposta da primeira lei que garantisse, de fato, esses direitos.

O resultado de todo esse movimento incorreu na criação da Lei Federal n.8.069, em 13 de julho de 1990, que originou o Estatuto da Criança e do Adolescente(ECA), o qual elevou o Brasil, em termos legislativos, a um patamar de país mais desenvolvido no que se refere aos direitos da criança e do adolescente (Souza, 2013b). Éconsiderado uma das principais conquistas do direito infanto-juvenil no Brasil;incorpora os postulados constitucionais de absoluta prioridade na garantia dos direitos à vida, àsaúde, àalimentação, àeducação, ao lazer, à profissionalização, àcultura, á dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.Trouxe a proposta de promover um olhar à subjetividade do adolescente, autor de atos infracionais, de forma a transformar o encontro do adolescente com a lei (Heleno e Ribeiro, 2010).

O ECA,visa garantira proteção integral dos direitos da população infanto-juvenil e, em seu art. 2° passa a considerar adolescente a pessoa entre doze e dezoito anos incompletos e no art. 103,considera ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal. Apresenta uma compreensão de adolescente infrator: aquele que comete uma conduta tipificada no Código Penal Brasileiro, estando sujeito à imposição de penas-sanções regidas pelo ECA, adequadas à condição de cada adolescente infrator e que visem a sua reinserção no convívio em sociedade. (Miranda, 2013).

O ato infracional, quando cometido, deve ser apurado pela Delegacia da Criança e do Adolescente, a qual compete encaminhar o caso para o Promotor de Justiça e, posteriormente, ao Juiz, autoridade competente que poderá aplicar uma das seis medidas socioeducativas. No meio aberto podem ser aplicadas:a) advertência;b) obrigação de reparar o dano; c) prestação de serviços à comunidade;d) liberdade assistida. No meio fechado aplicam-se:a) inserção em regime de semiliberdade; b) internação.

A medida socioeducativa de internação é a medida mais grave; é aplicada quando não houver nenhuma outra medida mais adequada. O período de internação é considerado indeterminado e pode ocorrer entre um dia eaté no máximo três anos. Nunca deve exceder a três anos e deve ser cumprida em entidade exclusiva para adolescente. A liberação será compulsória quando o jovem completar vinte e um anos. O Estado, por meio da aplicação das medidas socioeducativas, tem a função de proporcionar acompanhamento psicológico eficiente e capaz de desenvolver uma perspectiva de futuro melhor.

Ainda que o ECA utilize a nomenclatura adolescente, existem controvérsias sobre o uso desse termo, especialmente quando se refere às culturas indígenas. Segundo a UNICEF (2014), alguns povos indígenas não usam o termo adolescente por não identificarem essa fase, utilizam o termo “jovem”. Entretanto, no contexto judicial,esses adolescentes indígenas são tomados, na escrita e na fala, como sujeitos jurídicos e, por isso,assumiremos essa nomenclatura adolescente de forma técnica e não pela conotação cultural do termo.

I. Populações Indígenas Guarani- Kaiowá:aspectos históricos e perspectivas atuais.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em julho de 2017, estimou que o Brasil tem 207,7 milhões de habitantes e uma taxa de crescimento populacional de 0,77%. As capitais mais populosas são: São Paulo com 12,1 milhões de habitantes seguida pelo Rio de Janeiro com 6,5 milhões e, em terceiro lugar, Brasília com cerca de 3 milhões. A capital de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, está em décimo sexto lugar, com 874.210 habitantes. Dourados é a segunda maior cidade desse Estadocom 218.069e concentra a segunda maior população indígena do Brasil. (Brasil, 2017).

Note de bas de page 2 :

Observa-se que os dados quantitativos referentes a população indígenas podem sofrer pequenas variações, entre os órgãos responsáveis por apresentarem diferenças com relação as variáveis analisadas.

O Censo brasileiro, em 2010, revelou que 896.917 pessoas se declaravam ou se consideravam indígenas2 e destacou um grande percentual de indígenas vivendo nas áreas rurais. OBrasil é visto, por esses dados, como um país com expressiva diversidade indígena, embora corresponda a somente 0,4% da população total. Na análise da distribuição espacial dos autodeclarados indígenas revelada poresse Censo, verificou-se que a Região Norte e aAmazônia mantêm historicamente a prevalência de indígenas, com 37,4% dos autodeclarados.O Estado do Amazonas possui 168 680indígenas eficou em primeiro lugar, considerando-sea população indígena autodeclarada.

Note de bas de page 3 :

É um documento administrativo, e não substitui a certidão de nascimento civil e os demais documentos básicos.

Mato Grosso do Sul possui a segunda maior população indígena do país; atualmente se estima uma população de 73 295. Destes, 72,5%, vivemem terras indígenas,enquanto 24,5% vivem fora dessas terras. (Brasil, 2012). Foi observado equilíbrio entre os sexos para o total de indígenas, para cada 100,5 homens, há 100 mulheres.Dentro das terras indígenas é predominante a presença masculina com 51,6%, enquanto a feminina predomina fora. Quanto à taxa de alfabetização dos indígenas de 15 anos ou mais de idade, revelou-se abaixo da média nacional, pois nas terras indígenas 32,3% ainda são analfabetos. Quanto ao índice de natalidade registrou-se um aumento, de modo geral, com mais indivíduos de até 10 anos. Segundo o Registro Administrativo de Nascimento de Indígena - RANI3, fornecido pela Fundação Nacional do Índio, a Região Centro-Oeste do país contribuiu de forma significativa para o crescimento da população indígena.

Das três etnias mais populosasdo país destacam-se: a Tikúna com 46.045 indivíduos; os Guarani Kaiowá com 43 401 e os Kaingang com 37.470. Em Mato Grosso do Sul existem sete etnias: Terena, Kadiwéu, Guató, Ofayé-Xavante, kinikinawa, Atikum e Guarani (Kaiowá e Nhandeva). A maior parte dos indígenas das etnias vive em condição de Reserva(IBGE,2010).

