Violência simbólica, sociedade do desempenho e vivências da alteridade: aproximações entre leituras de Han e Bourdieu Symbolic violence, performance society and insurrections of otherness: approaches between the readings of Han and Bourdieu

Luís Mauro Sá Martino 
e Ângela Cristina Salgueiro Marques 

https://doi.org/10.25965/trahs.4869

Este artigo delineia algumas aproximações entre os conceitos de “violência simbólica”, de Bourdieu, e a noção de Eros, desenvolvida por Han em diálogo, sobretudo, com Lévinas. Aparentemente vinculados a instâncias opostas da experiência humana, os dois conceitos permitem aproximações em termos de sua potência política, seja no reforço de regimes cotidianos de dominação, seja na fabulação e elaboração de formas de insurgências e resistências de sujeitos ligados pelo vínculo solidário de ação. A partir de pesquisa bibliográfica, propõe-se aqui uma leitura cruzada dos autores no sentido de destacar possibilidades de aproximação, mas também de contraste, entre os dois conceitos.

Cet article esquisse quelques approximations entre les concepts de « violence symbolique » de Bourdieu et la notion d'éros, développée par Han en dialogue, surtout, avec Lévinas. Apparemment liés à des expériences humaines opposées, les deux concepts permettent des approximations quant à leur puissance politique, que ce soit dans le renforcement des régimes quotidiens de domination, ou dans la fabulation et l'élaboration de formes d'insurrections et de résistances de sujets liés par le lien solidaire d'action. Sur la base de recherches bibliographiques, une lecture croisée des auteurs est proposée ici afin de mettre en évidence des possibilités de rapprochement, mais aussi de contraste, entre les deux concepts.

Este artículo esboza algunas aproximaciones entre los conceptos de “violencia simbólica” de Bourdieu y la noción de Eros, desarrollada por Han en diálogo, sobre todo, con Lévinas. Aparentemente vinculados a instancias opuestas de la experiencia humana, los dos conceptos permiten aproximaciones en cuanto a su potencia política, ya sea en el reforzamiento de los regímenes cotidianos de dominación, ya sea en la fabulación y elaboración de formas de insurgencias y resistencias de sujetos ligados por el vínculo solidario. de acción. Con base en la investigación bibliográfica, se propone aquí una lectura cruzada de los autores para resaltar las posibilidades de aproximación, pero también de contraste, entre los dos conceptos.

This article outlines some approximations between Bourdieu's concepts of “symbolic violence” and the notion of Eros, developed by Han in dialogue, above all, with Lévinas. Apparently linked to opposing instances of human experience, the two concepts allow approximations in terms of their political potency, whether in the reinforcement of daily regimes of domination, or in the fabulation and elaboration of forms of insurgencies and resistance of subjects linked by the solidary bond of action. Based on bibliographic research, a cross-reading of the authors is proposed here in order to highlight possibilities of approximation, but also of contrast, between the two concepts.

Índice

Texto integral

Introdução

O poder é um dos temas clássicos da Filosofia Política, em uma genealogia que poderia ser traçada, sem muita dificuldade, da República de Platão até os trabalhos recentes de Judith Butler sobre os discursos de ódio na política. No entanto, é sobretudo a partir do final do século XIX que essa temática parece se deslocar de seu espaço de origem na filosofia e ganhar também outras apreciações no âmbito das Ciências Sociais, seja nas sociologias fundadoras de Marx, Weber e Durkheim, seja em trabalhos de localização mais imprecisa como os estudos de Foucault ou hooks.

Nesse cenário, as variedades da experiência do poder encontram diversas maneiras de interpretação, ora focalizando em cenários macropolíticos, ora focalizando nas instâncias micropolíticas de vivência cotidiana. De maneira semelhante, as abordagens também estão longe de serem unilaterais, enfatizando em certos momentos a primazia dos poderes institucionais e constituídos para, em outros, destacar as condições de associação, resistência e agência dos sujeitos no sentido da busca pela construção de sua autonomia.

De que maneira se exerce o poder? Como torna-lo mais eficaz? Como resistir a ele? Em alguma medida, essas três perguntas parecem delimitar algumas das principais vertentes de estudos do poder, consagradas na Filosofia Política. A ideia de um bom governo, bem como as denúncias da tirania, ocupa um espaço conhecido na literatura da área. É preciso observar, no âmbito de certos ramos das Ciências Sociais, um deslocamento de foco dessas perguntas do âmbito dos poderes institucionais e constituídos para as condições e formas de sua manifestação no tecido social em termos de realizar uma topografia de seus lugares em relações aparentemente de menor alcance, mas igualmente eficazes na promoção de determinadas linhas de controle de um sujeito sobre outro.

Nesta última vertente, é importante destacar o espaço que as relações interpessoais vem ganhando como um local de observação das formas de elaboração e força do poder constituído em termos de sua presença nas relações cotidianas. Enquanto a, por assim dizer, “grande política” ocupou efetivamente a maior parte das preocupações da Filosofia Política, as questões cotidianas se revelaram, sobretudo a partir dos anos 1960, como um espaço privilegiado de entendimento das formas de poder, tanto em termos da eficácia de seu exercício quanto em termos de observar as pequenas resistências elaboradas pelos sujeitos em suas tramas de ação social.

