O coração da loucura: Nise da Silveira e a importâncias da história de vida e das técnicas expressivas na resiliência à violência em saúde mental The heart of madness: Nise da Silveira and the importance of life history and expressive techniques in resilience to violence in mental health

Monica Martinez 

https://doi.org/10.25965/trahs.4928

O presente estudo debruça-se sobre o filme “O coração da loucura: Nise da Silveira” para abordar a importâncias da história de vida e das técnicas expressivas na resiliência à violência em saúde mental. Nise (1905-1999) foi uma psiquiatra brasileira reconhecida mundialmente por sua abordagem junguiana no tratamento de pacientes psicóticos. A pesquisa tem como foco a representação que a película faz da protagonista no processo de evolução do tratamento dos transtornos mentais neste período (1944-1956). O argumento é o de que o filme, embora tome decisões de reconstrução cronológica que eventualmente se afastam dos fatos, imortaliza o pioneirismo de uma mulher formada em medicina nos anos 1930, numa sociedade sexista como a brasileira de então, de uma forma suficientemente boa para que este registro seja transmitido e debatido por uma audiência mais ampla, que se interessa pela película por variados motivos.

La présente étude se concentre sur le film "O coração da loucura: Nise da Silveira” (Le cœur de la folie : Nise da Silveira" en traduction libre) pour aborder l'importance de l'histoire de vie et des techniques d'expression dans la résilience à la violence en santé mentale. Nise (1905-1999) était une psychiatre brésilienne reconnue dans le monde entier pour son approche jungienne du traitement des patients psychotiques. La recherche porte sur la représentation que le film se fait du protagoniste dans le processus d'évolution du traitement des troubles mentaux à cette période (1944-1956). L'argument est que le film, même s'il prend des décisions de reconstruction chronologique qui s'écartent finalement des faits, immortalise l'esprit pionnière d'une femme formée en médecine dans les années 1930, dans une société sexiste comme celle du Brésil à l'époque, dans une assez bonne manière à ce que ce disque soit diffusé et débattu par un public plus large, qui s'intéresse au film pour diverses raisons.

El presente estudio se centra en la película "O coração da loucura: Nise da Silveira” (El corazón de la locura: Nise da Silveira en traducción libre) para abordar la importancia de la historia de vida y las técnicas expresivas en la resiliencia a la violencia en salud mental. Nise (1905-1999) fue una psiquiatra brasileña reconocida mundialmente por su enfoque junguiano en el tratamiento de pacientes psicóticos. La investigación se centra en la representación que la película hace del protagonista en el proceso de evolución del tratamiento de los trastornos mentales en este periodo (1944-1956). El argumento es que la película, si bien toma decisiones de reconstrucción cronológica que eventualmente se apartan de los hechos, inmortaliza el espíritu pionero de una mujer formada en medicina en la década de 1930, en una sociedad machista como la brasileña de entonces, en una buena manera de que este disco sea difundido y debatido por un público más amplio, que se interesa por la película por diversas razones.

The present study focuses on the film "O coração da loucura: Nise da Silveira” (“The heart of madness: Nise da Silveira" in a free translation) to address the importance of life history and expressive techniques in the resilience to violence in mental health. Nise (1905-1999) was a Brazilian psychiatrist recognized worldwide for her Jungian approach to the treatment of psychotic patients. The research focuses on the representation that the film makes of the protagonist in the process of evolution of the treatment of mental disorders in this period (1944-1956). The argument is that the film, although it makes chronological reconstruction decisions that eventually depart from the facts, immortalizes the pioneering spirit of a woman trained in medicine in the 1930s, in a sexist society like the Brazilian one at the time, in a good enough way to that this record be broadcast and debated by a wider audience, which is interested in the film for various reasons.

Contents

Full text

(...) ha em todos nós um louco adormecido,
assim como ha em todo louco um homem adormecido.
Candido Motta Filho em
Expressão artística nos alienados
(Cesar, 1929)

Ao fazer uma revisão dos anos iniciais de trabalho da médica brasileira Nise da Silveira (1905-1999), situados entre os anos de 1944 e 1952, Melo chama atenção para o fato de que as personalidades tendem a ganhar destaque em relação às suas obras, que correm o risco de ficar, por assim dizer, eclipsadas por elas (Melo, 2009: 31). A imagem da médica, portanto, estaria registrada de maneira simplista como a “a libertadora dos loucos através da arte” (Melo, 2009: 31).