Note de bas de page 4 :

Entretanto, no que diz respeito aos números totais de língua e etnia, há a necessidade de estudos linguísticos e antropológicos mais aprofundados, pois algumas línguas declaradas podem ser variações de uma mesma língua, assim como algumas etnias também podem ser subgrupos ou segmentos de uma mesma etnia. (IBGE-indigena-2010).

Com relação à língua,os resultados do Censo (2010)demonstram haver um total de 305etnias falantes de 2744 línguas e dialetos distintos, distribuídos em 80% dos municípios brasileiros. Também revelou que um total de 37,4% dos indígenas de 5 anos ou mais falam uma língua indígena. O percentual de indígenas falantesda língua indígena no domicílio aumentou para 57,3% quando consideramos somente aqueles que vivem dentro das terras indígenas; da mesma forma aumentou para 28,8% o percentual daqueles que não falam o português. Essa característica confirma o importante papel desempenhado pelas populações indígenas no tocante às possibilidades de permanência de suas características socioculturais e estilos de vida quando permanecem juntos.

Note de bas de page 5 :

Cartilha: Povo Guarani grande povo (s.d) :http://www.djweb.com.br/historia/arquivos/cartilha02.pdf

De acordo com a Cartilha Povo Guarani Grande Povo5(s.d) “O primeiro dicionário da língua Guarani foi escrito no ano de 1639 pelo padre Antonio Ruiz Montoya,publicado em Madrid, com 814 páginas e traz cerca de 8100 palavras”. A publicação que traduz para o castelhano recebeu o nome Tesouro da Língua Guarani por ser uma das línguas indígenas mais faladas em todo continente. Segundo IBGE – Censo de 2002, 60% da população, cerca de 3 milhões de pessoas, têm o Guarani como sua língua principal.

Segundo a UNICEF (2014:106) “Os Kaiowá-Guarani formam parte do tronco linguístico tupi guarani que compreende três subgrupos: Kaiowá, Nhandeva e M´Byá. Estão localizados no Sul de Mato Grosso do Sul e no Paraguai”. Os territórios tradicionais Kaiowá passarampor desestruturaçõesentre os anos de 1915 e 1925 quando o Serviço de Proteção aos Índios(SPI) sugeriu a criação das reservas indígenas.Nesse momento desconsideraram os fatores sociais, cosmológicos, territoriais e ambientais que direcionama forma de vida dessa etnia(Corrado e Crespe, 2013).

Aproximadamente 44 mil indígenas pertencem às etnias Guarani-Kaiowá e Ñandeva. Grande parte desta população está distribuída em oito reservas/postos indígenas. Uma parcela menor está assentada em parte dos territórios reocupados que se encontra em processo de identificação, demarcação e regularização fundiária desde as décadas de 1980, 1990 e 2000. Segundo o mesmo autor, oito grupos de Guarani e Kaiowá expulsos de sua terra tradicional encontram-se acampados à margem de rodovia federal (BR) e seis grupos em territórios antigos, aguardando identificação e reconhecimento oficial.

Pesquisadores da situação indígena no Brasil salientam a complexidade do tema quando se trata de delimitar a existência de acampamentos. Segundo Mota (2015), podemos encontrar acampamentos em Reservas Indígenas e nas periferias de cidades como Dourados. Também marcam presença nas rodovias, nas estradas vicinais e nas fazendas, entre outros espaços. A autora salienta que:

“[...] a condição de reserva ou acampamentos-tekoha são produtos do colonialismo, do processo de desterritorialização Guarani e Kaiowá de seus territórios étnicos ancestrais e a reterritorialização precária nas reservas. Resistir à condição de Reserva é rebelar-se com o histórico colonialista das políticas indigenistas do Estado brasileiro, que desde o início do século XX, através de órgãos governamentais, tentaram realizar a integração e assimilação do indígena à sociedade nacional. O objetivo era aculturar os indígenas, transformá-los progressivamente em “brancos”, trabalhadores e úteisà nação”. (Mota, 2015: 7).

Segundo a mesma autora, a ênfase se dá aos assentamentos situados na região de Dourados, onde são encontrados 10 acampamentos indígenas, constituindo a região com maior número de acampamentos do Estado. Nesses acampamentos há um caráter reivindicatório de tekoha. Um tekoha é umespaço físico onde os Kaiowá se organizam e reproduzem relações sociais com sua parentela próxima, buscando atingir o “teko porã”, que significa “modo justo, correto e belo de viver” (Pereira, 2004:129).

As terras indígenas de Dourados são compostas pelas aldeias Jaguapiru, Bororó Panambizinho e Passo Piraju. As aldeias Jaguapiru e Bororó estão situadas na reserva indígena Francisco Horta Barbosa e possuem uma expressiva concentração demográfica.Essa situação de confinamento propiciou o surgimento de acampamentos indígena nas periferias da cidade e reivindicações de ampliação e demarcação de novas áreas.(Souza, 2011).

Note de bas de page 6 :

Serviço de Proteção ao Índio

As Reservas Indígenas de Dourados, Caarapó, Aldeia Limão Verde, Taquapery, Aldeia Porto Lindo, Sassoró, Pirajuí e Amambaí foram criadas no início do século XX pelo SPI6 entre os anos de 1915 a 1928. “Estas tinham como objetivo abrigar os indígenas que estavam sendo expulsos de seus territórios étnicos ancestrais por projetos de colonização, elas fizeram parte de um ideário civilizatório de ocupação dos espaços vazios do interior brasileiro” (Mota, 2015: 418).

Note de bas de page 7 :

No 38º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais –ANPOCS.

Segundo Pereira7 (2014) a superpopulação na RID, se configura dentro de um processo histórico que somado a perda de territórios de muitas comunidades, acolhimento na área da RID ecentralização de serviços indigenistas são fatoresque contribuíram parasua atual configuração demográfica, política e sociocultural. A redução do espaço produtivo e profundas transformações na relação com o território, interferindo na economia tradicional. Neste sentido,o impacto do confinamento sobre os Guarani e Kaiowá tende a inviabilizar o modo de vida tradicional.