É possível creditar isso, ao menos em parte, à emergência de reivindicações ligadas ao reconhecimento e afirmação de identidades que, sem encontrarem na “grande política” a resposta para qualquer de suas demandas, posto que historicamente apagadas ou invisibilizadas, partem para a reiteração das relações sociais cotidianas como lugar de circulação de um poder que, constituído como opressor, poderia ser reelaborado em termos de uma maior abrangência e reconhecimento.

A ideia de que “o pessoal é político”, nesse sentido, resulta em uma genealogia que se inicia com Carol Haznith ainda nos anos 1960 e encontra uma de suas expressões mais recentes em trabalhos como os de Collins (2022) e Federici (2019). Em termos semelhantes, Goffman (1972) também indicava como as micro-interações cotidianas são fundamentais para, nos pequenos gestos, olhares e dizeres, reforçarem o que Bourdieu (2021) denomina como “sistemas de classificação” – como indica Goffman, a ordem da interação reflete a ordem social – cf. Martino (2021).

A análise do poder, nesse sentido, ganha uma dimensão até então inédita no sentido de complementar a visão das questões políticas mais amplas, envolvendo Estados, governos e partidos, com uma perspectiva que, concentrada em fenômenos aparentemente de menor escala, mostravam-se igualmente eivados de formas de controle e manutenção do poder, seja de maneira explícita, seja na instauração – implícita – de formas de dominação exercidas de maneira velada e, em certa medida, com a cumplicidade inconsciente daqueles sobre os quais se exerce esse controle. O resultado é a associação do poder com formas de violência até então invisíveis, de certa maneira, à própria análise do tema, posto que, sem se manifestarem de maneira necessariamente física e visível, adquiriam uma dimensão sobretudo voltada para o imaginário, a alteridade e o simbólico.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han e o sociólogo francês Pierre Bourdieu parecem ser, cada um a seu modo, representantes desse tipo de análise do poder, o primeiro trazendo as questões para o cotidiano de uma sociedade hipersaturada de comunicação, o segundo oferecendo um repertório conceitual passível de propor uma operacionalização das formas de análise. Tanto quanto as formas de poder, é possível detectar em ambos também perspectivas voltadas para a constituição de agenciamentos de sujeitos conscientes de sua localização histórica e social, e de um lado, e também de possibilidades de insurgência e atividade de comunidades voltadas para entrelaçamentos sociais pautados na colaboração e na solidariedade.

Este artigo delineia algumas aproximações entre os conceitos de “violência simbólica”, de Bourdieu, e a noção de Eros, desenvolvida por Han em diálogo, sobretudo, com Lévinas. Aparentemente vinculados a instâncias opostas da experiência humana, os dois conceitos permitem aproximações em termos de sua potência política, seja no reforço de regimes cotidianos de dominação, seja na fabulação e elaboração de formas de insurgências e resistências de sujeitos ligados pelo vínculo solidário de ação. A partir de pesquisa bibliográfica, propõe-se aqui uma leitura cruzada dos autores no sentido de destacar possibilidades de aproximação, mas também de contraste, entre os dois conceitos.

Evidentemente seria apressado entender “eros” como sinônimo de “amor” ou pensar a “violência” como “agressividade”: as empirias constitutivas desses conceitos são, sem dúvida, algum de seus componentes, mas não podem ser reduzidos a isso sob pena de tornar a discussão meramente contraposição entre os conceitos. O foco está nas possibilidades de uma vivência comunicacional pautada na relação com o outro com o qual se pode comunicar, mas também diante do qual se estabelece uma vinculação ética: a comunicação, enquanto forma de estar com o outro, se funda sobretudo em uma relação ética da alteridade (Martino; Marques, 2018; Martino, 2019; Marcondes Filho, 2016). Se a aproximação entre Han e Bourdieu não parece ser muito explorada, também não é inédita: trabalhos como os de Cordeiro, Friede e Miranda (2018) ou Lavezzo (2020) já se propõe a essa aproximação.

Do mesmo modo, como nota metodológica, não há aqui a intenção de fazer um recenseamento dos conceitos nas obras dos autores, algo que ultrapassaria o escopo de um artigo acadêmico. No centro dessa discussão está a chave de operacionalização das formas de poder contemporâneo tal como se manifestam em diversos lugares no cotidiano e são interpretadas pelos dois autores, tecendo diálogos, mas também demarcando diferenças.

