Políticas públicas em saúde mental indígena no Brasil Public policies on indigenous mental health in Brazil

Ana Clara Dorneles Wayhs ,
Beatriz do Amaral Rezende Bento 
et Fatima Alice de Aguiar Quadros 

https://doi.org/10.25965/trahs.1577

O presente artigo tem o objetivo de conhecer de que modo as políticas públicas brasileiras tratam a saúde mental indígena. Essa população, considerada vulnerável, sofre com o aumento constante de problemas psicossociais, fato demonstrado através do registro de taxas alarmantes de dependência química, violência e suicídio. Foram realizadas pesquisas em sites oficiais de busca, livros e notícias sobre o tema. Os resultados mostram que as políticas públicas voltadas para a saúde mental indígena existem na lei, porém encontram dificuldades na prática. Esse estudo espera contribuir com o levantamento de reflexões sobre as principais dificuldades enfrentadas, a exemplo da falta de indígenas ativos no processo de construção e execução de tais políticas, bem como o modelo médico hegemônico ao qual os grupos étnicos estão submetidos, desconsiderando suas diferenças culturais.

Le but de cet article est d’étudier comment les politiques publiques brésiliennes traitent la santé mentale des autochtones. Cette population considérée comme vulnérable,  souffre d’une constante augmentation de problèmes psychosociaux, patente à la lumière d’un enregistrement alarmant du taux de dépendance chimique, de violence et de suicide. Les recherches ont été effectuées à partir des sites de recherche officiels, des ouvrages et des informations sur le sujet. Les résultats montrent que les politiques publiques axées sur la santé mentale des autochtones sont bien inscrites dans la loi, mais rencontrent des difficultés, dans la pratique. Notre étude prétend contribuer à la réflexion sur les principales difficultés rencontrées, telles que l’absence d’implication de la population autochtone dans le processus de construction et d’application de telles politiques, ainsi que sur le modèle médical hégémonique auquel les groupes ethniques sont soumis, au mépris de leurs différences culturelles.

El presente artículo tiene como objetivo conocer de qué modo las políticas públicas brasileñas tratan la salud mental indígena. Esta población, considerada vulnerable, sufre de un aumento constante de problemas psicosociales, hecho demostrado a través del registro de tasas alarmantes de dependencia química, violencia y suicidio. Se realizaron investigaciones en sitios oficiales de búsqueda, bibliografía y noticias sobre el tema. Los resultados muestran que las políticas públicas orientadas hacia la salud mental indígena existen en la ley, pero encuentran dificultades en la práctica. Este estudio espera contribuir con el levantamiento de reflexiones sobre las principales dificultades enfrentadas, como por ejemplo, la ausencia de indígenas activos en el proceso de construcción y ejecución de tales políticas, así como el modelo médico hegemónico al que los grupos étnicos están sometidos, desconsiderando sus diferencias culturales.

The purpose of this article is to know how Brazilian public policies deal with indigenous mental health. This population, considered vulnerable, suffers from the constant increase of psychosocial problems, a fact demonstrated by registering alarming rates of chemical dependence, violence and suicide. This research was conducted on official search sites, bibliography and news on the subject. The results show that the public policies focused on indigenous mental health exist in the law, but they find difficulties in practice. This study hopes to contribute with the reflection of the main difficulties faced, such as the lack of indigenous people in the process of building and implementing such policies, as well as the hegemonic medical model to which the ethnic groups are submitted, disregarding their cultural differences.

Sommaire
Texte intégral

Introdução

O CENSO de 2010 mostra que o Brasil possui 896,9 mil indígenas, o que representa aproximadamente 0,4% de sua população total. Desses, 36,2% vivem em área urbana e 63,8% em área rural. Foram identificadas 305 etnias e 274 línguas indígenas. Sua pirâmide etária, principalmente a dos residentes em áreas rurais, possui a base larga e se reduz com a idade – típico de populações com altas taxas de fecundidade e mortalidade. Não foram contabilizados povos isolados, segundo recomendação da Fundação Nacional do Índio – FUNAI (IBGE, 2010). Esses dados levantam a discussão sobre a pluralidade étnica brasileira e suas diferentes necessidades, em especial no que tange à saúde.