Neste período, anterior aos estudos vinculados à abordagem da Psicologia Analítica do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), Nise estava fazendo sua passagem da neurologia para a psiquiatria, bem como iniciando o combate pelo qual se tornaria conhecida: o contra as práticas violentas no campo da saúde mental de então, como o eletrochoque, o coma insulínico e a lobotomia. Ela não somente refutou os protocolos médicos do período, que considerava de muito risco e de poucos resultados, como propôs a utilização de técnicas expressivas e terapia com animais como método de tratamento.

“Meu trabalho não se inspirou na psiquiatria atualmente predominante, caracterizada pela escassa atenção que concede aos fenômenos intrapsíquicos em curso durante a psicose”, diz no prefácio de sua obra mais famosa, Imagens do Inconsciente (Silveira, 2015: 13). “Ao contrário, meu interesse maior desde cedo se dirigiu no sentido de penetrar, pouco que fosse, no mundo interno do esquizofrênico” (Silveira, 2015:13). Ela via ali um potencial que se conservava mesmo diante dos desafios enfrentados pelo paciente. E o caminho de acesso a ele eram dois: a história de vida e a arteterapia. Vida e arte unidas pela saúde mental possível naquelas circunstâncias.

“A partir das produções dos ateliês da Seção de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro, coordenado por ela a partir de 1946, (...) fundou, em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente” (Melo, 2009: 31).

Neste contexto, este artigo analisa o filme Nise, O Coração da Loucura, em particular na representação que este faz da protagonista no processo de evolução do tratamento dos transtornos mentais neste período. O período 1944-1956 é importante porque, em 1944, anistiada, ela retorna a exercer sua função de médica no serviço público, depois de ter ficado afastada por oito anos – sendo detida por um ano e três meses – durante a ditadura Vargas.

Nosso argumento é o de que o filme, embora tome decisões de reconstrução cronológica que eventualmente se afastam dos fatos, imortaliza o pioneirismo de uma mulher formada em medicina nos anos 1930, numa sociedade sexista como a brasileira de então, de uma forma suficientemente boa para que este registro seja transmitido e debatido por uma audiência mais ampla, que se interessa pela película por variados motivos. Sejam eles o histórico, o tema ou até porque apreciam a atriz que encarna o papel de Nise da Silveira, a global Glória Pires.

Uma mulher à frente de seu tempo

Com duração de 1h42, o filme se inicia precisamente com a imagem de Nise esmurrando o portão de metal do hospital psiquiátrico para retomar suas atividades. Com voz firme, diz ao atendente: “Sou a doutora Nise da Silveira e o doutor Nelson está me aguardando”. Os pacientes são separados em alas femininas e masculinas, e vemos abraçada às grades nesta cena a interna Adelina Gomes (interpretada pela atriz Simone Mazzer). O fato é que, apesar dos retrocessos recentes (Cruz, Gonçalves, & Delgado, 2020), muito mudou desde então com a luta antimanicomial. Os hospitais psiquiátricos não existem mais, tendo sido substituídos no Brasil por setores de Saúde Mental nos hospitais gerais. Mas em muitos deles, como o da Santa Casa de Sorocaba, as grades ainda existem para separar os pacientes, o que pode ainda hoje dar ao visitante a sensação do que era entrar num hospital psiquiátrico.

Enquanto Nise caminha em direção à sua reunião, vemos a representação dos internos, com seus olhares vagos, discursos incoerentes ou sem sentido, comportamentos considerados inadequados e não cooperativos. “Quando os mais violentos estão soltos, ninguém entra”, alerta a enfermeira, apontando para o pátio onde alguns pacientes estão tomando sol.

Nise entra no auditório repleto de médicos, todos homens, no qual um profissional apresenta um trabalho sobre a psicocirurgia, indicada para doentes psicóticos, “que em estados obsessivos apresentam alto grau de agressividade” que os incapacitam completamente para conduta de uma vida social sadia”. O médico prossegue, enquanto exibe fotos históricas reais, em estilo antes e depois, no qual vemos pacientes com faces tensas na primeira imagem e “tranquilas” na segunda: “Senhores, os resultados são amplamente satisfatórios. Estamos falando de pacientes que antes era responsáveis pela destruição de suas famílias e hoje convivem harmoniosamente com elas”. Contudo, no encerramento da fala do médico, percebe-se um outro ganho importante da técnica na perspectiva dos profissionais: “Graças à lobotomia, hoje a psiquiatria é uma especialidade médica”.