I- A violência simbólica e a coisificação do outro

A exemplo do que acontece com muitos de seus conceitos principais, a noção de violência simbólica está espalhada ao longo da obra de Bourdieu, e não chega a encontrar um lugar especial de exposição completa – embora existam, em O Poder Simbólico e nas Meditações Pascalianas textos diretamente voltados para o assunto, sua sistematização parece, também a exemplo de outros conceitos, estar dirigida sobretudo para sua operacionalização na análise de situações empíricas. Vale, nesse sentido, retomar a advertência de Mauger (2006, p. 85) sobre o conceito: “sem dúvida, também é um dos mais incompreendidos: talvez porque pareça ser um dos mais ‘desesperados’”.

Ao mesmo tempo, essa preocupação com o empírico não escapa de uma perspectiva de ampliação para a interpretação de fenômenos próximos; se, como afirma em Coisas Ditas (1990), o mundo social não é constituído de regras, mas de regularidades, assim também as elaborações teóricas a respeito dessas mesmas regularidades não escapam à possibilidade de uma articulação com outros contextos, da linguística às redes digitais, passando pela cultura e até por possibilidades de inesperadas formas de insurgência institucional (Davalon, 1983; Addi, 2001; Servais, 2003; Landry, 2006; Civila; Silva; Saraiva, 2014; Romero-Rodriguez; Aguadez, 2021).

Ao que tudo indica, o conceito parece ter sido usado pela primeira vez em A Reprodução, escrito ainda de uma fase inicial, elaborado no final da década de 1968. A ideia de “violência simbólica”, nesse primeiro momento, ainda parecia se dirigir a uma incursão pelas formas invisíveis de exclusão levadas a efeito por um sistema escolar que, na aparência, se apresentava como inclusivo e igualitário. O elemento de reprodução seria não só inerente ao universo educacional, mas tanto mais invisibilizado quanto mais eficaz fosse; uma forma de poder invisível, naturalizado e difundido a partir do compartilhamento, em larga escala, de sistemas de classificação e ordenamento do social, responsável não apenas por sustentar a ordem vigente, mas, sobretudo, contar com a cumplicidade involuntária mesmo daqueles por ela prejudicados: a definição de violência simbólica não está muito longe disso.

É, no entanto, em estudos posteriores que esse conceito vai se alargar, ganhando os contornos de uma oposição à violência real e visível; vale recordar que “real”, aqui, não é necessariamente sinônimo de “físico”: a forma da violência direta é a agressão, a ameaça à integridade física da alteridade. Mas a agressão verbal é, igualmente, real: o ponto fundamental da violência simbólica não é sua oposição presumida a uma violência física, mas o fato de sua invisibilidade estrutural, geralmente articulada com discursos que a naturalizam na forma de uma inevitabilidade quase fatalista – ou, em algumas versões mais elaboradas, em um determinismo finalista que tem como estratégia a manutenção de uma posição herdada (o negatigo: “as coisas são assim”; “a vida é dura”) ou a vinculação ao mesmo discurso responsável pela construção dessa situação (o positivo: “você merece o sucesso”; “seja um vencedor”) que transformam o elemento coercitivo em condição natural.

Dessa maneira, o exercício da violência a não se separa do campo da elaboração do simbólico, e pode, de fato, atuar de maneira autônoma nessa esfera, sobretudo quando cultivada por sujeitos ligados, de maneira paradoxalmente voluntária e inconsciente, a esse tipo de discurso: a materialidade discursiva da violência simbólica desemboca no sujeito do desempenho contemporâneo. É um ponto de contato entre Bourdieu e Han.

No livro Agonia do Eros (2017), o filósofo Byung-Chul Han convoca o pensamento de Emmanuel Levinas no intuito de nos mostrar como o capitalismo incentiva o mero consumo do Outro, tornando-o coisa e apagando sua singularidade. A alteridade não deveria estar disponível para nossa apropriação, para completar aquilo que nos falta ou para satisfazer a desejos narcísicos. Não por acaso, como lembra Safatle (2014), a esfera do consumo do outro encontra-se, dentro da análise freudiana, como uma objetificação que reduz o outro a um instrumental para a satisfação desse desejo. Não se trata sequer de uma hipertrofia de um suposto amor-próprio, mas de uma relação entre objetos mediada pelo apagamento do sentido de alteridade – e da própria ipseidade do sujeito.

Para Han, a coisificação econômica do outro impede a formulação de uma ética pautada pelo respeito e pela relação assimétrica com a alteridade. É como se a necessidade do consumo impedisse a consideração e escuta das demandas do Outro: estamos mais preocupados em reduzir o Outro ao que somos, por meio de rótulos e preconceitos classificatórios, do que em acolhermos a diferença e preservarmos o espaço tão necessário ao cuidado com a alteridade.

O eros agoniza, de acordo com Han, porque tem sido o resultado uma relação com o Outro que se orienta pelo desempenho, pela posse, pelo controle e pelo poder. A relação erótica com o Outro não se confunde com a sexualidade, muito menos com a necessidade de sua posse. Pelo contrário: o eros é acolhimento do “estrangeiro” que se apresenta diante de nós e que demanda nossa consideração. Na relação erótica, o Outro nos retira de nossa interioridade para respondermos responsavelmente à sua interpelação. O ponto em questão não é a possibilidade de amar o outro, mas a impossibilidade de amar para além do consumo imediato. A busca não é pela relação, o que implicaria a produção de um cenário ético, mas pela redução de si e do outro às formas de um paradoxal desfrutar que não implica sequer a fruição.

