Impessoalidade, técnica e o cenário pós-pandêmico: perspectivas heideggerianas Impersonality, technique and the post-pandemic scenario: heideggerian perspectives

André Luiz Sueiro 
and Roger dos Santos 

https://doi.org/10.25965/trahs.4413

O presente artigo discute, a partir da leitura de pensadores da história, para uma perspectiva heideggeriana, as possibilidades de aumento da impessoalidade no cenário pós-pandemia, apresentando uma problematização do aumento da tecnicização da vida por conta das (necessárias) medidas adotadas para o combate à pandemia. Com isso, se pretende discutir como alguns fenômenos atuais que levam à desumanização ou, mesmo, empobrecimento do ser, apontam numa direção de redução da autonomia e da constituição de um mundo totalmente administrado, o que claramente pode anular as potencialidades de escolha e ação do homem, em seu poder-ser mais próprio. Em contrapartida, ressaltam-se as perspectivas de Heidegger em torno do cultivo do pensar e do relacionamento criativo e poético como forma de cuidado humano.

Notre article traite, à partir de la lecture des penseurs de l'histoire, dans une perspective heideggerienne, des possibilités d'impersonnalité accrue dans le scénario post-pandémique, présentant une problématisation de l'augmentation de la technification de la vie, en raison des mesures (nécessaires) prises pour lutter contre la pandémie. Nous analyserons comment certains phénomènes actuels qui conduisent à la déshumanisation ou même à l'appauvrissement de l'être, tendent vers une réduction de l'autonomie et la constitution d'un monde entièrement géré, qui peut clairement annuler les potentialités de choix et actions de l'être humain. D'autre part, les perspectives de Heidegger sont mises en évidence en ce qui concerne la culture de la pensée et la relation créative et poétique comme une forme de protection de l’être humain.

Este artículo trata, a partir de la lectura de pensadores de la historia, en una perspectiva heideggeriana, las posibilidades de aumento de la impersonalidad en el escenario postpandemia, presentando una problematización del aumento de la tecnificación de la vida en razón de las (necesarias) medidas adoptadas para luchar contra la pandemia. Con ello, se pretende discutir cómo algunos fenómenos actuales que conducen a la deshumanización o incluso al empobrecimiento del ser, apuntan en una dirección de reducción de la autonomía y de constitución de un mundo plenamente gestionado, que claramente puede anular las potencialidades de elección y acción del ser humano, el hombre, en su poder-ser más propio. Por otro lado, se destacan las perspectivas de Heidegger en torno al cultivo del pensamiento y la relación creativa y poética como forma de cuidado humano.

From the reading of thinkers of history and a Heideggerian perspective, this article deals with the possibilities of increasing impersonality in the post-pandemic scenario, presenting a problematization of the increase in the technification of life due to the (necessary) measures taken to fight the pandemic. With this, it is intended to discuss how some current phenomena that lead to the dehumanization or even the impoverishment of the being, point in a direction of reduction of autonomy and constitution of a fully managed world, which can clearly annul the potentialities of choice and action. of the human being, man, in his most proper power-being. On the other hand, Heidegger's perspectives are highlighted regarding the cultivation of thought and the creative and poetic relationship as a form of human care.

Contents

Full text

Introdução

A reflexão sobre o futuro após a pandemia é uma tarefa inglória, já que não é possível descrever com precisão o que vai acontecer: com base em determinados fenômenos atuais, o que se pode fazer é pensar criticamente as condições objetivas que, de forma estrutural e histórica, marcam nossa experiência cotidiana, tanto em sentido individual como social. Refletir sobre as contradições do processo, entendendo que por mais diferentes que sejam as formas de ser sujeito no mundo atual, a pandemia representa uma invasão que desafia a maneira com que comumente lidamos com a realidade, nos afetando a todos, em todas as dimensões.

Uma das questões bastante problemáticas da pandemia foi a utilização de dispositivos tecnológicos para o controle da pandemia: em alguns países, como a China, medidas de monitoramento de infectados e de controle direto de sua circulação, por meio de apps que, via gps, enviavam informações em tempo real para agências governamentais, o que permitiu inclusive sanções legais. Outra questão bastante instigante deveu-se à constituição dos comitês científicos que, sob a regência dos governantes de estados e países, estabeleceram as medidas a serem adotadas, num regime de exceção que se demonstrou efetivo e, do ponto de vista sanitário, necessário, mas que aponta em uma direção que parece concretizar algumas tendências quase totalitárias de controle social.

Nesse sentido, nunca foi tão atual a discussão de Foucault a respeito da biopolítica e das formas sutis de produção de sujeitos que, sob a aparência de liberdade, encontram-se sujeitados por poderes e saberes que desconhecem: diante de um fenômeno tão ameaçador como a pandemia, mesmo países que obtiveram sucesso em termos de combate à pandemia pagaram o preço de um alto nível de cerceamento tecnológico e estatal, de contornos problematicamente totalitários, o que é visível em alguns países asiáticos. Ninguém duvida que a tecnologia é importante ferramenta, mas cumpre perguntar, de forma crítica, sobre as dimensões de impessoalidade que, de forma decisiva, as tecnologias acabam por consagrar.

Esta reflexão não pretende negar a importância ou mesmo a eficácia das medidas adotadas, o que poderia denotar uma postura anticientífica e negacionista como muito se viu (e ainda se vê) nas circulações de materiais duvidosos e toda sorte de fake news nas redes sociais. O que se pretende aqui é, a partir das reflexões sobre o crescente avanço da técnica nos domínios da vida humana em praticamente todas as frentes, estabelecer uma reflexão sobre as contradições do processo, apontando os perigos presentes nos discursos e práticas que defendem uma tecnicização crescente da existência humana: de fato, o que representa a redução de toda e qualquer discussão sobre questões de ordem humana e social às possibilidades que a tecnologia dispõe, como se a solução para os problemas fosse advir do aumento do controle tecnológico da vida?

A pergunta que guia estas reflexões é: não estaríamos diante do perigo de reduzirmos as possibilidades humanas de ser e de criar a uma condição de submissão ao aparato técnico, como se esse fosse nosso inevitável destino? De forma mais sucinta, o que resta de pessoal num mundo caracterizado pela impessoalidade? Se num momento de crise sanitária e de riscos globais assistiu-se a um aumento nas formas administradas de ser sujeito, não seria necessário perguntar pelos limites dessa forma de produzir subjetividade, sob pena de reduzir o homem àquilo que Heidegger chamou de fundo de reserva, isto é, alguém destituído de seu caráter próprio de humanidade?