Foto 1: Nise: o coração da loucura, 2016

Foto 1: Nise: o coração da loucura, 2016

A lobotomia era utilizada na psiquiatria desde 1936, quando Egas Moniz publicou um relato do uso bem-sucedido em quadros de angústia, depressão e esquizofrenia. Em 1951, o médico recebeu o Prêmio Nobel pelo achado – que no filme é mencionado no passado. Estamos, portanto, na película, nos anos 1950, embora na realidade o retorno da médica ocorra em 1944.Uma cena importante é a que mostra a face boquiaberta de Nise, quando o expositor da técnica explica que ela havia ganho uma contribuição significativa por meio da descoberta do médico americano Walter Freeman: a de que era possível usar picadores de gelo para realizá-la (o que é um fato histórico).

Outras produções cinematográficas que abordam a lobotomia são Um Estranho no Ninho (Forman, 1975), com Jack Nicholson, que narra o cotidiano de um hospital psiquiátrico. Frances (Clifford, 1982), protagonizado por Jessica Lange, é baseado na história real da atriz Frances Farmer. Trecho deste filme é reproduzido no documentário First, do no harm (Haberman, 2017), que mostra que a cobertura midiática foi tão positiva que levou o patriarca Joseph Kennedy – pai do que viria a ser o presidente John Kennedy – a aprovar uma cirurgia para conter o “humor alterado” de sua filha primogênita, Rosemary, aos 23 anos. A cirurgia não foi bem sucedida e a jovem ficou os 63 anos seguintes institucionalizada, sem conseguir andar bem ou falar com clareza.

Foto 2: Nise, o coração da loucura, 2016. Dr. Walter Freeman

Foto 2: Nise, o coração da loucura, 2016. Dr. Walter Freeman

“Nise da Silveira se recusava a utilizar tais procedimentos por se assemelharem às torturas físicas, que não sofreu”, explica Melo (2009: 33). Contudo, elas as viu de perto na prisão, principalmente em relação a Elisa Berger, que dormia na cama ao lado da sua na cela feminina, a chamada Sala 4” (Melo, 2009: 33). Ao se recusar a fazer estes procedimentos, Nise é encaminhada para trabalhar na Seção de Terapêutica Ocupacional (na realidade no ano de 1946), e as imagens seguintes do filme mostram o quão abandonada a área era, espécie de depósito de móveis quebrados e pacientes.

Os ateliês, a arte e o trabalho em grupos

A produção dos ateliês de pintura e modelagem levantava diversas questões. De um lado, evidentemente, a possibilidade criadora das pessoas com sérios transtornos mentais. De outro, o trabalho em grupos, seja ao participar ou negar a participação neles (Carlos, 2013:198). Segundo o autor, no âmbito da psicologia o estudo sistemático dos pequenos grupos sociais com o objetivo de buscar a compreensão dos mesmos “tem início na década de 1930 e 1940, com Moreno e com Kurt Lewin” (Carlos, 2013: 199). O primeiro com o teatro da espontaneidade, que se desenvolve como o psicodrama. O segundo vai propor o termo “dinâmica de grupo”, utilizado pela primeira vez em 1944. Do ponto de vista de contexto, segundo Carlos, estas noções estão ancoradas no contexto capitalista que, naquele momento, se rendia às inovações propostas pelos modelos fordistas e tayloristas, que tinham um olho no sucesso do empreendimento, enquanto o outro começava a atentar-se para a precarização das relações profissionais, como pontua Carlos (2013: 199), mas sem dúvida também no campo das relações pessoais e sociais de uma forma mais ampla, no qual a esfera da saúde física, emocional e mental é parte integrante. Desta forma, se o estudo do grupo principia nos ambientes escolares e ligados ao trabalho e, consequentemente, à empregabilidade e produtividade, por outro nos parece que desde sua gênese sua sombra recai justamente no âmbito do humano, no qual a saúde de uma forma mais integral é um dos pilares.