Seria possível pensar, à primeira vista, que em uma sociedade transparente, tal como caracteriza Han, esse rosto do outro estivesse mais visível do que nunca, tornado evidente – na raiz latina de um ex-videre – a partir de um regime de visibilidade constante: a transparência tornaria a exposição da alteridade algo constante e vívido, bastando o acionamento do aplicativo para se estar rigorosamente diante da multiplicidade do outro.

No entanto, a transparência absoluta do outro não o torna visível, mas o apaga. A multiplicidade de faces não se confunde com o contato com um único rosto que se apresentaria como ponto inicial da relação ética – não é a transparência, mas o mistério que torna o rosto do outro algo transcendente à experiência: em sua raiz grega, o mystos, de onde vem “mistério”, é também a origem de “místico”, não em um sentido religioso, mas em termos daquilo que não é facultado a qualquer olhar.

É enigmático o modo como o outro se manifesta diante de nós, como conseguimos ouvi-lo, mas sem que ele possa ser apreendido pelo conceito, por nossa tentativa de reduzi-lo a um padrão conhecido de julgamento, uma vez que a razão suprime a alteridade do interlocutor e do falante. Tal encontro enigmático é definido por Levinas como uma “relação sem relação”: o outro não é conhecido pelo Dito, pela representação, mas respondido no Dizer, através do apelo que nos demanda e sanciona nosso poder de agir e ser (Lévinas, 2007; 2011).

Mas a processualidade do dizer não é passível de apreensão, assim como se espera a apreensão de um fantasma do outro no ambiente hiperconectado. A palavra “fantasma” aqui é usada no sentido grego original de uma imagem resultante da elaboração, o phantasma como ponto de partida da phantasia: uma imagem do outro que assombra por sua visibilidade completa e constante, próxima ora de uma perfeição que intriga, ora próxima dos abismos que se lamenta – mas raramente como alteridade, igual e próxima. Não há mistério na elaboração da fantasia, uma vez que ela obedece – ou deveria obedecer – quem a cria.

É como se, através do enigma, o outro interrompesse o jogo de sua redução ao mesmo. Ao mesmo tempo em que a exterioridade se apresenta diante de nós, a interioridade se forma: o eu é aberto e constituído pelo outro (Lévinas, 2010; 2012).

A experiência afetiva de desarticulação trazida pelo enigma do outro não pode ter um significado atribuído pelo conceito. A ruptura ocorre justamente pela (i)mediaticidade do contato com o rosto do outro, seguindo a proposta de Lévinas (2007; 2012; 2013). Como nos diz Han (2017:34), “o eros desperta diante do rosto”, “que preserva uma distância adequada do outro” (id:28). Ver o rosto é escutá-lo e responder à ele: essa relação erótica permite a abertura do eu para o mundo, na medida em que um “estranho se fixa entre mim e meu ego, permitindo-me escapar de minha alma narcisista” (Han, 2017:39).

Também Han (2017:10) nos oferece uma via possível para questionar a tendência à anulação da alteridade diante da agonia do eros: escapar à tendência de perceber o mundo como uma sombra projetada de nós mesmos, que nos empurra para uma na qual cada um “vagueia aleatoriamente nas sombras de si mesmo até que se afoga em si mesmo”. A agonia, em sua raiz grega, implica o agon, a luta. Luta, no entanto, também como possibilidade desenvolvimento:

Conflitos não são destrutivos. Eles têm um lado construtivo. Só de conflitos surgem relações e identidades estáveis. A pessoa cresce e amadurece pelo trabalho sobre o conflito. O sedutor na fenda é que ela desfaz tensões destrutivas acumuladas sem o trabalho sobre o conflito, que demanda muito tempo (Han, 2022ª: 45).

Assim, o eros retoma o enigma que perturba o ser pela proximidade; ele “possibilita uma experiência do outro em sua alteridade, resgatando-nos de nosso inferno narcisista” (Han, 2017: p.11). A relação erótica, “que arranca o sujeito de si mesmo e direciona-o para o outro” (Han, 2017:10), requer uma tessitura simultânea da singularidade com a pluralidade; e demanda uma maneira de escapar à simetria, à hierarquia e à ordenação racional dos seres e do mundo. E requer, sobretudo, um movimento do eu na direção do outro a ser obtido apenas em uma contemplação tornada cada vez menos possível.

A relação erótica diz respeito ao modo como nosso encontro com o outro não pode ser reduzido à um exercício de comparação e aproximação ao “eu”. A redução do outro ao eu não é um exercício de alteridade, mas uma hipertrofia do ego, um egoísmo que se opõe, como barreira, ao enigma da alteridade. Han descreve como, nas sociedades neoliberais, os regimes mercadológicos vão igualando todas as diferenças, até não mais termos contato com a experiência do eros. Tal experiência, marcada pela assimetria pela exterioridade do Outro, nos coloca diante de um enigma para o qual não há resposta prévia.