“Esses critérios que orientaram, efetivamente, as demarcações das reservas indígenas destinadas aos Kaiowá e Guarani no atual Mato grosso do Sul deram margem a vários equívocos, sendo o principal deles, e que persiste até hoje, perpassando as polêmicas em torno das atuais disputas pela retomada de terras por parte dos índios, o de caracterizar como terras indígenas apenas aquelas demarcadas como reservas e não as de ocupação tradicional, tal como são definidos nos textos constitucionais, especialmente os de 1988”. (Siqueira e Brand, 2004:2).

As reservas foram conceituadas por Antônio Brand (1993) como área de confinamento, uma vez que essa população toda foi retirada de seus territórios e transferida para pequenos espaços que não levaram em consideração a cultura, os costumes e as tradições do povo Kaiowá. Segundo esses autores, a reserva foi criada para liberar as terrasindígenas ao mercado agropastoril.

II. Reserva Indígena de Dourados RIDe as condições de vida dos Guarani-Kaiowá.

A RID foi criada pelo SPI, com o Decreto Estadual 401 de 1917. A área foi legalizada como patrimônio da União em 1965. Essa área foi, inicialmente, reservada aos índios da etnia Kaiowá e está situada nas cabeceiras das bacias dos córregos Laranja Doce e São Domingos, hoje compreendida pelos atuais municípios de Dourados e Itaporã.

Para Brand(1993apud Corrado(2013:132), as atuais condições de vida dos Kaiowá:

“[...]são caracterizadas pela vida em reservas superpovoadas, longe das matas e dos rios e próximas à cidade, diminuindo o espaço para as famílias plantarem suas roças, fazendo com que sua forma de subsistência quase desapareça. Tendo esse cenário como pano de fundo, não se pode descartar que a difícil situação vivenciada pelos Kaiowá tenha sido uns dos motivos que levaram os grupos a acamparem, visando à recuperação do que eles consideram como seus territórios tradicionais ou tendo como objetivo “levantar seu tekoha”.

De acordo com a Cartilha Povo Guarani, Grande Povo, o conceito de propriedade para os Guarani é muito diferente do que se entende na sociedade envolvente. O povo Guarani não se considera dono da terra, nem daquilo que vive nela. Entendem ter recebido de Deus o direito ao usufruto da terra, que deve ser feito de forma respeitosa, equilibrada e limitada, vigiado pelos Deuses e por outros Guarani. Sem se considerar donos das terras, os Guarani respeitam entre si o domínio territorial familiar em cada Tekoha, por isso não invadem ou aproveitam de seus recursos sem a devida permissão.

Para o doutor e índio Kaiowá Benites (2012), uma das grandes dificuldades é explicar o que significa território segundo as tradições de seu povo. “A terra é nosso parente. E a terra fornece determinado tipo de alimento e a gente tem que cuidar dela. É um retorno que ela nos dá”, explica Benites (2012), que estuda o movimento político-religioso contemporâneo dos Guarani Kaiowá.Relata que na lenda do seu povo, Tupã precisou enfrentar os espíritos maléficos e, para isso, foi conversar com eles. Alguns ele conseguiu convencer com a palavra, com outros, ele precisou guerrear. Por isso, criou a flecha para se defender e proteger a família, e o fogo para afastar esses mesmos espíritos maus. Segundo ele, isso mostra como o povo guarani é bom de lábia, mas quando necessário, pode ser violento.

O povo Guarani é muito religioso e admite muitas atividades religiosas. Dependendo das circunstâncias (falta ou excesso de chuva durante a coleta, dentre outros), os rituais são realizados cotidianamente, na maioria das vezes ao início da noite. Os Ñanderu, lideranças religiosas, conduzem esses rituais. Começam a cantar o canto grande, um texto que ninguém pode interromper, a comunidade repete cada frase, acompanhada pelo Takuapu e Mbaraka.

Note de bas de page 8 :

Wikinativa/Kaiowá. https://pt.wikiversity.org/wiki/Wikinativa/Kaiow%C3%A1

Por seremum povosignificativamente espiritual, a maioria das comunidadespossui um espaço para oração, e um líder religioso cuja autoridade é baseada em prestígio, em vez de poder formal. A base da religião dos guarani-kaiowá é a natureza, o nome de seu Deus é Ñane Ramõi que significa "Nosso grande avô eterno".Nos rituais, o espírito de Deus age por meio dos rezadores para fazer o bem e realizar a cura do povo da tribo. Nos rituais, eles usam uma espécie de chacoalho chamado Mbaraká que é usado para tirar energias ruins e espantar espíritos maus8.Cantar na própria língua dá força espiritual e corporal que ajuda na manutenção da comunicação com as divindades. Sem dançar e cantar a vida neste mundo estaria em risco. Como os deuses tocam seus instrumentos para fazer existir a Terra, os seres humanos também devem acompanhar. Todos fazem parte da mesma orquestra.

Os povos Guarani são agricultores. “No mito de criação, Tupã fez o milho e a mandioca e, desde então, onde tem Guarani, tem plantação de batata, milho, mandioca. Até hoje. Isso está na memória” (Benites, 2012:7).E, segundo suas tradições, não é possível viver distante de um parente. "Você não pode ser índio fora da sua terra", explica ele. Suas casas ficam dispersas, de forma espalhadas e distantes umas das outras.

Dentre as várias condições sentidas pelo povo e a riqueza de suas culturas sãopontuadas as falas que “esses povos são portadores de uma cultura florestal e lidam tradicionalmente com atividades de subsistência por meio da caça, da coleta, da agricultura e em menor quantidade, da pesca” (Schaden, 1964, apud Santos e Maas, 2014:2).