A Constituição da Organização Mundial da Saúde – OMS (1946) afirma que o conceito de saúde está além da ausência de doença, constituindo-se de um estado de completo bem-estar físico, mental e social. Portanto, os três são elementos indissociáveis para a qualidade de vida de um indivíduo. Embora essa constituição não faça menção direta à saúde mental, nela está expresso que é direito de todos os povos, sem distinção, o acesso aos conhecimentos médicos, psicológicos e afins, para que se atinja o mais elevado grau de saúde. A Secretaria de Saúde do Estado do Paraná traz em publicação oficial que, para a OMS, não é possível estabelecer uma definição absoluta de saúde mental, tendo em vista que ela está sujeita às diferenças culturais e à subjetividade do ser (Paraná, n.d.).

Não há como falar nesse assunto sem lembrar dos determinantes sociais em saúde. Considerando que as pessoas são influenciadas por fatores sociais, psicológicos e biológicos, é possível inferir que a saúde mental pode ser prejudicada por fatores como a marginalização social, o estilo de vida e de trabalho e a exposição à violência (OPAS, 2018). Aqueles que estão mais sujeitos a agravos, como os indígenas, fazem parte das chamadas populações vulneráveis. Tanto é que o próprio Ministério da Saúde, em seu portal sobre a Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, reconhece que está ocorrendo um aumento na prevalência de transtornos mentais entre os indígenas, que vão desde problemas como a dependência química até o suicídio (Brasil, 2017a).

Nesse sentido, o presente artigo visa compreender a atual situação de saúde mental indígena no Brasil na perspectiva das políticas públicas. Para isso, é necessário compreender o contexto em que esses povos estão inseridos, bem como o ciclo de causas e consequências que se retroalimentam, levando ao sofrimento psíquico dessa população vulnerável. Da mesma forma, é preciso considerar o conceito de saúde adotado por esses povos. Dessa forma, tal estudo traz uma revisão dos mais recentes documentos e artigos que tratam especificamente do tema em questão.

Metodologia

O presente estudo é proveniente de revisão narrativa e reflexiva da literatura, possui caráter exploratório-descritivo. De acordo com Rother (2007), “os artigos de revisão narrativa são publicações amplas apropriadas para descrever e discutir o desenvolvimento ou o ‘estado da arte’ de um determinado assunto, sob ponto de vista teórico ou conceitual”. São textos que constituem a análise da literatura científica na interpretação e análise crítica do autor o que possibilita contribuir no debate de determinadas temáticas, levantando questões e colaborando na aquisição e atualização do conhecimento em curto espaço de tempo.

O processo de coleta do material foi realizado de forma não sistemática no período de janeiro a março de 2019. Foram pesquisadas em portais e bases de dados científicas, tais como: Pubmed, Scielo, Medline e Lilacs. O banco de dados foi sendo complementado com materiais indicados por especialistas na temática. Agregados aos artigos científicos, obteve-se materiais selecionados como: leis, decretos, livros, portarias e manuais que estabelecem e implementam as políticas públicas em saúde vigentes no Brasil.

Foram incluídos artigos publicados entre 2010 e 2018, que tratam dos temas “saúde mental indígena”; “políticas públicas em saúde indígena”; “saúde pública indígena”. Do mesmo modo, excluído publicações anteriores à 2010, bem como aquelas que tratam sobre povos indígenas não brasileiros e as que não tratam sobre saúde mental.

Por fim, estes materiais e artigos selecionados foram lidos na íntegra, categorizados em dois grupos: Problemas crescentes entre os indígenas e Políticas públicas em saúde mental indígena, seguidos de análise crítica e reflexiva.