A análise que segue se dividirá em duas partes: na primeira, serão brevemente apresentadas algumas balizas históricas na compreensão das relações entre homem e tecnologia, apontando na direção de um processo crescente de envolvimento e agenciamento da vida, mas que possuía aspectos não tão avassaladores, sobretudo pelo cultivo de aspectos não técnicos como a religião, a mística, a arte e a filosofia. Na segunda parte, serão discutidas algumas noções importantes na problematização heideggeriana da técnica, o que permitirá que se descortine o horizonte de uma possibilidade de redução e achatamento técnico da humanidade, no que serão daí deslindadas as perspectivas de crítica e resistência. A partir dessas reflexões, pensamos ser possível problematizar a situação atual, apontando perspectivas no sentido de preservar a os aspectos pessoais e criativos do homem em meio à escalada de impessoalidade que ameaça assolar as sociedades contemporâneas.

Aspectos históricos na relação homem-tecnologia

Muito se discute se o ser humano é, de fato, um ser gregário ou não, embora seja fato que ele viva em sociedade. Em sentido antropológico, o homo sapiens foi o tipo humano que melhor se adaptou às transformações e, também, o que mais conseguiu desenvolver tecnologias, o que possibilitou a permanência da espécie desde tempos imemoriais.

Por tecnologia, destaca-se, a possibilidade de resolver situações, ou criar dispositivos que contribuam para a completude de uma tarefa. A breve explicação do verbete se faz necessário para a clareza de que desenvolver tecnologia é resolver uma demanda, portanto está para além da circunscrição de aparelho digital.

Qual caminho se trilhará na presente reflexão quando se traz à baila a figura do homo sapiens e de desenvolvimento tecnológico? A integração ao meio, ao espaço, que se fará lugar e, principalmente, será organizado e otimizado para que a sociedade se estabeleça. O leitor poderá pensar mais remotamente…

Anterior ao Sapiens houve tantos outros tipos humanos, que foram extintos. Duas características em comum com a espécie triunfante: viver em grupo, compreender o meio para suprir necessidades, sobretudo a fome e, proteger-se, da descoberta do fogo, peça emblemática do paleolítico, em diante, humanos desenvolveram ferramental para melhor caçar e pescar, portanto mitigar a fome (Diamond, 2010).

Nota-se a até este ponto a aplicação racional das ações. Manter-se e cuidar-se, tanto de si, quanto do outro, porque também é constituinte do grupo, da família era perpassado por algo maior, incompreensível, poderoso e que fora objeto de interesse já há dezenas de milhares de anos: o místico, o espiritual, campos que (até onde se sabe) aquelas pessoas de muito tempo atrás, não poderiam ter problematizado.

Está posto o elo entre racionalizar e sentir. Será da incompreensão das ações do meio, que a espécie humana, sem que o Sapiens seja figura exclusiva, adotará o princípio de ligação imaterial com as forças da natureza. Logo, o problema se configura estético, portanto, a seara da arte está apta a ser visitada.

A produção humana de objetos portáveis para fins místicos tem “estranhos começos” (Gombrich, 1999), percebeu-se necessário materializar o era apenas magia. Desde pequenas peças que representam divindades até grandes pinturas produzidas no interior de cavernas, o princípio mágico estava presente, era algo oposto ao decorativo ou ao meramente figurativo, pois apresenta ao próprio criador, sua interpretação das forças que dão o tom da vida (Janson, 2001).

Apresenta-se a possibilidade de se pensar em dimensão e, experiência estética, conceitos que vão muito além da ideia de embelezar, tornar agradável, romper com o grotesco. Estética é condição do sentir que saca o ser de sua realidade material compreensível, porque entrega a esse ser a vivência de contemplar e sentir, dar-se à emoção a um só instante, fragmento de tempo livre do questionamento racional e, que, pode dar-se diante de algo, ao portar um objeto, ou, mesmo na construção imaginativa, valorar pessoas ou objetos ausentes, resgatar a memória de que foi de fato significativo, porque “as coisas sensíveis são objetos da ciência estética” (Baumgarten, 1993, § 116/ 54).

Ler tal produção para além de objeto de arte, que transcende o que possa ser dito belo, é fazer o exercício de compreender o uso do meio que tais pessoas praticaram, daí ter a na história da arte um pé de apoio. Avançar nesse sentido é tentar buscar nas raízes mais profundas da existência humana sua relação com o todo, da qual se constituíam parte.

O recorte apresentado até aqui é dos grupos nômades, já capazes de muitos feitos, ferramentas, armas, adornos e, imagens que, aprenderam, portá-las ou interagir com elas, oferecia amparo, proteção. A sensação de se pertencer ao lugar, diferente de colocar-se senhor do espaço. Quando se produz marcas no meio, se coloniza o espaço e o torna lugar, mero meio de passagem que ganhou significação e identidade, foi essa a transformação causada pelas pinturas de animais e rituais no mais recôndito das grutas e cavernas. Antes espaço de passagem, depois, experiências humanas grafadas pictoricamente em paredes naturais.

Para além da letra escrita, a produção audiovisual é ampla para representar a longa jornada humana, ainda que tal produção deva ser compreendida ligada ao seu tempo, ou seja, a consideração ao humano e seu potencial místico, ao passo que o racionalismo moderno é realização histórica de poucos séculos, recente, quando se tem por prisma, dezenas de milhares de anos.

A ideia de escrever é apresentada neste ponto porque tal tecnologia merece lugar na análise. Foi revolucionário desenvolver códigos que sintetizassem pictogramas, veio para resolver demanda organizacional, a lavoura e a necessidade do melhor operar esse sistema, que era base da vida em multidão. Obra do puro racionalismo?

A história mostra o contrário, pois a ajuntamento humano, agora organizado por camadas sociais, mostra que desde o projeto para novas cidades, o princípio místico estava posto. Sem que se avance para especificidades regionais, no oriente médio, ou, oriente próximo, houve marcadas relações com religiosidades locais, pois, havia poderio militar para proteger a cidade e os seus, mas havia também a aproximação com o imaterial.

A escrita ganhou diversos suportes, desde tabuletas de barro à página de papiro e, com maior longevidade, paredes, objetos públicos, tumbas. Estava posta, em algumas partes do planeta, outra forma de viver e organizar a sociedade, mas sem que se abra mão do espiritual.