Na economia Guarani, o princípio da solidariedade com o próximose manifesta de forma coletiva, todos trabalham juntos e todos são donos de tudo. O que existe é uma obrigação moral de ajudar sempre que o outro necessitar, de receber ajuda quando precisar e participar com alegria do trabalho do outro sempre que o outro necessite. Esta ajuda recíproca é chamada de Jopói. A generosidade é uma das virtudes mais importantes na sociedade Guarani e uma pessoa egoísta, que acumule bens, não compartindo aquilo que produz com as demais, é criticada e marginalizada

Segundo Santos e Maas (2014:4) ao que se refere à terra:

“Os Kaiowa têm um contato cosmológico com ela, de tal maneira que a busca pela Terra Sem Males, presente em sua religião, aproximou-se da luta política de reivindicação de suas próprias terras, onde possam exercer, como em seu “paraíso”, em uma vida sem males e sem pobreza,

Dentre essas, cantar na própria língua dá força espiritual e corporal que ajuda na manutenção da comunicação com as divindades. Sem dançar e cantar a vida neste mundo estaria em risco. Como os Deuses tocam seus instrumentos para fazer existir a Terra, os seres humanos também devem acompanhar. Todos fazem parte da mesma orquestra.

Segundo Pereira (2011:11), “A despeito da complexidade da população recolhida nessa área de acomodação, é possível dizer que a população da Terra indígena de Dourados compõe um sistema de interação permanente, marcado por relações mais ou menos frequentes entre seus moradores”. A ausência de segurança pública pode ser considerada como um grande fator de risco para a vida na reserva, já que o índice de violência é considerado alto.

No que se refere à agressão, o diagnóstico municipal de 2011 mostra que 97% das vítimas de todas as formas de violência e de suicídios nas aldeias de Dourados são menores de 21 anos. Dentre os tipos de violência destacam-se: atropelamentos, espancamentos, estupros, ferimento por armas de fogo e ingestão de veneno, dentre outros.

E, segundo dados da UNICEF (2014), dos assassinatos ocorridos em Mato Grosso do Sul em 2009, 18% ocorreram na RID. Por estar localizada a 100 km da fronteira com o Paraguai, está imersa em processo de tráfico de drogas e armas e apresenta alto índice de migração de outras aldeias do Estado por ser ponto de referência e contar com escolas, hospitais e determinados benefícios sociais. É considerada a mais pobre, pois possuir infraestrutura mínima, sem saneamento básico e com insuficiente instalação de água e eletricidade.

Observa-se que há um descaso com a população indígena de MS, especialmente coma RID. O processo histórico de redução territorial, a superpopulação nestas aldeias tidas como confinamentos, temcontribuído para inúmeras mudanças no modo de vida desse povo.E tais mudanças desencadearam inúmeros problemas. Para a UNICEF (2014:126), “a Reserva Indígena de Dourados se encontra extremamente fragmentada do ponto de vista político, como resultado da histórica divisão interna entre as etnias, ao que se soma a forte influência das organizações governamentais e não governamentais na gestão da vida desta comunidade”.

Acrescente-se aos problemas sociais que assolam a RID, os altos níveis de suicídios entre jovens. Segundo estudo da Organização das Nações Unidas (ONU, 2009), os suicídios dos jovens indígenas retratam um contexto de discriminação, marginalização, colonização traumática e perda das tradicionais formas de vida. O número de suicídios de 2000 a 2009, foi de 87 pessoas (Souza, 2011). Outro índice alarmante segundo Heck e Machado (2011), o índice de homicídiosnas aldeias de Dourados é de 145 assassinatos para cada cem mil habitantes, enquanto que no Iraque o número é de 93 para cada 100 mil habitantes.

Representantes da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos deputados estaduais e federais, ao visitarem em 2015 duas reservas indígenas Guarani-Kaiowá, relataram encontrar muita pobreza, miséria e tristeza, mas um povo valente e carinhoso.Para os consultores da ONU, presentes em MS também em 2015, a questão Indígena no Brasil é um problema internacional.

Uma análise dos jovens indígenas que vivem na RID mostra que os adolescentes indígenas Guarani Kaiowá têmuma aberta circulação entre a reserva e a cidade e são, “marcados, por um lado, pela discriminação dos não índiose, por outro,por uma convivência intensa com a cidade, esses jovens negociam, o tempo todo, suas identidades. [...] constroem e reconstroem com vistas à sobrevivência cultural”(Alcântara, 2007:73).

III. UNEIS: Aspectos históricos e atendimento ao adolescente indígena e não indígenas em conflito com a lei em Mato Grosso do Sul.

A história do atendimento ao adolescente em conflito com a lei em Mato Grosso do sul nos remete a lei nº 6697 de 10.10.1979, o “Código de Menores”, que dispunha sobre a assistência, proteção e vigilância de menores até 18 anos de idade que se encontravam em situação irregular, e entre 18 e 21 anos, nos casos expressos na lei. Estabelece, em seu artigo 41, na falta de estabelecimento adequado que os adolescentes em cumprimento de Medida Socioeducativa de Internação deveriam ser atendidos no Departamento do Sistema Penitenciário.

Em 04 de março de 1.988, por meio da Portaria DSP/001/88, foi criado o Estabelecimento de Guarda e Assistência para Menores Infratores (EGAMI), destinado à custódia de menores do sexo masculino sob a égide do Departamento do Sistema Penitenciário (DSP), ligado à Secretaria de Justiça do Estado. Entre 1.988 e 1.989 foram implantados EGAMI nos municípios de Corumbá, Dourados, Três Lagoas e Ponta Porã.

Inicialmente, foi criada a Casa de Guarda e Assistência ao Adolescente (CGAA), referência utilizada no Decreto nº 5.921, de 03 de junho de 1.991 – publicado no D.O 3.064 de 04/06/1991. Em 1992, foi criado o Centro de Triagem do Menor Infrator (CETREMI) com o objetivo de executar triagem e diagnóstico para o atendimento aos adolescentes infratores, que posteriormente eram encaminhados à “Casa de Guarda”.

Note de bas de page 9 :

Palestra de Ex –Coordenador de Medidas Socioeducativas de Mato Grosso do Sul, neste período.