Problemas crescentes entre os indígenas

A população indígena do Brasil apresenta alguns dos piores indicadores sociais do país (Brasil, 2013a), apesar de a promoção de ambientes saudáveis e proteção da saúde indígena ser uma das diretrizes da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Segundo o documento orientador da 6ª Conferência Nacional de Saúde Indígena (2018a), a qual ocorrerá em 2019, grande parte das terras não possui saneamento básico, abastecimento de água e é de difícil acesso. Muitas estão em situação de conflito, sofrem impactos de grandes empreendimentos e de prática colonialistas que provocam danos sociais e ao meio ambiente. Além disso, a marginalização e o preconceito a que essa população está submetida leva a necessidade de aceitação pelos dominantes, com intenso sofrimento psíquico. Desse modo, ocorre uma série de transformações em seus modos de viver, como a fragilização dos laços comunitários e a desorganização de práticas culturais. Sabe-se que a saúde desses povos é, intrinsecamente, ligada à terra e, portanto, esses determinantes sociais têm impacto direto na saúde mental das comunidades como um todo (Brasil, 2018b; Brasil, 2017b).

O Ministério da Saúde reconhece a população indígena como vulnerável e com alta incidência de problemas psicossociais, tais como a dependência química (álcool e outras drogas), uso abusivo e inadequado de medicamentos psicotrópicos, suicídio e violência (Brasil, 2017a). A própria instituição destaca ainda a delicadeza do tema, haja vista que a ideologia e o modo de gerir os sentimentos são variados entre as etnias.

Entre as questões complexas e prevalentes no país, está o uso de álcool e outras drogas – um problema de saúde endêmico. Segundo Menéndez (2013), em grupos étnicos o álcool pode exercer inúmeras funções, que vão desde a social, psicotrópica, alimentar, de transgressão e religiosa; até servir como intrumento de controle social, de caráter exploratório e de justificativa para violências. Sendo assim, cosidera-se que seu consumo tem consequências positivas e negativas. No entanto, há que se destacar que seu uso tem consequências diretas ou indiretas sobre a violência, acidentes, suicídio e outros problemas de saúde pública (Aureliano & Machado, 2012). Esse aumento da morbimortalidade associado ao álcool é bem observado no Brasil, tanto nos grupos étnicos, quanto na população geral (Menéndez, 2013)

A história indígena é marcada pela violência física e psicológica desde a colonização. Porém, somente a partir de 2006 os casos passaram a ser notificados e estão em constante crescimento, sendo que só no ano de 2017 houve 13.687 registros. A violência contra a mulher se faz muito presente, sendo que essas representam 84% dos casos de violência sexual e 72% dos casos. Sobre os agressores, tem-se que 68% é homem, 47% é suspeito de ter feito de uso de álcool, 24% é cônjuge da vítima, e a maioria ou tinha relação próxima, ou era a própria pessoa ou era desconhecido. A maioria das vítimas residia em zona rural e grande parte estava em casa. Esses dados do Ministério da Saúde (2018c) mostram que a violência étnica é relativamente alta.

Entre 2010 e 2017, houve um aumento de 55,7% de mortalidade por suicídio entre os indígenas, com uma taxa média de 12,3 óbitos por 100 mil habitantes – três vezes maior do que na população geral. Desses, 67,9% eram do sexo masculino e 47,7% tinham entre 10 e 19 anos (transição para a vida adulta). As regiões com maior taxa são Norte e Centro-Oeste. O aumento é decorrente da crescente vulnerabilidade, bem como da maior notificação de casos (Brasil, 2017b; Brasil, 2018b). Orellana, Souza C. C. e Souza M. P. S. (in press) afirmam que esses casos, principalmente na região Norte, ainda são subnotificados - portanto, o número pode ser ainda maior.