No tocante em particular dos grupos que são percebidos como minorias, como a das pessoas com transtornos mentais, destacam-se as reflexões de Kurt Lewin (1890-1947), psicólogo alemão, naturalizado americano para escapar ao nazismo, criador da Teoria de Campo. Neste caso, os constituintes de minorias poderiam ser “definidos diferentemente, conforme se faça referências às estruturas ou à dinâmica dos grupos minoritários” (Maillhiot, 2013: 40). Em relação à dinâmica dos grupos, ressaltam-se duas particularidades:

[...] as minorias se revelam ao observador como constituindo mais ou menos estável entre dois campos de força. De um lado, um campo de forças que exerce sobre os membros uma influência integrante de coesão. Estas forças são constituídas pela atração que exercem sobre as minorias os traços culturais próprios a este grupo e irredutíveis às culturas vizinhas. Estas forças centrípedas desempenham o papel dinâmico no seio das minorias. Elas engendram entre os minoritários atitudes de lealdade para com seu grupo (...) (Maillhiot, 2013: 40).

As imagens de violência do fime Nise, o coração da loucura vão dando espaço às cenas de formação do grupo, a começar pela boa vontade da enfermeira e a falta de colaboração do enfermeiro. Neste âmbito, parece que a proposta de Carlos ajuda a entender o grupo como um espaço de diferenças e de relações de poder, mas também o de acolher o conflito como parte integrante deste processo relacional no qual determinações de classe, gênero e raça, entre outras, estão inseridas e nem sempre serão conciliadas (2013: 201). Enfim, o atrito pode contribuir para visões de interseccionalidade que podem convergir ou não, sem que isto seja um ponto que impeça a própria criação, manutenção e, inclusive, término do grupo. Estamos, portanto, no campo das subjetividades.

Outra questão importante é a relação grupo e socialização. Segundo Maillhiot, até “Kurt Lewin quase todos os psicólogos americanos haviam centrado suas pesquisas no problema da socialização do ser humano (Maillhiot, 2013b: 49). Ou seja, o comportamento em grupo e as atitudes sociais continuam em pauta, mas com o foco na noção de que se inclui a personalidade, mas não se limita a ela (Maillhiot, 2013b, p. 50), sempre numa perspectiva das suas múltiplas interações (Maillhiot, 2013b: 51). Assim, para Lewin, o “eu (que ele prefere chamar ‘self’ em vez de “ego”) revela-se em relação às realidades sociais como um sistema de círculos concêntricos (Maillhiot, 2013b: 51):

Ao centro, encontra-se um núcleo constituído pelo que Lewin chama de o “eu íntimo”: este núcleo é dinâmico e formado por valores para ele fundamentais, aqueles valores aos quais o indivíduo consagra importância. Em torno deste núcleo central, as regiões intermediárias às quais Lewin chama o “eu social”: o eu social engloba os sistemas de valores que são partilhados com certos grupos, por exemplo, os valores de classe, os valores profissionais. Na periferia da personalidade encontra-se situado o “eu público”. Do mesmo modo que o eu íntimo é um eu fechado, este outro é um eu aberto. O eu público é a região mais superficial da personalidade, aquela que está engajada nos contatos humanos ou nas tarefas em que os automatismos são suficientes ou são exigidos. É neste nível que se implicam aqueles que participam de fenômenos em massa. É geralmente também neste nível que muitos indivíduos integram-se em situações de trabalho em que somente a periferia de seu ser é engajada (Maillhiot, 2013b: 51).

“Deixa que eles façam o que quiserem”, diz Nise no filme, na abertura do Atelier. Em qualquer tempo histórico, é uma proposta muito inovadora, no contexto de um hospital psiquiátrico, o que a médica propõe.

Liberdade para criar

Afinal, até hoje, a lógica disciplinar ainda impera nos cursos universitários de graduação, com suas demandas autoritárias e cobranças de faltas e notas. Por outro lado, o que Nise parece sugerir é um movimento interiorizado que não seja também ele um simulacro de liberdade, como dizem Nardi e Silva:

Nas sociedades de controle, o exercício do poder dispensa as relações de visibilidade próprias ao esquadrinhamento do espaço disciplinar para se apropriar unicamente da lógica que lhe é inerente. A partir desse momento, a lógica disciplinar não tem mais necessidade de produzir uma visibilidade permanente daqueles que exercem o poder ou daqueles sobre os quais esse poder será exercido. O poder passa a ser exercido de um modo muito mais sutil e imaterial: torna-se mais instantâneo, fluído e eficaz. Podemos dizer que o controle se produz por meio da interiorização da norma, sustentando-se em modos de dominação dependentes da construção da ideia de uma interioridade única, singular e autônoma do sujeito. Essa ilusão de interioridade produz a invisibilidade dos dispositivos de controle e possibilita a invasão da norma em todas as esferas da vida (Nardi & Silva, 2005: 96).