A alteridade não é uma diferença consumível. O capitalismo vai eliminando por toda parte a alteridade a fim de submeter tudo ao consumo. Além do mais, o eros é uma relação assimétrica com o outro. Assim, ele interrompe a relação de troca. Sobre a alteridade não é possível estabelecer um registro de controladoria. O eros não entra no balanço de débitos e créditos (Han, 2017:35).

A subjetividade como acolhimento de outrem, como acolhimento da ideia de infinito que desorganiza o eu efetivam-se em Outramente que ser (Lévinas, 2011), obra que trata da responsabilidade como a estrutura essencial, primeira e fundamental da subjetividade (Alford, 2004; Marques; Moriceau, 2019; Martino; Marques 2019). Trata-se de transitar pelas proximidades de eros-philos, a amizade: “a amizade produz, portanto, uma relação de identidade entre si mesmo e o outro. Percebe-se a si mesmo, desfruta-se a si mesmo no outro. Curte-se, apraz-se no outro” (Han, 2022b: 119).

Han (2017) mostra que o encontro ético com o outro interrompe a tendência do eu de conceber o mundo como espaço de poder. Interrompe o jogo da redução ao mesmo. Tal encontro instaura uma “relação sem relação”, na qual o outro não é nomeado, ele é invocado. A visão não prevalece no encontro com o rosto, pois ela é uma forma violenta de relação com o outro,imobiliza seu sujeito/objeto como tema (Rae, 2016; Vieira; Marques, 2016). A visão falha em fazer justiça ao outro.

Há um conflito delineado nesse esforço de tornar certas vidas ininteligíveis: a visibilidade e a audibilidade pode até ser alcançada pelo apelo do rosto, mas o que impede o reconhecimento da humanidade dessas vidas é o enraizamento de padrões normativos de julgamento e valores que depreciam, ofendem, causam danos profundos à pluralidade de formas de vida tecidas e retecidas cotidianamente nas experiências singulares de grupos de indivíduos.

II- O eros como a abertura de uma temporalidade

O eros diz de uma interrupção da tendência que o indivíduo tem de voltar-se para a interioridade, para a captura do outro via utilização de representações e conceitos, para a autoridade do Dito. Tal interrupção, que nos coloca diante do outro e nos solicita a criação de uma forma de responsabilidade hospitaleira, pode ser realizada de diferentes maneiras.

Por exemplo: se considerarmos que a fotografia não se reduz a um objeto de contemplação, mas tem capacidade de agência, podemos argumentar que ela permite um salto no tempo – ou a abertura de outras temporalidades – para a construção de um espaço diverso de contato com a alteridade. Pelo limiar aberto pela imagem, podemos percorrer nossos territórios interiores (espaços de pensamento, mas também de experiência), ampliando territorialidades em que o outro pode falar, ser escutado e respondido. Ao mesmo tempo, é preciso levar em consideração, sem condenação ou ingenuidade, o fato de que a imagem fotográfica está eivada de linhas de força responsáveis por sua orientação, na qual as intencionalidades de quem fotografa e de quem é fotografado raramente obedecem a uma certa simetria, sobretudo quando se leva em consideração o exercício de classificação do outro contido no ato de produção de imagem.

Vale retomar, aqui, as palavras de Christine Servais:

Note de bas de page 1 :

C’est-à-dire, aussi, comment le dispositif médiatique (re)produit-il la violence de l'événement ? La violence médiatique ne serait pas seulement liée à celle, « intrinsèque », de l'événement représenté, mais pourrait également concerner par exemple le rire ou le rêve « heureux » que le média rapporte et entend nous apporter. Et peut-être peut-on montrer, en s'intéressant au dispositif médiatique en termes de destination, en quoi ces deux formes de violence, celle de l'événement et celle du dispositif, sont étroitement associées.

Ou seja: como o dispositivo midiático (re)produz a violência do acontecimento? A violência midiática não estaria apenas ligada à violência “intrínseca” do evento representado, mas também poderia dizer respeito, por exemplo, ao riso ou ao sonho “feliz” que a mídia relata e pretende nos trazer. E talvez possamos mostrar, olhando o dispositivo midiático em termos de destino, como essas duas formas de violência, a do evento e a do dispositivo, estão intimamente associadas (2003:5)1.

As imagens podem oferece àquelas e àqueles à quem se endereça, um lugar de indeterminação, um espaço de ensaio, de saltos tentativos, de modo a rearranjar e redispor outra cena possível de ação, orientada por outra imaginação política. Assim, outras durações estão em jogo na erótica hospitaleira, outras temporalidades são consideradas e as próprias temporalidades do sujeito que olha ou fotografa também vão se transformando.