Sedentarizar-se, organizar recursos e pessoas para geri-los foi outro avanço tecnológico de peso. A este ponto, acrescenta-se mais uma criação inédita, que abarca o coletivo: a cidade, enquanto tecnologia aperfeiçoada, pois desde a composição das mais longevas e rudimentares ferramentas, a técnica estava pautada pela sobrevivência, até o estacionar-se às margens de rios supridores de necessidades e deste ponto, a magia se configura em religião. No que tange tecnologia, a palavra está bastante intrincada no falar cotidiano, passa despercebida, sobrepõem-se sua complexidade, pois, como invenção, para materializar-se, aquela condição gregária mais longeva, foi reinterpretada e a cidade, locus do aglomerado humano, representava, pela técnica, o metafísico (Benevolo, 2005).

Obeliscos, totens, templos, praças, avenidas, objetos facilmente discerníveis no mapa da urbe, antes da preocupação com o deslocamento ou o melhor fluxo interno, eram pensados e construídos dentro de princípios invioláveis de fé e, desde a invenção da cidade, será no diálogo com a crença que, tanto mapa urbano quanto edifícios, foram pensados, porque manifestavam em si, a crença, e a exaltação às forças imateriais que guiavam o povo, no oriente ou no ocidente e, mesmo as construções em pedra representavam madeira de outrora (Ryckwert, 2009). Aqui já se sugere o entrelaçar da physis como a techné.

Note de bas de page 1 :

Este trabalho discute o ser humano, seu lugar enquanto tal, assim como o empobrecimento dessa humanidade em função da tecnificação. É sabido que na Antiguidade, mesmo no sociedade da época renascentista a escravidão foi presente. Por limites espaciais, o tema escravidão não será abordado. A inferência ao problema da escravidão se faz pela condição humana de submeter o outro à qualidade de objeto e aqui se entrelaça a cidade antiga e as camadas humanas nela residentes. Sob essa agudeza, o conceito de alteridade era incabível, no que faz menção a colocar-se no outro, parâmetro que transcende entender a diferença do outro, porque aí, lança-se a algo por demais amplo, ao passo que alteridade é estrito (ABBAGNANO, 2000), logo fora apenas no curso da modernidade, leia-se do humanismo renascentista adiante que tal debate avança, com destaque para o período já apontado, de forma mais clara a partir dos 1800, finalmente, período do ocaso dos sistemas escravistas.

Guardadas as proporções históricas, o que se entende por metrópole na atual realidade, já encontrava equivalentes há milênios. Ponto determinante a ser considerado: o hodierno é pragmático e lógico; o antigo dialogava proximamente com o seu senhor imaterial. Faz-se necessária a menção de que, relativamente recente, é o reconhecimento do homem enquanto tal, enquanto ser autônomo, pensante, consciente diga-se, a terrível mazela de escravizar o outro é compreensão de poucos (dois) últimos séculos1.

A cidade é organização bastante complexa, independente do tempo histórico. Ponto de tensão do mundo moderno: economia. O pragmático se coloca novamente; bastante diferente de problemas centrais na cidade antiga, na qual havia receios e temores de que espíritos adversos pudessem adentrá-la e trazer toda sorte de adversiades. Fica aberta a porta para se pensar crises, no plural, em função estar na etimologia do termo sua ambiguidade, desconstrução, dissolução, mas também, reorganização, reconstrução (Vannucchi, 2007).

É sabido a respeito de mais de um fim do mundo. A pré-história, enquanto prática cultural, calcada na produção ágrafa está, atualmente, limitada a povos não integrantes da lógica que mais se espraiou, da produção em larga escala para a geração de excedente, isso desde a Antiguidade. Pré-história e Antiguidade são antíteses, a se considerar que uma é ágrafa e outra detém tecnologia para codificar e grafar fonemas; Medievo e Renascença, pois o racionalismo veio em antítese à cultura prevalente e se inserem no mesmo problema, assim como a chamada cultura iluminista, cenários em que estruturas socioculturais, outrora robustas, ruíram, mas delas reconstruções foram operadas, e o que se vive atualmente se relaciona.

A contemporaneidade é espelho para o pensar de Vannucchi (2007), porque, mesmo debruçada sobre aparatos digitais e, frutos de crises, a reconstrução é contínua e abarcadora da história e, no presente século, cabe a reflexão a respeito do lugar do ser humano, sob uma leitura ontológica desse ser, no que se destaca o atual contexto, perpassado pela pandemia.

Foi com esse avançar dos séculos em que se coloca a crise humana, sob compreensão ontológica, porque ao término de mundos dos quais a religiosidade gozava de tal ontologia, a racionalização crescente, em busca da lógica e otimização de sistemas, dos mais diversos, colocou ser humano no paralelo das ações. Quem deveria ser o objetivo último das inquietações, perdeu lugar para a técnica, para produtos, serviços, que carecem de aporte financeiro para serem desdobrados.

A memória foi reconfigurada. Cultura e patrimônio histórico foram transformados em atrações ao sabor da lógica de mercado, para o arrepio do historicismo que caracterizou a modernidade e suas promessas de sociedade perfeita, em consonância com as transformações sociais desencadeadas na segunda metade do século XVIII, revoluções na técnica, na economia, na sociedade, e desta última, anunciada como livre, igualitária e individual.

Para objetos que foram marcos da sociedade, portanto suporte para a memória, materializada na tradição, atualmente, valem versões e versões das mais variadas, narrativas efêmeras pari passu à fugacidade dos dados, pois os símbolos referenciais foram reconfigurados, ressignificados, readaptados para a visitação virtual, e, assim, no turbilhão de dados e imagens disponíveis na rede, memória, história, identidade, significações se enfraquecem.

No cruzar de tais desdobramentos está o ser humano, que tenta encontrar aconchego tal como fora há milênios, no tempo histórico da permanência e da tradição, que coloca as pessoas em condição de mudança ininterrupta, incerta, melancólica, afinal, desde aquele citado século XVIII, transcorreram menos de três séculos, o que, em termos humanos, é bem pouco tempo, no que se diga, trabalho rural ou urbano, que gerara a identidade de quem desempenha tarefas, dos quais os exemplos são vastos, do Filósofo, do Historiador, do Economista, do Pintor, do Arquiteto, enfim, aquela ideia de que a profissão se colocava quase como o sobrenome da pessoa, neste tempo, rareia, ao mesmo peso em que a insegurança se densifica, porque o ser carece de porto seguro. Clareia-se o lugar daquele homo sapiens na realidade racionalista de mercado e, ainda no raciocínio de Vannucchi (2007), nas desconstruções movidas pela crise, de uma realidade na qual a reificação humana, em favor da técnica, é visível, no pós-pandêmico tal realidade persiste, mas na busca pela alteridade, para a contemplação ontológica do humano, a crise deu fruto, dela se percebe a necessidade de ver, para além de olhar, o humano e sua condição.