Em decorrência do colapso do sistema de execução das internações, uma nova equipe é contratada com o desafio de estabelecer as condições básicas para o desenvolvimento da aplicação das Medidas Socioeducativas9. Em 2.001 é criado um Fórum com objetivo de estudar e reordenar as Medidas socioeducativas.Uma das deliberações foi a mudança da designação de CGAA para Unidade Educacional de Internação (UNEI) decreto nº 10.218 de 24/01/2001- art.5º) com capacidade de atender 24 internos, porém, foi inaugurada com 35 adolescentes. Nesta data, 11 adolescentes que estavam incorretamente internados no Presídio local foram transferidos para a UNEI.

Com nova reforma administrativa, em 2003, a SASCT passa a se chamar Secretaria de Estado de Trabalho, Assistência Social e Economia Solidária (SETASS). Nesse período, a execução das “Medidas” atinge seu ápice no sentido organizacional e o MS passa a ser o primeiro Estado da Federação a elaborar um “Programa Estadual de Atendimento Socieducativo”, elaborado por uma rede composta pelo Ministério Público, Poder Judiciário, Defensoria Pública e Ongs.

Em breve levantamento realizado em 2017, no Fórum, na Promotoria da Infância e Juventude e na Defensoria Pública de Dourados constatou-se que não há registro oficial da presença de adolescentes indígenas que cumpriram - MSI em Dourados MS, bem como a inexistência da sistematização de dados que pudessem identificar esses adolescentes.A invisibilidade dos registros de adolescentes indígenas, constatada pela inexistência desta identificação, nos órgãos que operam os direitos, nos levou a buscar dados na UNEI de Dourados.

Os primeiros registros de internações de adolescentes indígenas do gênero masculino em Dourados e região datam de 1990 e daí adiante. Porém, as identificações dos adolescentes indígenas não constavam no livro de registro; então, fez-se necessária à consulta de todas as pastas. Verificou-se que haviam sido incineradas as pastas de documentos dos internos entre julho de 1990 e outubro de 2004. Desta forma, só foi possível identificar os registros de internações de adolescentes indígenas a partir de outubro de 2004.

A Lei 3.581, de 21 de novembro de 2008, transferiu a responsabilidade da Gestão de Medidas Socioeducativas à Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública. Em 2009, por meio do Decreto 12.710, foi criada a Superintendência de Assistência Socioeducativa que tem como missão institucional coordenar, administrar e supervisionar o atendimento das medidas socioeducativas de semiliberdade, internação provisória e de internação.

A implantação da política socioeducativa foi sendo repensada visando o cumprimento do ECA tendo, na publicação do documento político e técnico (Lei n. 12.594), de 18 de janeiro de 2012 denominado Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), a indicação dos parâmetros pedagógicos e arquitetônicos, além do desenho de um sistema de atendimento ao adolescente em medida socioeducativa, enquanto “um conjunto ordenado de princípios, regras e critérios, de caráter jurídico, político, pedagógico, financeiro e administrativo, que envolve desde o processo de apuração de ato infracional até a execução de medida socioeducativa” (BRASIL, 2006:22), e inclui os sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como todos os planos, políticas e programas específicos de atendimento ao adolescente em conflito com a lei.

O governo federal instituiu em 12 de janeiro de 2015 a Escola Nacional de Socioeducação (ENS) e criou uma política de formação continuada aos profissionais que atuam direta ou indiretamente no SINASE (Resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) nº 119/2006 e Lei Federal nº 12.594/2012). A ENS é vinculada à Coordenação Geral do SINASE da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

Processo Educacional do adolescente indigena em Privação de Liberdadeem MS.

Neste estudo o nosso olhar é para os adolescentes indígenas das populações Guarani-Kaiowá que estão participando do processo ensino aprendizagem em uma escola, que funciona dentro de uma UNEI, no interior do MS. O cenário pesquisado diz respeito a percepção que tem os professores e coordenadores sobre os adolescentes indígenas matriculados em escolas que funcionam dentro da UNEI, onde são aplicadas as medidas socioeducativas de internação aos adolescentes indígenas e não indígenas, autores de atos infracionais. Neste período de cumprimento da medida ficam “internados” para que possam passar por um processo de re (socialização), com base no (ECA, 1990) e SINASE (BRASIL, 2006)

Desde 2001as Uneiscontam com Diretor, psicólogos, odontólogos, assistentes sociais, agentessocioeducadores, técnicos em enfermagem, professores, dentre outros. Segundo Levantamento Anual SINASE (2014), no Brasil, existem 448 unidades socioeducativas para os casos de privação de liberdade; apresenta 25.428 adolescentes em restrição e privação de liberdade para 26.913 atos infracionais em todo o país. Cabe destacar que o número de atos infracionais superior ao número de adolescentes e jovens em restrição e privação de liberdade se dá pela atribuição de mais de um ato infracional por adolescente. Em números abso­lutos, 19.595 de adolescentes estavam em privação de liberdade. (Brasil, 2017). Cabe ressaltar a não visibilização dos adolescentes indígenas que cumprem medida socioeducativa em todo Brasil não aparecem em nenhuma estatística digital.

Note de bas de page 10 :

De acordo com a Secretaria de Estado Justiça e Segurança Pública -2017

Em MS, contamos com quatro UNEIS10 na Capital, Campo Grande, duas em Dourados e Corumbá, uma em Ponta Porã e outra em Três Lagoas.  Pelo decreto, as Uneis são classificadas por categoria, considerando a sua estrutura administrativa e operacional, e o quantitativo de adolescentes em cumprimento de Medidas Socioeducativas de internação, e internação provisória e a semiliberdade.