Sob esse aspecto, a imagem pode fazer parte da relação de eros, trazendo uma dimensão do feminino como tempo prolongado de acolhimento e hospitalidade (Ribeiro, 2019). Ela nos coloca em contato com outras durações que não são nossas: não somos apenas duração interior, mas temporalidades em movimento, produzindo espirais que se propagam em vários campos de escuta do dizer da alteridade. O colocar-se diante do outro se afirma também na resistência aos esquemas de classificação propostos – ainda que de maneira velada ou mesmo inconsciente – por quem está produzindo a imagem, sobretudo no sentido de pensar sua orientação a uma finalidade: em uma sociedade smart, como denomina Han (2019), a produção de imagens se associa às formas de autopoder exercidas pelos sujeitos nos sentidos de sua inserção em um circuito no qual a disponibilidade de si mesmo para o outro não se apresenta como a relação de eros, fundamentalmente, mas como a vertigem do consumo objetivado na “curtida” que representa o elo, ou vínculo, se tal pode ser chamado, mais efêmero com um outro – a selfie, neste caso, seria representativa desse exercício de poder.

Ao mesmo tempo, qual é a imagem dessa selfie? As imagens autoproduzidas podem ser interpretadas também como o desafio de uma presença que busca, em seu percurso pelos circuitos de distribuição em redes digitais, e mesmo sob o controle dos algoritmos – gerados por seres humanos, é importante lembrar – se apresentam como formas de resistência a uma série de sistemas de classificação vigentes.

A presença do rosto de um outro historicamente invisibilizado, a imagem do corpo heterodoxo, a emergência de novas estéticas pressupõe também um movimento de eros no sentido de questionar o poder no sentido de elaborar tecidos de contrapoderes simbólicos que desafiam, exatamente, os sistemas de classificação, propondo novas estéticas – por que não, novas belezas, no sentido mais simples da palavra – e se apresentando também como espaço de acolhida para quem se identifica com essas imagens. A acolhida, aqui, reforça a perspectiva de Eros enquanto elemento de vínculo, e o “curtir”, para além da superficialidade, talvez possa efetivamente significar uma expressão mais evidente de identificação. O outro, tornado visível, tem a potência de se tornar também local de agência e, ultrapassando a barreira do eu, tornar-se um nós:

Só o Eros tem condição de libertar o eu da depressão, do envolvimento narcisístico consigo mesmo. O outro é, visto assim, uma fórmula de redenção. Apenas o Eros que me arranca para fora de mim e para o outro pode vencer a depressão. O sujeito depressivo do desempenho é inteiramente desacoplado do outro. O desejo do outro, sim, o clamor pelo outro ou a “conversão” para o outro seriam um antidepressivo metafísico que rompem a casca narcisista do eu. (Han, 2022ª: 119).

O tempo do eros, ao ser tocado pelo outro, abre um limiar para a recepção acolhedora da alteridade: por sua estranheza, a relação afetiva permite um engajamento em um processo que vai além do eu, uma evasão e desapropriação que elabora a distância, vital para preservar o rosto e sua demanda.

Na ética de eros, o corpo é um evento e se estende para além da expressão da interioridade e dos limites da pela: o corpo, como evento relacional, estabelece uma situação que redefine as temporalidades da experiência de si e do outro (Ribeiro, 2019; Bernardo, 2011).

O contato com o feminino está ligado à temporalidade do eros, para o qual o corpo não é abstrato, mas se revela na concretude do corpo do outro. A temporalidade estabelecida pelo feminino está relacionada ao enigma da alteridade: esse enigma envolve alguns gestos ético-políticos específicos: abertura ao outro, desapropriação ou despossessão de si e elaboração de uma resposta à demanda feira pelo rosto. Esse corpo é, historicamente, eivado de formas de dominação que desafiam sua elaboração, dando origem, por exemplo, a toda uma recursividade de elementos simbólicos voltados exatamente para o apagamento de marcas do tempo. Quando tangencial ao poder simbólico, o corpo se apresenta como elemento patente de fuga do outro, tornando-se espaço de exibição de uma estética não apenas padronizada, mas também voltada para o consumo rápido – no lugar da identificação, a atomização voltada para uma competitividade embalada na proximidade com as esferas mais prestigiadas desse consumo.

Note de bas de page 2 :

La violence d’ordre symbolique, nous l’avons souligné, engendre des effets de domination. Cette domination se traduit empiriquement par un ensemble de gestes de soumission et d’obéissance. Cependant, à la différence de la violence physique qui produit une obéissance éphémère, la violence symbolique génère des effets durables. L’obéissance qui en résulte n’est pas dissimulée ou perfide, mais plutôt sincère et tenace puisqu’elle est ancrée dans les structures cognitives de l’individu.