A própria Nise reconhece que a princípio o atelier de pintura era apenas um dos setores que estavam sob sua responsabilidade no Centro Psiquiátrico Pedro II. “Mas aconteceu que desenho e pintura espontâneos revelaram-se de tão grande interesse científico e artístico que esse atelier cedo adquiriu posição especial” (Silveira, 2015: 17).

Note de bas de page 1 :

Não é objetivo deste artigo deste trabalho aprofundar na questão histórica. Para saber mais, sugere-se a consulta do artigo de (Lima, 2004).

Anos depois, iniciativas como a de Nise ganhariam visibilidade na construção de, como diz Lima, “espaços clínicos e de inclusão social num território no qual saúde e arte dialogam e se interferem mutuamente” (Lima, 2004: 51). Segundo a autora, esta prática remonta às atividades dos asilos1. Do ponto de vista conceitual, contudo, importa aqui discutir a noção de oficina enquanto uma prática importante no contexto da saúde mental, em particular no âmbito das pessoas em situação de vulnerabilidade:

O dispositivo a que chamamos oficina é geralmente convocado quando se fala em "novas" propostas terapêuticas. Seu uso tem sido frequente e quase corriqueiro na clínica "psi" para designar um amplo espectro de experiências terapêuticas e extraterapêuticas, de diferentes formatos e composições. Quase sempre amparado na crítica à psiquiatria tradicional e, portanto respaldado pelas concepções da reforma psiquiátrica, o universo das oficinas não se define por um modelo homogêneo de intervenção e nem tampouco pela existência de um único regime de produção, ao contrário, é composto de naturezas diversas, numa multiplicidade de formas, processos, linguagens (Galletti Apud Lima, 2004: 53) .

Lima cita Foucault (1972: 488) para explicar que, surgidos na segunda metade do século 19, os hospitais psiquiátricos brasileiros procuravam seguir os moldes da psiquiatria proposta pelo francês Philippe Pinel (1745-1826). Para Pinel, “a manutenção da saúde, do bom comportamento e da ordem, é a lei de um trabalho mecânico rigorosamente executado” (Lima, 2004: 54). Desta forma, “os asilos deveriam ter grandes terrenos para que os doentes pudessem trabalhar no cultivo da terra, e havia setores organizados para a realização de diferentes atividades, tais como trabalho com barro, couro e madeira” (Lima, 2004: 54). Como Lima registra:

As oficinas – como são geralmente nomeados esses dispositivos a partir da Reforma Psiquiátrica no Brasil –, remetem à ideia de produção e desta para a ideia de produção de subjetividade. É nesses espaços que se engendram, se experimentam, se criam novas formas de se relacionar, novos espaços para existir, novos modos de ser (Lima, 2004: 53).

Neste sentido, o filme Nise: o coração da loucura mostra bem tanto o preconceito com que os psiquiatras brasileiros da época tratavam: 1) uma colega do sexo feminino; 2) uma colega do sexo feminino que se ocupava de um setor de terapia ocupacional e que não só não estava interessada nas cirurgias “de ponta” da especialidade da época, como ainda as questionava; 3) uma colega do sexo feminino que deixava as pessoas internadas à vontade no atelier, sem exercer um controle rigoroso sobre elas.

Personagem importante registrado pela película, sem que contudo por meio dela saibamos seu sobrenome, é Almir. Trata-se do pintor concretista Almir da Silva Mavignier (1925- 2018), que “é também estimado por ter proposto, com a médica Nise da Silveira (1905 - 1999), o uso de atividades artísticas como método de terapia ocupacional” (“Almir Mavignier,” 2022). Uma vez que o atelier não tinha recursos, ele teria conseguido os materiais necessários para iniciar as oficinas.