Problematização heideggeriana da técnica

A tecnologia torna-se o grande elemento que possibilita a vida nas grandes cidades, possibilitando a racionalização e planejamento de todas as esferas da vida, o que suscita uma série de questionamentos interessantes. Embora o homem seja o criador da cidade, aparece um dado um tanto paradoxal, na medida em que o homem se organiza existencialmente de acordo com a cidade, tornando-se parte dela de um jeito inusitado: os elementos da cidade se adaptam às necessidades dos indivíduos (trânsito, serviços, horários, instituições), ou são os indivíduos que se condicionam a partir dessas estruturas? O que há de escolha individual quando se necessita enfrentar um congestionamento ou uma fila de banco, um serviço de telemarketing ou um relógio de ponto no trabalho? Ter um carro ou um notebook é mais uma realização pessoal ou uma necessidade prática, sobretudo para alguns profissionais? Tudo isso existe para satisfazer às necessidades dos indivíduos, ou para gerar essas mesmas necessidades?

As perguntas aqui colocadas se somam a muitas outras, desvelando a dificuldade de se pensar o que seriam as condições de existência humana no mundo contemporâneo, já que o processo de crescimento das cidades e a proliferação de estilos de vida e concepções de mundo não se encontram no domínio do homem: não nos encontraríamos numa situação em que os dispositivos técnicos ditam nosso ritmo de vida, delimitando de antemão o campo em que vivemos nossa vida? Em sentido mais específico, essas provocações a respeito da cidade acabam por trazer à tona um questionamento mais amplo, a respeito do processo da técnica que subjaz a esses fenômenos: a racionalização de tudo, que traz seus benefícios e impulsiona o desenvolvimento urbano, não corresponde também ao processo de invasão da existência humana, tornando-a mera engrenagem desse processo? O que se pode esperar do futuro do homem nesse contexto de assimilação de tudo pela técnica?

A respeito da técnica, convém analisar o questionamento realizado por Heidegger, na medida em que este, não sendo propriamente um filósofo da ética no sentido mais comum do termo, propôs uma análise fenomenológica da técnica trazendo certas aberturas para uma meditação genuinamente filosófica da técnica, indo além daquilo que, tradicionalmente, se propunha como uma interpretação: a compreensão mais comum de que a técnica é algo neutro, não sendo nem boa nem má, mas dependente do uso. Esse modo de ler o fenômeno, que considera um cálculo entre meios e fins, desloca a responsabilidade dos produtores da tecnologia (cientistas, engenheiros, tecnólogos, etc.) para o domínio da ética e da política: a finalidade a ser empregada é um problema da sociedade, já que o interesse dos pesquisadores da área restringe-se a procurar o máximo de desenvolvimento e possibilidade de exploração da natureza e intervenção no mundo natural.

Entretanto, a reflexão ética ao longo da história está longe de chegar a um consenso: de fato, quantos não são os sistemas filosóficos que propõem algum modelo de fundamentação do agir humano, seja num sentido teleológico, seja num sentido deontológico? Nesse sentido, qual teoria ou paradigma ético deve ser utilizado para determinar as finalidades justas e os usos adequados da tecnologia? Estará a decisão restrita aos políticos instituídos, que teriam a obrigação de esclarecer e legislar a respeito? Se sim, com base em que concepções éticas? Se não, então quem deve fazê-lo? Como afirma Jonas:

Tudo isso se modificou decisivamente. A técnica moderna introduziu ações de uma tal ordem inédita de grandeza, com tais novos objetos e consequências que a moldura da ética antiga não consegue mais enquadrá-las. (...) Decerto que as antigas prescrições da ética “do próximo” – as prescrições da justiça, da misericórdia, da honradez etc. – ainda são válidas, em sua imediaticidade íntima, para a esfera mais próxima, quotidiana, da interação humana. Mas essa esfera torna-se ensombrecida pelo crescente domínio do fazer coletivo, no qual ator, ação e efeito não são mais os mesmos da esfera próxima. Isso impõe à ética, pela enormidade de suas forças, uma nova dimensão, nunca antes sonhada, de responsabilidade (Jonas, 2006: 39).

A dificuldade não é pequena quando se trata da Filosofia: em que medida se pode, na atualidade, lidar com a especialização sempre maior das ciências e dos domínios de conhecimento, que relegam a filosofia a uma posição discreta, já que reservada aos seus especialistas? Refletir, fundamentar, contemplar, meditar, são algumas das noções que, num mundo digitalizado e disposto pela eficácia da técnica, deixam de fazer sentido para a maioria das pessoas, na medida em que o questionamento mais profundo pelo sentido, que nasce de uma certa perplexidade diante da realidade que revela suas insuficiências, torna-se cada vez menos comum: se tudo funciona com um grau cada vez maior de perfeição, o que resta para ser questionado? Se há tantas invenções e coisas com que se ocupar, dada a velocidade e dos avanços tecnológicos, que necessidade se tem daquela atitude angustiante e tediosa de lançar perguntas pelo sentido da realidade? Se tudo é cada vez mais bem explicado, podendo ser reproduzido e inclusive melhorado, há espaço para se pensar no limite da existência humana, no que há de desconhecido e misterioso?

No texto A questão da técnica, Heidegger oferece uma análise da relação entre a técnica moderna e a ciência moderna, tratando de inverter a compreensão tradicional difundida segundo a qual a técnica é fruto da ciência, enquanto um desenvolvimento que, a partir da fundamentação matemática da física moderna a partir de Descartes e Newton (o chamado paradigma cartesiano-newtoniano), possibilitou a criação sempre mais complexa de utensílios e mecanismos com o objetivo de tornar menos penosa a existência humana. Essa compreensão, baseada numa visão antropológica e instrumental que coloca o homem numa condição de domínio da natureza e transformação da realidade, é vista pelo pensador alemão como simplista, na medida em que a essência da técnica permanece não questionada: enquanto se pensa numa tecnociência que solicita e coloca a natureza a serviço do homem, como domínio representativo do mundo por intermédio do cálculo, não se percebe que a própria constituição da ciência moderna é oriunda da metafísica, já que a matematização do mundo proposta pela ciência nada mais é que a radicalização do princípio metafísico que, com base na ideia de domínio do real pela representação conceitual, deseja transpor o mundo num sistema ordenado e totalmente conhecido e planejado.