A violência simbólica, como apontamos, gera efeitos de dominação. Essa dominação se traduz empiricamente em um conjunto de gestos de submissão e obediência. No entanto, diferentemente da violência física que produz obediência efêmera, a violência simbólica gera efeitos duradouros. A obediência resultante não é encoberta ou traiçoeira, mas sim sincera e tenaz, pois está inserida nas estruturas cognitivas do indivíduo (Landry, 2006: 88)2

Aqui se observa, com força, um dos movimentos relativamente comuns aos sistemas classificatórios do mundo social: a literalização da relação com o outro e consigo mesmo, mediada não pelas possibilidades éticas do encontro, mas com as variáveis meramente econômicas do consumo. O resultado é uma ausência de distinção entre o corpo enquanto discurso produzido e produtor e o corpo empírico que, em sua visualidade mais fácil e mais simples, tende a se apresentar como elemento de apreensão imediata. Dessa maneira, a visibilidade de um corpo pode representar tanto sua presentificação como espaço de acolhida de corpos semelhantes quanto apropriação de um discurso pela lógica econômica, que o envia de volta ao circuito de consumo pela via da literalização.

O eros recusa a apropriação que nega a diferença e a singularidade, oferecendo a capacidade de permanecermos abertos à chegada do outro, colocando a responsabilidade pelo outro antes de si mesmo; escolhendo a heteronomia (lei vinda do outro) antes da autonomia, inerente ao reconhecimento da alteridade (o reconhecimento de que nossa autonomia é sempre nossa heteronomia).

Para Fernanda Bernardo (2011), o feminino é ética e aceitação de que o cuidado do outro se impõe ao cuidado de si. O outro está sempre se aproximando, sem nunca chegar de fato, ele estabelece conosco “uma relação sem relação”, como vimos, uma relação entre dois separados, protegendo a qualidade de diferir, de adiar e de prolongar o contato. O eros atua nessa temporalização dos encontros e no adiamento de toda possibilidade de apreensão.

Dito de outro modo, e na interface entre Derrida e Levinas, a ética de eros atua preservando a separação, mas alimentando um processo constante de diferenciação na infinita vinda do rosto do outro em nossa direção. É como um jogo de retorno constante e permanente devir em que a identidade fixa é substituída pelos efeitos de um processo contínuo de deslocamento. Um enigma que se apresenta a nós sem demandar solução, apenas a preservação de um movimento constante que revele tanto as diferenças, quanto as possibilidades de contato que atuem não para ver no outro traços do idêntico, não para transformá-lo no mesmo, mas para amplificar a potência da diferenciação.

III- O enigma do outro e o poder simbólico

Enigma a ser trabalhado em uma constante de aproximações e distanciamentos, o outro se apresenta como mistério absoluto que não pode ser conhecido senão de maneira parcial, com todas as suas nuances de luzes e sombras, e na medida em que se apresenta a um olhar participativo, mas não expropriativo. O olhar que consome o outro o tira de si, reduzindo-o geralmente a um conjunto de imagens para consumo que, ao alardearem mostrar o indivíduo “autêntico”, contribuem exatamente para o contrário – tornar invisível qualquer elemento de alteridade na hipertrofia de uma única dimensão, levada ao extremo em sua estereotipificação nas grandes imagens da mídia. Não por acaso, “imagem grande” é uma das concepções de “estereótipo”, do grego stereos, “grande”, e typos, “marcação” ou “imagem marcada”.

A imagem estereotipada de alguém não lhe confere necessariamente uma dimensão de alteridade; ao contrário, ao lhe retirar a prerrogativa de uma existência contraditória e múltipla, requer dela uma unilateralidade passível de ser apreendida e julgada com uma rapidez proporcional ao desconhecimento – não seria talvez de todo errado creditar algo da chamada “cultura do cancelamento” a essa ilusão de conhecimento da totalidade do outro que, a rigor, o apresenta apenas como figura de exibição diante de um consumo voraz e, de certa maneira, eivado também de uma perspectiva tanatológica, como já analisava Edgar Morin (1995) ainda nos anos 1960.

Esse espaço de jogo que se abre entre a aproximação e a distanciação infinitas configura a hospitalidade incondicional na qual o “ser separado” é acolhido pelo “ser feminino”. Nesse caso, a relação erótica é também fonte de uma ética comunicacional, não só por ser a abertura de uma temporalidade através da qual se pode sair de si, mas também por ser um espaço de negociação, que escapa à tendência de encampar o outro pelo conhecimento.

A temática de eros como experiência de ausência de fusão e de encontro com a diferença nos revela o feminino como abertura de um tempo para a proximidade distanciada, para a elaboração de uma resposta ao rosto que não se baseia em leis ou normas gerais. Embora não se possa deixar de lado a lei como resposta possível ao sofrimento e à injustiça, o enigma do eros requer que a justiça possa brotar da preocupação e da não indiferença suscitada pela proximidade do estranho a quem oferecemos hospitalidade à alteridade:

A contradição é suprassumida pela assimilação, interiorização, do outro. O consumo “põe” explicitamente a identidade que é em si do sujeito e do objeto (…). A satisfação não surge da destruição do outro, mas da produção de continuidade, ou seja, da suprassunção da separação de sujeito e objeto. De modo que o consumo parece apenas a uma percepção finita como destruição das coisas (Han, 2022b: 76)

A relação de eros evoca novas formas de vida para além das regras institucionalizadas, permitindo a construção de um comum pautado por um processo de comunicação cujo desafio é preservar a diversidade, alterando condições desiguais de vulnerabilidade, para privilegiar a indeterminação, a imprevisibilidade da ação que e, ao mesmo tempo, hospitaleira e antagonística.