Considerando a execução das medidas socioeducativas, o programa socioeducativo se propõe a promover ações que potencializem o desenvolvimento educacional dos adolescentes, seja na reorganização da trajetória escolar ou na inserção em programas de educação profissional, de esportes, cultura dentre outros. Em relação às práticas socioeducativas, o referido documento apontou para a ne­cessidade de busca da “superação da situação de exclusão vivida pelos adolescentes, de ressignificação de valores, [...] uma vez que as medidas socioeducativas possuem uma dimensão jurídico-sancionatória e uma dimensão substancialmente ético-pedagógica” (BrasiL, 2006: 46)

IV. Metodologia

Note de bas de page 11 :

Este estudo pesquisa (versão preliminar)apresenta uma parte do Projeto de Pesquisa: “A situação dos jovens indígenas em conflito com a lei em MS”.

Este estudo11 foi aprovado pelo Comitê de ética CEP/CONEP sob. Número do parecer:2.318.813. Trata-se de uma pesquisa documental e de campo. Inicialmente, foi realizada uma consulta aos registros e documentos da instituição sobre os adolescentesindígenas. Posteriormente para a coleta de dados utilizou-se a aplicação de um questionário com perguntas abertas e fechadas. A escolha dos informantes da pesquisa recaiu sobre os professores que trabalham na UNEI do interior de MS. Num total de 10 professores que trabalham na UNEI, 8 participaram da amostra pesquisada e dois deles já exerceram o cargo de coordenadores pedagógicos. Constatou-se 7(sete) 87.5% do gênero feminino, e 1(um) do gênero masculino, totalizando 12.5%.

No período da pesquisa, a UNEI contava com 54 (cinquenta e quatro) adolescentes,41 (quarenta e um) ou 76% não indígenas, 13 (treze) 24% adolescentes indígenas. Destes adolescentes indígenas, 6 (seis) ou 46% estavam na faixa etária de 16 e17 anos; 3 (três) 23% entre 14 e 15 anos, 3 (três) 23% acima de 18 anos e 1 (um) 12.5% com 13 anos. Tipo de atos infracionais: 5 (cinco) 38.5% latrocínio 5 (cinco); 38.5% homicídio/tentativa e 3 (três) 23% roubo. Após análise dos processos constatou-se que os atos infracionais foram cometidos dentro da RID, cujas vítimas eram indígenas. Quanto ao tempo de internação 7 (sete) 54% tinham internação entre 1 a 2 anos; 6 (seis) 46 % entre 4 e 11 meses. Quanto a escolaridade: todos estão no ensino fundamental 5(cinco) 38%, estavam entre 1º e 5º ano (séries iniciais); 6 (seis) 46%, entre 6º e 7º ano (intermediário) e 2 (dois) entre 8º e 9º ano (Final).

O questionário foi composto por questões abertas e de múltiplas escolhas para obtenção do perfil dos professores. Foram cinco questões abertas: 1) Em sua opinião quais são as principais dificuldades apresentadas pelos alunos indígenas no processo ensino aprendizagem na UNEI? 2) Como você analisa a participação da família na formação escolar dos alunos indígenas? 3) Como você avalia o processo de ensino aprendizagem dos alunos indígenas? 4)Em sua opinião, quais são os maiores desafios ao trabalhar com alunos indígenas da UNEI? 5)Em sua opinião, a UNEI contribui para a ressocialização dos alunos indígenas?

V. Resultados e Discussão

Em relação ao perfil dos professores da UNEI, os dados coletados demonstram que: 5 (cinco) 62.5 % estão acima de 51 anos; 3 (três) 37.5% estão na faixa etária de 36 e 50 anos. Considerando o tempo de magistério 3 (três) 37.5% dos professores responderam que possuem entre 11 e 15 anos, 3 (três) 37.5% entre 16 e 20 anos e 2 (dois) 25% responderam possuir mais de 20 anos de magistério. Considerando o item ministrar aulas para alunos indígenas da UNEI: 7 (sete) 87.5% responderam ministrar aulas entre 6 e 10 anos e apenas 1 (um) 12.5 % respondeu entre 1 e 5 anos.

Facilitadores e Dificultadores do processo ensino–aprendizagem do aluno indígena privado de liberdade.

Considerando as percepções dos professores pesquisados sobre o processo ensino e aprendizagem dos alunos indígenas da UNEI, foi constatado que são caprichosos, assíduos e, são muito bons em arte de modo geral. São alunos muito dedicados, reconhecem e valorizam o educador, são muito colaboradores, aceitam todas as regras disciplinares educacionais e, mesmo com dificuldades, tentam acompanhar as atividades pedagógicas propostas pelo currículo referencial escolar. “Nas salas de aula os alunos indígenas apresentam boa disciplina”.

Segundo Nascimento (2014: 24):

“Notamos que já se constitui uma regularidade o fato de os alunos verem a escola como um espaço em que poderão garantir um relatório positivo para conquistar a liberdade. Eles não parecem preocupados com o conteúdo que é dado, com o aprendizado para o mercado de trabalho; sua expectativa recai sempre na escola como um espaço físico mediador que se frequenta para demonstrar bom comportamento, disciplina e conquistar a liberdade. Agradam para transparecer submissão ao professor e ao regulamento da Unidade Educacional de Internação”. (UNEI).

Constatamos que um dos grandes desafios desses educadores está em tentar fazer com que os alunos indígenas, por meio da educação, possam aprender de forma efetiva e que possam construir, por meio do aprendizado escolar, um novo projeto de vida e possam se reintegrar na sociedade com possibilidades de aprender o exercício de sua cidadania, longe do contexto dos atos infracionais.

Considerando especificamente o aluno adolescente indígena em sala de sala na UNEI, foi possível observar que os pesquisados foram unânimes em apresentar como principal dificultador da aprendizagem o uso da língua guarani por ser essa a língua materna e a lecionada nas escolas indígenas que funcionam na RID. Também reconhecem que os alunos alfabetizados em escolas bilíngues apresentam menor estranhamento com os processos de ensino e aprendizagem.

Em estudos sobre a percepção dos alunos indígenas sobre o funcionamento das escolas da UNEI, Nascimento (2014:1009) relata que “estudar outra língua produz um efeito de afastamento do sujeito-indígena da sua língua materna, o guarani, o que leva à perda da identidade, já esfacelada, que se desloca pela presença de outra língua e discurso”.