A tese de Heidegger, exposta mais claramente, significa o seguinte: não é o domínio técnico que se origina na ciência moderna da natureza, mas bem antes o contrário, na medida em que o elemento constitutivo da ciência moderna provém do pensamento metafísico, enquanto um pensamento calculador. A história da filosofia, originada pelos gregos numa experiência de caráter poético, atinge um estágio decisivo na constituição da metafísica platônica, em que a concepção originária da verdade enquanto desvelamento (aletheia) acolhido pelo logos (enquanto poiesis) sofre um deslocamento em que a adequação, como processo de estabelecimento de certezas no domínio de um presente representável, torna-se o elemento fundamental do processo de conhecimento.

Neste quadro marcado pela representação, Heidegger diagnostica o esquecimento do ser, pois que o pensamento metafísico se detém no domínio do ente em sua dimensão de presença objetificável: de fato, o aspecto dinâmico da realidade não é levado em conta pela metafísica, mas apenas aquilo que é imutável por detrás do mutável. O aspecto temporal do homem enquanto aquele que interpreta o real é relegado ao esquecimento, pois que importa a capacidade da razão humana em formular conceitos objetivos sobre o fundamento da realidade. Definido como o ente que é capaz de representar racionalmente o mundo, no sentido de possuir a razão como uma faculdade natural a ser orientada corretamente (lógica), o homem detém-se não mais na pergunta pré-socrática por aquilo que, na complexidade da physis, se apresenta e se esconde num processo criativo e misterioso que apontava os momentos de um desvelamento ao pensar a ser recolhido com cautela na linguagem. Coloca-se agora num processo de objetificação da realidade e estabelecimento de conceitos que, na pretensão de ordenar o conhecimento num sistema explicativo que abranja a totalidade do real, termina por fixar como digno de ser pensado o âmbito do ôntico, no sentido daquilo que pode ser calculado, medido e processado em conceitos e leis gerais.

Em Ser e Tempo, esse processo de estabelecimento da metafísica é entendido como metafísica da presença, em que se admite como real aquilo que pertence ao domínio do representável, e como verdadeiro aquilo que possui uma relação de concordância lógica entre o pensamento e a realidade. Para Heidegger, esse modo de pensar exclui da Filosofia a própria pergunta essencial que ela poderia fazer, pois que a vontade de constituição de sistemas e teorias não coloca a questão essencial da existência humana enquanto o ente que não pode ser totalmente explicado pelo pensamento representativo: porque o homem existe? Qual o sentido do mundo? Qual o significado da existência humana? A filosofia historicamente afastou-se de uma reflexão mais demorada sobre essas questões, supondo-as já respondidas pelas teorias muitas que se construíram. A questão básica “porque existem os entes e não antes o nada?”, presente de forma central no texto Que é metafísica?, revela o caráter reducionista do pensamento metafísico que se encontra implícito no pensamento científico, já que apenas aquilo que pode ser medido ou calculado é concebido como integrante da realidade.

Muito embora se entenda a relação contínua entre a metafísica da presença e a ciência moderna, enquanto um mesmo processo representativo que, tendo no bojo a calculabilidade, desemboca na técnica moderna em seu caráter que tudo assimila, faz-se necessário aprofundar o momento específico dessa passagem, na medida em que a ciência se pretende distinta da metafísica. Com Heidegger, deve-se perguntar: quando e como se dá a passagem de um horizonte metafísico, marcado pela ontologia antiga e pela teologia medieval, para uma concepção científica em que a matemática aparece como o elemento central, sem que com isso se supere de fato a metafísica, mas antes, seja a sua radicalização?

Para o pensador, a constituição da subjetividade enquanto ponto de partida de todo conhecimento, com a construção dos fundamentos da objetividade enquanto garantia de certeza no acesso ao real pelo método matemático, tem uma figura chave: Descartes. A fundamentação do cogito como instância de conhecimento metodologicamente ordenadora do real inaugura a assunção da subjetividade como o fundamento de todo o real, donde as coisas possuem a sua razão de ser e seu princípio de inteligibilidade. Se tudo está em função do sujeito que sustenta e conhece o mundo, deve-se, outrossim, explorar ao máximo as possibilidades da natureza, colocando-a a serviço do homem. A liberação da máxima exploração da natureza, elemento central do ordenamento técnico do mundo, leva a reflexão heideggeriana a uma reflexão sobre as características do modo contemporâneo do representar, o que revela uma radiografia do tempo presente e perspectivas para o futuro do homem, na medida em que a relação do homem com o mundo torna-se cada vez mais problemática.

A subjetividade absolutizada e erigida como centro e fundamento de todo o real adquire contornos decisivos na consumação da metafísica realizada por Nietzsche, já que nele se percebe o domínio total da vontade de poder que tudo invade e dispõe em função de si mesma: se já em Descartes o ego cogito tem uma dimensão de ego vollo, seu ponto fulcral encontra-se na exaltação da vontade em que os instintos e a animalidade do homem são considerados como únicas instâncias de constituição da vida, numa inversão do racionalismo platônico em detrimento da imanência e da corporeidade. Essa vontade visualizada por Nietzsche, em que se contemplam a força e a superação de uma condição de inferioridade com relação às instâncias de poder (o poder se alimenta a si mesmo, irreversivelmente), permite que se desmascare o caráter arbitrário e dominador existente na moral: o domínio do comportamento humano, em larga escala, no sentido de uma domesticação humana, é expressão maior do pensamento metafísico que projeta no domínio do supra-sensível a verdadeira realidade, considerando o âmbito da existência humana como passageiro, imperfeito e não-digno de apreço. Os procedimentos educacionais, balizas da civilização ocidental, são para Nietzsche a imposição de um direcionamento da humanidade que a dispõe ao domínio dos mais fortes: no limite, o que constitui o homem é a vontade de poder.