O conflito, vale recordar, não significa um problema – seu oposto inicial, o consenso, talvez o seja quando resultado da entronização de sistemas de classificação a respeito dos quais qualquer discussão se apresentaria como indesejável – enquanto resultado de um encontro pautado na necessidade de reivindicar um outro enquanto semelhante, igual, mas não idêntico. O discurso agonístico – “agon”, em grego antigo, é “luta” – se apresenta também como condição de vida com o outro: uma relação na qual exista um consenso absoluto a respeito de todas as questões só é possível mediante o apagamento psíquico do outro, em uma das formas talvez menos visíveis de violência simbólica na qual não existe propriamente uma relação de reciprocidade e troca, mas na qual o indivíduo dominante está em relação consigo mesmo através do outro.

A literatura sobre relacionamentos abusivos psicológicos poderia, se convocada, trazer uma série de exemplos a respeito dos efeitos dessa apropriação absoluta da alteridade reduzida ao eu de um dos participantes da relação. O elemento de violência se torna tanto mais patente quanto é interiorizado pelo sujeito dominado em tentativas de racionalização da questão (“é só uma fase”; “ele é assim, fazer o quê?”; “ele vai mudar com o tempo”) que, a rigor, sugerem uma perspectiva na qual a reafirmação da esperança não se dá como afirmação de um futuro, mas como negação de um presente. Nas palavras de Christine Servais:

Note de bas de page 3 :

Le rapport symbolique à l'autre engage une certaine violence : l'acte de nomination, par exemple, est à lui seul acte de domination, ce sont des choses aujourd'hui entendues. Bien que l'on oppose traditionnellement rapport de force et rapport symbolique, la force n'est pas soluble dans la signification, et il convient d'interroger la tension qui les tient ensemble (…)

A relação simbólica com o outro envolve uma certa violência: o ato de nomeação, por exemplo, é em si um ato de dominação, são coisas compreendidas hoje. Embora tradicionalmente oponhamos uma relação de força e uma relação simbólica, a força não é solúvel em significado, e é apropriado questionar a tensão que os mantém juntos (...) (2003:7)3

É aí que talvez a perspectiva do eros possa trazer uma contribuição importante, seja para a sociabilidade humana, seja para a realização de pesquisas no campo das humanidades. Não há como fazer pesquisa a partir de seu quadro reflexivo sem uma disponibilidade para os outros e para a tarefa ética exigida nesse contato: uma aproximação da singularidade daqueles junto aos quais realizamos nossa investigação, o que acarreta uma transformação singular da pesquisa, de nós mesmos e daqueles com quem compartilhamos a pesquisa, sempre em movimento e mudança. O outro traz diante de nós um chamado, uma exterioridade radical que coloca em questão a soberania absoluta do “eu” e de sua autoridade, seja como sujeito ou pesquisador.

Considerações finais

Relação de poder envolta em um campo simbólico de referências muitas vezes invisíveis, no qual determinadas prerrogativas e modos de ser, associados às possibilidades de reconhecimento e sucesso são – em um paradoxo – visivelmente invisíveis, a atividade de pesquisa não escapa a esse tipo de relação na qual a identidade do outro, por vezes, é esquecida enquanto uma singularidade e reduzida ao “objeto”, ou mais ainda, “objeto de pesquisa”: falar das relações do poder e de eros não permite que se esqueça uma dimensão autocrítica em termos de quem pesquisa – há uma política na relação com o outro ao qual se endereça uma pergunta pelo saber, e a afetividade do conhecimento implica o reconhecimento das tramas de poder simbólico exercidas nesse terreno. Como afirmam Cordeiro, Friede e Miranda (2018:35), “esse poder invisível presente na sociedade do desempenho que age sobre o indivíduo “livre” através de uma coação invisível, que atua de forma que o próprio indivíduo age sobre si mesmo ao ponto de coagir-se (autocoação), para se tornar mais eficiente”.

Os afetos envolvidos na relação erótica ajudam a fabular um imaginário político no qual não é o “eu” que constitui o Outro, mas, ao contrário, o eu é constituído pelo enigma do rosto do outro. Tal vínculo comunicativo é traçado pelo respeito que “consiste justamente em me reconhecer comandado pelo rosto do outro, que, por sua vez, também está sob meu comando” (Carrara, 2010:127). Os afetos nos instigam a refletir acerca dos motivos que nos levam a lutar para preservar a vida dos outros: eles ativam sentimentos morais de empatia que vão além do exercício de nos colocarmos no lugar dos outros. De nada adianta nos projetarmos na situação de experiência do outro se os quadros morais de julgamento das vidas permanecem os mesmos.