Devido ao fato de não dominarem a língua portuguesa, sofrem preconceito/ discriminação dentro da sala de aula e chegam até mesmo a sofrer Bulling. Acreditam que se deva aos internos não indígenas não aceitarem sua língua e sua cultura.

Nascimento (2014:1010) relata:

“Enfim, os dizeres desses alunos indígenas produzem o efeito de sentido de deslocamento do seu local de origem, e ainda na falta da família e da língua. É como se já não soubesse mais qual língua lhe pertence (português ou guarani), qual falar, ler e escrever dentro da UNEI. Sentem-se excluídos”.

A socialização se configura como um dos complicadores, segundo os entrevistados, por apresentarem outros hábitos e costumes e, por esses alunos pertencentes à cultura indígena não conseguirem interagir de maneira satisfatória com a maioria dos internos que não compartilham da mesma cultura. Ressaltam que, devido às aulas na UNEI ocorrerem em salas mistas com alunos indígenas e não indígenas, há falta de motivação de ambos os grupos. Esse fato corrobora para a restrição de contribuições pessoais, pois os indígenas não gostam de falar da própria cultura e o aprendizado em si acontece de maneira lenta, sem muitos progressos.

Processo de ensino-aprendizagem dos alunos indígenas na UNEI: desafios e possibilidades.

Quando avaliado no processo de ensino-aprendizagem os Guarani-Kaiowá, por terem outro processo de organização social e atribuição daquilo que é exterior da sua cultura, são considerados mais tímidos e se retraem com os novos códigos. Alguns professores reconhecem que o processo de ensino e aprendizagem é diferenciado e que cada aluno tem o seu tempo para aprender.

Contudo, observa-se que o ensino-aprendizagem é realizado de forma parcial devido aos vários fatores como: a falta de frequência diária dos alunos na escola em algumas disciplinas, excesso de timidez, falta de alfabetização em língua portuguesa que provoca dificuldades mais acentuadas, tanto para o aluno aprender quanto para o professor se fazer entender, e, consequentemente, acarreta menor autonomia para o aluno desenvolver suas atividades.

Segundo Nascimento (2014), o rendimento escolar, em geral, sofre constantemente influências internas e externas do espaço educacional. [...] nestas situações, o professor por vezes toma para si o papel da psicologia e/ou do serviço social, de forma a propiciar condições mínimas para as aulas ocorrerem, conforme as prerrogativas do Estado.

Note de bas de page 12 :

Violência simbólica é um conceito social elaborado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu no qual aborda uma forma de violência exercida pelo corpo sem coação física, em que causa danos morais e psicológicos.

Para os pesquisados, o maior desafio é desenvolver uma prática docente coletiva que reconheça a diferença e a diversidade étnica valorizando todos os sujeitos que estão atuando nesse processo. Valorizar os conhecimentos dos alunos indígenas e entender as particularidades desse processo em uma proposta intercultural se faz necessário para eliminar o que para a maioria dos alunos indígenas é uma violência simbólica12, pois eles não se reconhecem nesse processo.

Nas conclusões de Nascimento (2014:1020) sobre as representações dos alunos que frequentam as escolas na UNEI

“Dificilmente eles trazem opinião sobre ela; são falas de efeito generalizante, que apontam para a desmotivação e para a “(não) funcionalidade” da escola: a escola, por ser uma obrigação, não tem sentido para a vida deles; é apenas um meio para alcançar a liberdade. Alguns dizem que não se sentem em condições para avaliar a escola, e há silenciamentos sobre a razão de (não) ir à escola”.

Para alguns entrevistados a escola tende a reproduzir as desigualdades sociais de cor/raça e econômicas de classe, em que as diferenças não são consideradas nos processos de ensino-aprendizagem e o aluno com menor capital cultural passa a sofrer violência simbólica no espaço escolar.

Assim, pensamos que o acesso de alunos de origens distintas, ao se depararem com um currículo que não contempla a sua especificidade, não produz reconhecimento no espaço que está inserido.

A violência simbólica para com alunos indígenas ao encontrarem um currículo que não reconhece os saberes e as práticas culturais das comunidades de origem favorece a sua exclusão do processo escolar. O currículo e a organização escolar, em muitos casos, culminam em um modelo que privilegia os conhecimentos produzidos a partir da acumulação de capital cultural e hábitos produzidos e reproduzidos a partir de uma herança sociocultural burguesa eurocêntrica.

Para Costa (2011:14), em meio a tantas contradições insuperáveis e opções políticas que geram contraste e exclusão:

“O desafio está em vislumbrar como é possível criar condições para que as pessoas em especial vulnerabilidade sejam consideradas como prioridade absoluta, desde sua condição peculiar de desenvolvimento. [...] sua proteção normativa parece depender de uma mudança de atitude social, a qual se reflete na forma de intervenção do Estado”.

Outros pesquisados enfatizam a oportunidade de muita reflexão e possibilidades de inovações pedagógicas na perspectiva de valorizar a diversidade sociocultural e promover uma aprendizagem significativa e contextualizada. É importante a avaliação diagnóstica da fala desses alunos, respeitando suas particularidades culturais de acordo com suas diferentes comunidades e povos, a fim de se tomar uma decisão adequada a cada realidade.

Na percepção dos professores, a escola deve ser plural, reconhecer as especificidades étnicas, sociais e econômicas do seu corpo discente, de modo que favoreça práticas de troca de saberes e descolonização do saber, permitindo o reconhecimento e pertencimento dos alunos na educação. Assim, o ensino e aprendizagem valorizam a escrita e a oralidade dos alunos indígenas, desconsiderando a visão de que esse aluno escreve e fala o português de forma errada, reconhecendo a Língua Portuguesa como a sua segunda língua nos processos de interação e ressignificação da linguagem, observando essa ressignificação a partir de um Português-Indígena.

Dentro do olhar socioeducativo, os educadores são vistos como facilitadores no processo de tomada de decisões e junto com os alunos pensam em ações criativas, solidárias e construtivas para superar os limites existentes nos determinados impasses da ressocialização de forma a criar uma proposta inovadora de ação educativa, com a presença solidária, competente e protagônica de seus alunos (BRASIL, 2006).