Na esteira de Nietzsche, Heidegger percebe a pertinência da vontade de poder como um processo sempre crescente de acúmulo da vontade, que não deixa de querer a si mesma, não desejando nada fora de si, mas assimilando tudo: a vontade de poder manifestada na subjetividade torna-se a vontade de vontade, que assume contornos que vão além dos sujeitos. É isso que se pode ver, por exemplo, na técnica moderna: a vontade de exploração da natureza cresce cada vez mais, e quanto mais instrumentos e processos são desenvolvidos nessa direção, mais a natureza se transforma em reserva disponível, a ser armazenada, processada e disponibilizada para o uso. Como essa vontade tudo invade, sem freios, o homem torna-se também explorado e disposto: a ideia de domínio e planificação total da existência humana encontra expressões muito diversificadas na atualidade (informática, transportes, engenharia genética, etc.), chegando inclusive a considerar o homem como fornecedor de recursos a serem utilizados e melhorados.

Em termos gerais, a técnica moderna constitui-se numa forma de saber que não deixa de relacionar-se com a técnica antiga, sendo, porém, um tanto diferente: a techné, para os gregos, refere-se ao processo de desocultamento da própria natureza, seja em sua forma natural, seja pela intervenção humana, que a transforma. Como a physis se produz a si mesma, ininterruptamente, esse seu trabalho é entendido como techné, no sentido daquilo que pode ser compreendido e transformado pelo trabalho do homem. O artesão e o artista, nesse sentido, participam do modo de desocultamento da própria natureza, constituindo um modo de saber e operar que não retira da physis seu caráter de velamento, mas acolhe e torna claro aquilo que nela se desoculta. A techné, nesse sentido, é sempre um modo de poiesis, na qual se dá um relacionamento originário do homem com a natureza, já que não marcado pela representação ou pela disposição exploradora: o aspecto poiético, na arte e na poesia grega, é extensivo até mesmo ao trabalho e utensílios do artesão, pois que não retira das coisas seu caráter de coisas, isto é, não violenta as coisas em vista de uma exploração dos recursos nelas contidos, mas as respeita enquanto elementos desveladores da verdade.

Esse relacionamento de desocultamento com o mundo e as coisas, instaurado por uma abertura fundamental à verdade que se mostra e se retrai, é designado por Heidegger como Herstellen, enquanto que a representação de ordem metafísica é compreendida como Vorstellen, isto é, uma antecipação (abstração) no âmbito dos conceitos que tem seu parentesco na ideia de matema, base da representação matemática do real. Todo pensamento representativo, nesse sentido, possui um caráter de calculabilidade que, independentemente de sua expressão antiga ou moderna, é o caráter fundamental que preside e conduz todo o processo de interpretação tecnológica do mundo. O triunfo desse modo de dispor coincide, para Heidegger, no fim da Filosofia e na emergência da cibernética como ciência fundamental marcada pelo domínio matemático e informacional da realidade.

A questão do fim da Filosofia é tratada pelo pensador numa compreensão de acabamento da metafísica enquanto processo de domínio do real por intermédio da técnica e da ciência: o princípio da vontade de poder como vontade de vontade que, nas determinadas épocas históricas em que se intentou dizer algo a respeito do ser, presidiu o esquecimento da relação de co-pertinência entre o homem e o ser, torna-se imperante quando todo ente em sua totalidade é passível de ser disposto e controlado por meio do cálculo. No texto sobre o fim da filosofia, Heidegger explicita que, no fundo, a filosofia como metafísica sempre se caracterizou como a história do platonismo, no sentido da busca pelo fundamento: a confiança na capacidade da razão humana em fixar os elementos essenciais da realidade, apreendendo a entidade dos entes em princípios dos quais se pode deduzir a própria estruturação da realidade (quid) faz com que a construção de teorias e leis gerais seja a principal atividade no campo do conhecimento. Com isso, tem-se a fundação da ciência, enquanto busca do universal, que é coincidente com a fundação da metafísica como filosofia primeira: fundamentar, definir, sistematizar são as palavras-guia de um processo histórico em que a existência mesma das coisas e do próprio homem, no seu aspecto de desconhecido e aberto àquilo que não se mostra, passa ao largo, ou seja, a filosofia admite como digno de ser pensado apenas aquilo que se restringe ao domínio do ente concreto.

Os conceitos de ser, erigidos ao longo da história da filosofia, nada mais são que tentativas de desvelar o ente sem, contudo, respeitar seu caráter de velamento: a presentidade das coisas, em seu aspecto de objetividade perante um sujeito do conhecimento, nunca foi posta em questão de maneira tão radical. Em Ser e Tempo, o objetivo de Heidegger era, partindo de uma tematização e colocação fundamental da pergunta pelo ser no âmbito da existência humana em seu aspecto histórico de finitude e mortalidade, denominada como ontologia fundamental, realizar num segundo momento um projeto de desconstrução da história da ontologia, criticando noções de ser elaboradas pelos pensadores tendo por base o conceito de tempo. Muito embora sejam cada vez mais complexos os conceitos de ser na história da filosofia, o que para Heidegger demonstra a tentativa dos filósofos em corresponder ao apelo do pensar, o fechamento na metafísica da presença, enquanto condições de representabilidade do real dadas de antemão e não tematizadas, acaba por aprofundar o afastamento progressivo da metafísica e das ciências daquele âmbito fundamental da clareira, em que se pergunta pela essência do próprio homem sem, contudo, a recorrência ao cálculo e à representação.

As ciências em seu conjunto tornam-se cada vez mais especializadas sem que, com isso, consiga-se uma resposta ao menos aproximada daquela questão fundamental “que é o homem?” A ciência surgida nesse sentido só pode ser a cibernética, enquanto ciência do ordenamento e da planificação da realidade na perspectiva de seu controle total. O domínio da informação, nesse ínterim, abre um horizonte de ininterrupta expansão, já que a maquinização de toda a natureza, como informatização do real, domínio do Genoma, logística de grandes e complexos centros urbanos, etc., retira do homem aquele relacionamento natural com um mundo desconhecido e, por vezes, hostil: a previsibilidade dos fenômenos da natureza, a compreensão das causas de doenças e a tecnologia médica em espantosa expansão, a supressão de tarefas penosas, a capacidade ilimitada de comunicação em tempo real independentemente das distâncias, as possibilidades de hibridização do humano com as máquinas e outros organismos, são desdobramentos de um mesmo processo que opera desde que o ser foi compreendido por Platão como Eidos.