“(...) vamos evitar o termo paciente. Nós estamos aqui a serviço destas pessoas, nós é que temos de ser pacientes. Eles são nossos clientes” é uma frase importante da película, que também registra a forma diferenciada com que a psiquiatra brasileira conduzia os encontros no atelier. Na mesma cena, quando um interno começa a pintar o outro com tinta vermelha, a médica orienta o enfermeiro: “Deixa os dois em paz”. E as cenas que se seguem começam a evidenciar as expressões criativas dos clientes em contraposição às gestões controladoras das instituições psiquiátricas de então.

Era surpreendente verificar a existência de uma pulsão configuradora de imagens sobrevivendo mesmo quando a personalidade estava desagregada. Apesar de nunca haverem pintado antes da doença, muitos dos frequentadores do atelier, todos esquizofrênicos, manifestavam intensa exaltação da criatividade imaginária, que resultava na produção de pinturas em número incrivelmente abundante, num contraste com a atividade reduzida de seus autores fora do atelier, quando não tinham mais nas mãos os pincéis” (Silveira, 2015: 15).

Nas cenas seguintes, os clientes vão sendo nomeados, como antes Lucio (Lúcio Noeman) já o fora: Rafael (Raphael Domingues), Carlos (Carlos Pertuis) e Fernando Diniz entre outros. Uma fala de Nise do filme mostra um aspecto importante: seu conhecimento da obra junguiana:

Quando Carlos foi internado, ele disse que via Deus nos raios de sol que incidiam no espelho do quarto dele. Ele queria que todos vissem o que só ele estava vendo. Você sabe que em várias religiões orientais a flor de ouro simboliza a presença de Deus? Jung diz que a psique, assim como todo organismo vivo, ela tem potencial reorganizador, autocurativo, que se manifesta justamente nestas formas circulares. Essa tentativa de Carlos de reorganização se dá justamente no seu lado místico.

Apresenta, também, a artista plástica Martha (Martha Pires Ferreira) – interpretada pela atriz Georgiana Góes –, que vai trabalhar ao lado de Rafael. Em uma entrevista para o Canal Saúde / Fiocruz, Martha diz que:

Nise tinha uma preocupação muito grande com os excluídos. Às vezes estava junto com ela um diplomata, um artista, um poeta, um andarilho, um doente mental, com problemas seríssimos, e ela tratava todo mundo (...) com finura e, ao mesmo tempo, de uma forma firme. É muito incrível juntar numa pessoa só este conjunto de coisas (...). A doutora nunca teve a pretensão de formar artistas, tampouco curar nem tinha interesse em diagnosticar ninguém. Mas a gente percebia pelo histórico daquelas criaturas que eu acompanhei por muitos anos uma postura melhor diante do mundo (...). O que me atraía era o lado sadio de cada um deles – e aí se fazia a ponte (Letras, 2013).

Neste ponto, o filme começa a mostrar a importância das histórias de vida na tentativa de compreensão da pessoa. No filme, numa conversa com Martha e Almir, Nise diz: “Eu conversei com a mãe do Rafael e ela me deu estes desenhos que Rafael fez quando tinha 13 anos. Ele trabalhava num escritório particular como desenhista e chegou a ganhar prêmios”. Nise destaca logo à frente a necessidade de catalogação dos trabalhos: “É preciso colocar o nome, a data e o número também”. Mais à frente, na organização da primeira exposição, ela dirá: “Se não for por autor e em ordem cronológica perde o sentido”.

Esta reflexão não estaria completa sem mencionar a carta inicial à Jung, que ela narra no filme:

Professor Carl Gustav Jung. Mestre, No Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro, existe um atelier onde os doentes desenham e pintam com a mais completa liberdade. Nenhuma sugestão lhes é dada, nenhum modelo é proposto. Com minhas mais respeitosas homenagens eu vos envio algumas fotografias de pinturas que me parecem mandalas ou formas aproximadas. Elas foram pintadas espontaneamente pelos esquizofrênicos. E eis que surgem imagens primordiais em suas pinturas, apresentando uma demonstração empírica e convincente da psicologia analítica. Está descartada qualquer possibilidade de influência cultural. Eu mal poderia expressar, mestre, o quanto o estudo de seus livros tem trazido luz ao meu trabalho como psiquiatra, além de muito me ajudar pessoalmente. Com admiração, Nise da Silveira (Berliner, 2016).