Participação da família na formação escolar dos alunos indígenas da UNEI

100% dos professores responderam considerar importante a participação da família, mas que normalmente a família não participa da vida escolar dos alunos indígenas. Alguns pais/responsáveis participam somente nas entregas dos boletins no final de bimestre, o que acaba sendo insuficiente para a formação dos mesmos. De maneira geral, alegaram que algumas famílias participam, mas em menor quantidade quando comparadas aos demais alunos não indígenas. Acreditam que a participação da família com as outras redes que atuam na ressocialização tenha grande importância para a vida desses alunos, rememorando as lembranças e cultivando o desejo pela transformação da sua conduta e que esse diálogo não fuja ao objetivo principal que é o bem-estar do educando.

Segundo Nascimento, Urquiza e Vieira (2011) relatam que as pedagogias indígenas, são constituídas pelos povos, por seus próprios modos, meios, maneiras específicas de ensinar as crianças e adolescentes, de acordo com cada comunidade.

Consegue contribuir a UNEI para a ressocialização dos alunos indígenas?

Segundo os professores pesquisados, o sistema de privação de liberdade para adolescentes dispõe de poucos programas e/ou políticas públicas que favoreçam a ressocialização dos internos de modo geral. Especificamente em relação aos indígenas, não há projetos específicos que os atendam. Acreditam que os indígenas sofram com o preconceito e discriminação dentro das unidades educacionais de internação. Dessa forma, Costa (2011) relata que para a efetivação dos direitos é necessária a construção das possibilidades de reconhecimento do adolescente, em situação de desenvolvimento, de forma a vê-los como cidadãos de direitos e contextualizá-los socialmente e não como objetos do Estado.

Outro professor, de forma otimista, acredita que a educação é importante para criar condições e possibilidades aos adolescentes privados de liberdade que se encontram distante do convívio familiar e da sociedade, pois é por meio da educação, seja ela formal ou informal, que eles se sentirão cidadãos capazes de mudar sua própria história por mais que tenham cometido infrações. Eles devem ter oportunidades de reintegração social e só alcançarão esse objetivo com a educação escolar nas UNEI. Alguns afirmam que a UNEI consegue re (socializar) de forma parcial, pois o sistema poderia investir mais em cursos profissionalizantes.

Segundo os pesquisados, na UNEI são desenvolvidas diversas atividades que propiciam a socialização do jovem em conflito com a lei. E acreditam que as atividades, quando trabalhadas na sua coletividade, são importantes nesse processo. A escola (inserida na UNEI) cumpre o seu papel social de formação de sujeitos atuantes na sociedade. Os professores são mediadores do conhecimento e reconhecem o contexto social, cultural e histórico de cada aluno. O que os aproxima dos alunos é a afetividade. Quando o aluno ganha segurança, vence a timidez e inicia o processo de construção do seu conhecimento.

Um dos professores afirma acreditar que a escola semeia a capacidade individual desses alunos de uma ação independente, realizando suas próprias escolhas para a ressocialização. E, ainda que a capacidade individual de discernimento seja um ponto importante nesse processo, são necessários também mecanismos de atuação em rede que viabilizem esse processo desnaturalização de práticas e atividades viciosas, a fim de que a ressocialização seja efetivada. Há poucas notícias sobre a vida dos alunos quando estão para além dos muros da UNEI.

Uma das professoras que compreende a língua guarani relata que os alunos se sentem mais acolhidos por ela e desta forma estreitam a relação professor/ aluno, fato este que aumenta a afetividade, facilitando o aprendizado. Segundo a professora, sob essas condições surgiram momentos em que os alunos indígenas participaram efetivamente das atividades propostas com bastante empenho, superando as dificuldades na leitura, escrita e interpretação de texto e participaram da produção de poema com tema referente à cultura do MS. Tal poema foi traduzido e gravado em língua guarani e, posteriormente, foi feito um vídeo. Essa atividade foi importante no regaste da autoestima, valorizando-os como sujeitos plenos de direitos e, sobretudo, respeitando-os em sua diversidade cultural.

Contudo, a mesma pesquisada relata que a língua guarani, os preconceitos e a discriminação que sofrem dentro da instituição são grandes entraves no processo ensino e aprendizagem. E que o currículo deveria ser diferenciado, pois a maioria dos professores nem sempre se fazem compreender por não falarem o guarani. Dessa forma sugerem a participação de um profissional tradutor do idioma guarani e/ou professor indígena que possa auxiliar os alunos na comunicação.

Considerações Finais

A pesquisa teve como finalidade trazer as percepções dos professores que atuam com os alunos indígenas na Unei; o estudo mostrou que existemvários entravesque impedem que o processo ensino-aprendizagem aconteça de forma mais plena, dentre eles: os preconceitos, discriminação e por algumas vezes até bulling, que os alunos sofrem por pertencerem a uma outra cultura. Também o excesso de timidez, falta de alfabetização em língua portuguesa tende a provocar dificuldades mais acentuadas, tanto para o aluno aprender quanto para o professor se fazer entender, o que consequentemente acarreta menor autonomia ao aluno ao desenvolver suas atividades.

Considerando as normativas a execução das medidas socioeducativas, o programa socioeducativo se propõe a promover ações que potencializem o desenvolvimento educacional dos adolescentes, seja na reorganização da trajetória escolar ou na inserção em programas de educação profissional, de esportes, cultura dentre outros.

Vieira, Abreu e Alves (2017) pontuam que uma das principais discussões atualmente no campo da educação é a necessidade de se construir um espaço intercultural, de troca de experiência e dos modos de se conviver por meio desta troca de saberes. O estudo mostra a importância de discussões específicas sobre às (in)visibilidades dos adolescentes indígenas privados de liberdade,de forma a pontuar que o papel da escola é de criar e subsidiar ações que possam implementar medidas socioeducativas e políticas públicas.