Nesse ponto, convém que se note o fio condutor do cálculo que, dispondo ainda que incipientemente do real na representação metafísica, torna-o totalmente objetivado na ciência moderna (a positividade do ente postulada pelo método indutivo) e termina por dispô-lo como reserva e estoque no curso da técnica contemporânea. Se a representação, enquanto um desdobramento do stellen (por, colocar) no sentido de uma vorstellen (presentificar, fixar, enquadrar), é o traço comum na metafísica (com a teologia) e na ciência moderna, na técnica ela adquire uma radicalização no sentido de um bestellen (armazenar, estocar, explorar), que coloca o real como algo totalmente dado a uma representação como cálculo e instrumento disponível à manipulação. O império da disponibilidade e estocagem do real que tudo assimila e transforma em matéria-prima, é chamado por Heidegger de Gestell (armação), enquanto manifestação da dominação da vontade de vontade que provoca e assimila o homem, tornando-o também ele fundo de reserva (bestand).

A essência do processo maquínico da técnica não pode, por essa razão, residir nas próprias maquinações ou nas descobertas e produções da técnica, vistas em si mesmas: a força de tudo provocar e dispor que transforma o mundo e o próprio homem em fundo de reserva não depende das máquinas ou processos de automatização, e nem do homem enquanto sujeito dominador e senhor da natureza. A violência do processo, que arrasta tudo em sua realização, impõe ao homem uma interpretação tecnológica da existência, isto é, não há como relacionar-se consigo mesmo e com o real sem a mediação das construções da tecnologia e suas maquinações. Nesse sentido, ela se torna o modo principal de relacionamento do homem com o ser: o perigo, mencionado por Heidegger, é de que esse se torne o único modo do homem referir-se a si mesmo, talvez não mais se colocando a pergunta pelo mistério de sua essência. A técnica se tornaria, nesse caso, o único modo de desocultamento do ente, considerando definitivamente o homem como mais um ente entre outros a ser disposto, calculado e manipulado em vista da extensão e expansão da vontade de vontade que rege a técnica.

Será a técnica em sua fúria exploradora o fim do homem, tal como sempre foi concebido? A possibilidade de fabricação do homem, numa superação de sua mortalidade e constante planejamento de seu nascimento, não permitiria à humanidade a construção técnica de um novo mundo e de um novo homem? Essas questões, bastante problemáticas, se agravam com a afirmação heideggeriana de que a técnica é um destino (Geschick), posto pelo próprio ser ao ocidente: será que o acabamento da história do ser marcará seu recomeço como a história de co-pertinência entre o ser e um pós-humano? O destino que o ser guarda ao homem será a de sua revisão técnico-genética em vista de um redimensionamento de sua condição?

Agora se pode entender a crítica dirigida pelo pensador à concepção antropológica e instrumental da técnica, segundo a qual a técnica é um mero meio para realização de fins, podendo ser usada tanto para o bem como para o mal: embora bastante difundida, essa concepção é irrefletida, na medida em que não contempla o fato de que a evolução da técnica estabelece novas configurações para a existência humana. A disposição da natureza realizada pela técnica moderna é pautada numa exploração que se objetiva a transformar a natureza em fábrica de recursos, a partir do cálculo e do planejamento, tendo por medida a necessidade do ser humano. Com isso, o próprio homem, enquanto explorador, pode se tornar também matéria-prima: “se o homem é, porém, desafiado e disposto, não será, então, que mais originariamente do que a natureza, ele, o homem, pertence à disponibilidade? As expressões correntes de material humano, de material clínico falam nesse sentido” (Heidegger, 2002A, p. 22).

O questionamento heideggeriano não visa aqui a uma condenação da técnica, mas promover uma busca pela sua essência: para ele, a essência da técnica é algo não-técnico, o que pode ser observado pela análise dos sentidos grego e moderno da técnica: o produzir grego é um processo de desencobrimento do mundo, num sentido que não é utilitário, mas que diz respeito ao desvelamento da verdade. A produção aqui não significa a mera confecção no sentido de um artesanato, nem apenas de se produzir uma estátua ou um quadro, pois que a própria natureza é entendida como produção, já que contêm em si o eclodir da produção (uma autopoiesis). Afirma Heidegger:

A produção conduz do encobrimento para o desencobrimento. Só se dá no sentido próprio de uma produção, enquanto e na medida em que alguma coisa chega a desencobrir-se. Este chegar repousa e oscila no processo que chamamos de desencobrimento. Para tal, os gregos possuíam a palavra aletheia (Heidegger, 2002A: 17).

A questão que impulsiona a técnica, nesse sentido mais originário, tem a ver com o desencobrimento da verdade, o que torna visível o sentido grego da palavra techné, em dois sentidos importantes: tanto o fazer artístico, não visto como mera habilidade artesanal, mas como algo poético, quanto associado à noção de episteme, designando o conhecimento em sentido mais amplo, enquanto a provocação de uma abertura que permite conhecer. Segundo Heidegger, Aristóteles entende que “a techné é uma forma de aletheuein” (Heidegger, 2002A: 17), dando forma àquilo que não se produz a si mesmo, fazendo com que o real se apresente neste ou naquele perfil. Nesse sentido, “o decisivo da techné não reside, pois, no fazer e manusear, nem na aplicação de meios mas no desencobrimento mencionado. É neste desencobrimento e não na elaboração que a techné se constitui e cumpre uma produção” (Heidegger, 2002A: 18).

A técnica moderna, que se impõe pelo domínio da representação, também se pauta pelo desencobrimento, mas o considera apenas como um calcular e armazenar, isto é, a disponibilidade da natureza, como fábrica de recursos (fundo de reserva), estabelece uma armação/composição (Ge-stell) que vai além do homem, enquanto uma força de reunião que desafia o homem a dispor do real no modo de exploração. O apelo de desencobrir o real que o homem recebe é respondido de forma reducionista pelo homem da técnica moderna:

Quando, portanto, nas pesquisas e investigações, o homem corre atrás da natureza, considerando-a um setor de sua representação, ele já se encontra comprometido com uma forma de desencobrimento. Trata-se da forma de desencobrimento da técnica que o desafia a explorar a natureza, tomando-a por objeto de pesquisa até que o objeto desapareça no não-objeto da disponibilidade (Heidegger, 2002A: 22).