As imagens a seguir da película mostram a carta, escrita em francês – que foi o idioma de fato no qual foi escrita. E, logo mais à frente, a reposta do psiquiatra suíço – que acha que ela na verdade se trata de um senhor – confirmando que na visão dele se tratavam realmente de mandalas.

O registro no filme da importância das histórias de vida recai no resgate da história de Fernando Diniz. É interessante que outro diretor, Leon Hirszman, dedicou-lhe uma obra, Em Busca do Espaço Cotidiano. Na análise da película, Melo reconta a história de Diniz:

Fernando Diniz nasceu no dia 06 de dezembro de 1918, em Aratu, cidadezinha nas proximidades de Salvador. Seu pai faleceu quando Fernando ainda era bastante pequeno e dona Augusta, sua mãe, pobre costureira, teve muitas dificuldades para mantê-lo. Quando estava com quatro anos de idade, Fernando passou a morar no Rio de Janeiro com sua mãe. Vivendo em pequenos quartos de casarões onde habitavam inúmeras famílias, Fernando, desde cedo, experienciou o contraste entre a sua moradia e as ricas mansões de Copacabana onde sua mãe trabalhava (Melo, 2010: 636).

Ao se coletar a história de vida de Fernando, percebe-se um início conturbado, com a perda do pai e o esforço da mãe para que a sua pequena família sobreviva num ambiente socialmente não favorável. Ainda assim, dona Augusta parece dispor de recursos psíquicos suficientes para enfrentar o desafio, arranjando empregos em casas de famílias de posses.

Numa dessas casas, Fernando passa a conviver com Violeta, filha de um rico advogado. A menina lhe ensina algumas palavras e os dois inventam brincadeiras. Desta convivência, nasce em Fernando uma paixão por Violeta. O menino mulato e pobre fantasia se casar com a menina branca e rica. Pensa, então, em ascender socialmente a partir dos estudos: quer ser engenheiro. As fantasias de infância de Fernando encontram sua base no ambiente de enormes contrastes no qual vive, tão característico da sociedade brasileira. Este ambiente fez com que dona Augusta se posicionasse de maneira ambígua e passasse a estabelecer situações de duplo vínculo, ao emitir, de maneira sistemática, informações contraditórias para o filho: diz, por um lado, que o filho é inteligente, que deve estudar para ser engenheiro e, daí, conseguir dinheiro e ter tudo o que quiser; por outro lado, pede para o filho se comportar bem na casa dos brancos, senão ela perde o emprego. Neste sentido, o que se valoriza é ser branco e rico. Na impossibilidade de ser branco, o mulato Fernando, seguindo recomendações da mãe, quer ser engenheiro para, um dia, ser rico e se casar com Violeta (Melo, 2010:636-637).

Numa espécie de conta de fadas ao contrário, o menino pobre encontra um sentido em seu sofrimento, como diria Frankl (2021) na fantasia de um amor socialmente proibido. Estimulado pela mãe, ele visualiza um caminho para sua aspiração, que é o de graduar-se numa profissão socialmente valorizada – a engenharia – e, assim, propor casamento à amada.

No entanto, a vida desta família e, mais precisamente, a trajetória de Fernando Diniz, serão marcadas pelos espaços de exclusão, ou seja, pela passagem e confinamento em instituições totais. Exemplo patente encontra-se na história de Antônio Carlos, filho que dona Augusta teve com um homem branco, quando Fernando estava com cinco anos. O pai da criança, no entanto, foi embora antes do nascimento do filho e, talvez, nem tenha tomado conhecimento da gravidez da mulher com quem conviveu por poucos dias. Sem poder criar os dois filhos, dona Augusta colocou Antônio Carlos na roda, na Casa dos Expostos, onde a criança faleceu não se sabe quando.
Aos nove anos de idade, Fernando é que foi institucionalizado, passando a viver num asilo de freiras em Petrópolis. Neste local, lhe ensinam noções básicas de português e de matemática. Contudo, não gostava das aulas, assim como não apreciava a alimentação. Considerava amargo o leite oferecido pelo asilo; muito diferente do leite de sua mãe. Somente gostava dos três dias de retiro, que o afastavam temporariamente da rigidez asilar. Neste tempo não possuía brinquedos (Melo, 2010: 637).