A pergunta pela essência da técnica, agora, adquire uma dimensão totalmente diferente, pois que não depende da atividade técnica em si, mas do que está em jogo no processo de desencobrimento do real em que o homem está inserido, e do qual não pode se apoderar: se os gregos pautavam-se na poiesis enquanto um propor produtivo, a técnica moderna, com a utilização da física moderna, orienta-se pelo Ge-stell enquanto um dispor explorador. A tarefa da filosofia seria, nesse sentido, meditar sobre a essência desse desencobrimento, buscando aquilo que convoca o homem: se todo desencobrimento não esgota o real, mas mantém-no ainda como um mistério, torna-se necessário colocar-se à escuta daquilo que se mostra e se esconde, pois que a multiplicidade de formas de dizer tem a ver com as várias modalidades de desencobrimento.

O destino do homem na era da técnica pode ser visto como uma ameaça, se a disponibilidade exploradora não permitir mais uma proximidade com a essência da técnica, que corresponde àquilo que convoca o homem a meditar o mistério de sua própria essência. Aqui se vislumbra o perigo extremo, como afirma Heidegger:

A ameaça, que pesa sobre o homem, não vem, em primeiro lugar, das máquinas e equipamentos técnicos, cuja ação pode ser eventualmente mortífera. A ameaça, propriamente dita, já atingiu a essência do homem. O predomínio da com-posição (Ge-stell) arrasta consigo a possibilidade ameaçadora de se poder vetar ao homem voltar-se para um desencobrimento mais originário e fazer assim a experiência de uma verdade mais inaugural (Heidegger, 2002A: 30).

Embora se possa pensar que esta concepção é tecnofóbica ou catastrófica, a sequência do texto trabalha uma superação de certa visão maniqueísta da técnica, desnudando-a em sua ambiguidade: a técnica é um modo de habitar o mundo, que não esgota o habitar enquanto tal. A sentença de Hölderlin citada por Heidegger trata de dissipar qualquer dúvida nesse sentido: “onde mora o perigo é lá que também cresce o que salva” (Heidegger, 2002A: 31). Isto significa: a essência da técnica continua guardada, mesmo na época em que tudo é visto a partir do dispor explorador, o que corresponde à transformação do mundo em imagem. No momento em que se pode esperar uma aniquilação do homem pela técnica, abre-se o campo para um questionamento da essência da técnica, capaz de liberá-la: “Neste caso, uma percepção profunda o bastante do que é a armação (Ge-stell), enquanto destino do desencobrimento, não poderia fazer brilhar o poder salvador em sua emergência?” (Heidegger, 2002A: 31).

A pergunta pelo mistério da origem corresponde a uma pergunta pelo mistério de todo desencobrimento, o que abre de novo o pensar para aquilo que continuou até agora impensado: qual é a relação do homem com o mistério de sua essência? Se por um lado a técnica constrange o homem a ser mera engrenagem do processo, por outro permite a questão da ampliação das possibilidades de desencobrir o real, para além do pensamento representativo que, desde Platão, impera na metafísica. A linguagem, campo de luta em que se dá todo questionar e meditar, é entendida como o âmbito privilegiado em que se pode abrir o pensar à atitude de escuta, no sentido de um trazer à linguagem:

Na medida em que pensarmos com profundidade a expressão “trazer à linguagem”, destinada à linguagem, só isso e nada mais, na medida em que guardarmos isso que foi pensado como algo a ser sempre de novo pensado no futuro, dando atenção ao dizer, então teremos trazido à linguagem alguma coisa essencial do próprio ser (Heidegger, 2008B: 374).

Considerações finais

Tal questionamento possibilita uma busca por um novo começo do pensar: os pensadores pré-socráticos, antes da metafísica e suas instâncias de calculabilidade e controle, possuíam um relacionamento mais originário com o ser, já que não se propunham descobrir leis e manipular a natureza para o serviço do homem. A nosso ver, estaria aqui o início de uma meditação ética que, de fato, tematizasse o problema fundamental do destino humano, levando em conta não apenas aquelas formulações tradicionais no campo de uma filosofia dos valores, mas pensando no mais profundo da experiência humana no mundo. Nesse sentido, podem ser compreendidas as preocupações iniciais aqui colocadas, a respeito dos perigos de uma redução técnica do homem, sob o pretexto de que a adoção de medidas de controle tecnológico teria oferecido a saída diante da pandemia.

Para Heidegger, é necessária manutenção de uma postura de relacionamento criativo (poético), marcado pela abertura e pelo respeito aos limites do pensar, permite uma experiência privilegiada de desvelamento-encobrimento, numa postura de escuta daquilo que advém ao homem a partir do próprio mistério do mundo, mas que não pode ser captado nem por uma doutrina nem por conceitos abstratos, muito menos entregue a tecnólogos e desenvolvedores de tecnologia. Como pensa Heidegger, “a poesia é um construir em sentido inaugural. É a poesia que permite ao homem habitar sua essência. A poesia deixa habitar em sentido originário” (Heidegger, 2002B: 178).

Por fim, pode-se dizer que as reflexões de Heidegger oferecem questionamentos bastante radicais, por conta de colocarem em questão a tradição ocidental como um todo, bem como as condições de existência no mundo contemporâneo, conclamando a uma meditação sobre as origens da filosofia que, ao contrário de mero interesse acadêmico, fazem ver as dificuldades e as possibilidades de vida no contexto da técnica moderna. Diante de possibilidades atuais como as trazidas pela pandemia, talvez a reflexão de Heidegger pudesse, a partir de um deslocamento de perspectiva, oferecer provocações interessantes: de fato, não se vê a impotência da ética diante do avanço tecnológico e o aumento da impessoalidade, pois que marcada pela pobreza de uma visão meramente instrumental e antropológica da técnica que, ao invés de aprofundar a reflexão, termina por dar atenção para apenas uma parcela da ciência, enquanto que outros pensadores-pesquisadores continuam seus trabalhos, e que, enfim, a técnica acaba por ser destacada, ao passo que a subjetividade e sentir humanos perdem posições?

Diante de tantas indagações contemporâneas, Heidegger desponta não como um sábio que detêm respostas, muito menos como um profeta; apenas conduz uma meditação que encaminhe para um novo pensar, sem a pretensão de esgotar o real, mas antes o contrário: a humildade do pensador deve ser sempre a de alguém que se põe à escuta da sabedoria, num laço de amizade (por isso, filosofia). A pergunta sempre será, nesse sentido, a instância decisiva, “pois questionar é a piedade do pensamento” (Heidegger, 2002A: 38).