Num certo sentido, parece que a mãe de Fernando também ela tem a fantasia de se inserir no mainstream, por assim dizer, ao manter um relacionamento e ter um bebê com este homem branco que a abandona. Com recursos psíquicos, mas poucos recursos financeiros, ela abre mão do bebê e, em seguida, também encaminha Fernando para uma instituição religiosa. Aos 9 anos, ele se vê sem o que considerava ser sua família e não parece se encaixar nas rotinas da nova moradia. Contudo, a vida segue e algum tempo depois ele está de volta Rio de Janeiro e parece estar estável o suficiente para colocar-se novamente em busca de seu sonho:

Após dois anos no asilo de freiras, Fernando retorna ao Rio de Janeiro, passando a frequentar uma escola pública. Seguiu seus estudos obtendo, invariavelmente, boas notas. Quando se preparava para o vestibular de engenharia, Fernando ficou sabendo que Violeta havia se casado e sofreu um grande abalo emocional: suas notas na escola foram piorando gradativamente, até que o aluno abandonou o curso; também abandonou os cuidados corporais, passando a ficar sujo; ficou durante meses em mutismo; passou a vagar pelas ruas; sentia o espaço se estreitar vertiginosamente, como se os prédios fossem cair na sua cabeça; e, na praia de Copacabana, Fernando tem o que Nise da Silveira denominou como o único gesto de rebeldia de toda a sua vida: banha-se nu (Melo, 2010: 637).

Fosse nos anos 1968 numa praia francesa ou californiana, o desnudamento teria tido um caráter de contracultura. Mas não era. O resultado é o aprisionamento, primeiramente numa instituição judicial, depois num manicômio.

É chamada a polícia. Fernando luta com os policiais, mas é levado preso por atentado ao pudor e desacato à autoridade. Ficou seis meses detido. Quando foram avaliadas suas alterações psicológicas, foi transferido para o manicômio judiciário e, de lá, foi levado para o hospital psiquiátrico de Engenho de Dentro. Pode-se acompanhar, por meio da triste biografia de Fernando, toda uma gama de mecanismos de exclusão social que encontram seu núcleo em diversas instituições que zelam pela “boa conduta” (Melo, 2010: 637).

No filme, a história simplificada de Fernando emerge de uma conversa de Nise com a mãe dele, Augusta (que no filme é chamada de Carmen). “A senhora sabe o que esta cirurgia vai fazer com seu filho? Vai destruir uma parte do cérebro dele. Fernando vai perder a capacidade de se emocionar, de sentir as coisas”, diz Nise. Ela mostra o artigo do jornal sobre a exposição e os quadros pintados pelo filho. A mãe responde: “Parece a casa da dona Zélia, uma ex-patroa. Ele ia comigo lá toda semana quando eu ia costurar. Tinha uns 8, 9 anos. Ele adorava ficar sentadinho na sala, escutando Violeta tocar piano”. “Quem é Violeta?”, pergunta Nise. “A filha de dona Zélia. Ele surtou no dia que ela casou”. “Pois então”, diz Nise, “é isto. Fernando está tentando [por meio das pinturas] nos contar uma história que ele viveu. Dê esta chance a ele”. No filme, a mãe de Fernardo retira a autorização para a lobotomia. Ao longo da vida, ele produz cerca de 30 mil obras, entre telas, desenhos e modelagens. Realiza, em parceria com o cineasta Marcos Magalhães, o premiado desenho Estrela de Oito Pontas (“Fernando Diniz,” 2002). Nunca deixou o hospital, morrendo no mesmo ano que Nise, 1999, em 5 de março, aos 81 anos, de cardiopatia e câncer. Lucio não teve a mesma sorte. Sofreu a lobotomia.

Na mesma entrevista concedida por Martha, o jornalista Bernardo Carneiro Horta, autor do livro Nise, arqueóloga dos mares, sintetiza que aquelas pinturas pareciam “uma coisa infantil, recreativa, mas depois viu-se que [trata-se de] um método que dava resultados (Letras, 2013). Um método que permitia que as pessoas com transtornos mentais simplesmente se sentissem seguras o suficiente num atelier para expressar, por meio de técnicas expressivas, um pouco do seu mundo interior. Por pouco que fosse este vislumbre, já era uma porta importante para que a desordem a e perturbação do estado psíquico se reorientassem “através de um ponto central em relação ao qual tudo é ordenado” (Jung, 2012 § 714).