Políticas públicas em saúde mental indígena

A atenção à saúde indígena requer uma abordagem diferenciada, que se articule com a cultura tradicional desses povos. No entanto, a iniquidade dentro desse cenário persiste como problema não apenas no Brasil, mas a nível mundial. Em 1986, ocorreu a I Conferência Nacional de Proteção à Saúde Indígena, onde foi reivindicada a criação de um subsistema de atenção à saúde que atendesse suas necessidades específicas. Essa demanda foi atendida apenas em 1999, por meio da Lei nº 9.836/99, conhecida Lei Arouca (Pedrana, Trad, Pereira, Torrenté & Mota, 2018). De fato, esse tema passou a ser visto com mais importância pelo Estado apenas no fim da década de 90 (Langdon, 2004), principalmente pela maior visibilidade de complicações relativas à saúde mental – as quais, contraditoriamente, só receberam um olhar mais atento quase uma década depois, em 2007 (Batista & Zanello, 2016).

Em 1999, foi lançada, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS – e sob responsabilidade da Fundação Nacional de Saúde - FUNASA, a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas – PNASPI, que estabeleceu o Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas - SASI. Então, a participação indígena passou a ser considerada como premissa fundamental para o controle dos serviços e o fortalecimento de sua autonomia (Brasil, 2002). O SASI é composto por 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas – DSEIs, unidades gestoras da atenção primária em saúde em terras indígenas, distribuídos estrategicamente. Além dos DSEIs, a estrutura de atendimento é composta por Pólos-Base e Casas de Saúde Indígena. Existem 351 Pólos-Base, localizados em comunidades indígenas ou em municípios de referência, onde correspondem a uma Unidade Básica de Saúde - UBS. As demandas não atendidas a esse nível devem ser referenciadas para a rede de serviços do SUS. Em 2010, a gestão do SASI passou da FUNASA para a recém criada Secretaria Especial de Saúde Indígena – SESAI, vinculada diretamente ao Ministério da Saúde (Garnelo & Pontes, 2012).

Apesar de a PNASPI mencionar a importância da abordagem biopsicossocial para o êxito de suas diretrizes, não havia uma menção direta à saúde mental. Em 2006, o Departamento de Saúde Indígena – DESAI – da FUNASA finalmente colocou em seu plano de metas a formulação de programas de prevenção e intervenção em saúde mental, objetivando sua implantação em até 80% dos DSEIs do país (Pereira, Cemin, Cedaro & Ott, 2013). Porém, a regulamentação de tais programas foi feita apenas no ano seguinte, quando o Ministério da Saúde lançou a Portaria nº 2.759/2007 – primeiro documento relativo à saúde mental indígena no Brasil (Bomfim, Almeida & Carvalho, 2017).

A Portaria nº 2.759 lançou as diretrizes da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde Mental Indígena e estabeleceu a criação de um Comitê Gestor. Sua elaboração considerou reivindicações do movimento indígena e de outros setores, como: as deliberações da IV Conferência Nacional de Saúde Indígena e da Reunião Sobre o Plano de Saúde Mental Indígena para os DSEIs; os princípios gerais do relatório da III Conferência Nacional de Saúde Mental, os debates do II Fórum Amazônico de Saúde Mental e as diretrizes da Carta de Saúde Mental Indígena na Amazônia Legal; a Declaração de Caracas sobre a necessidade de enfrentar desafios relacionados às populações mais vulneráveis; a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas; e a Lei nº 10.216, mais conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, que estabeleceu a necessidade de respeito à dignidade humana das pessoas com transtornos mentais - um marco para o redirecionamento do histórico excludente e higienista da assistência à saúde mental brasileira.

Pode-se dizer que essa portaria, que poderia ter significado um grande avanço no que se refere à saúde mental indígena, não está sendo eficiente. Embora o Comitê Gestor tenha sido criado, seu conteúdo norteador não foi sistematizado, o que implica no comprometimento do monitoramento de suas ações (Bomfim et al., 2017). Ou seja, o documento não sintetiza uma política, mas apenas inicia os fundamentos da discussão a respeito das incumbências dos sujeitos desse processo – tanto dos profissionais de saúde, quanto das próprias comunidades indígenas (Pereira et al., 2013). Um exemplo de sua ineficiência é que não há profissionais da psicologia em número suficiente à demanda no subsistema (Vianna, 2012).

Segundo Batista e Zanello (2016), atualmente, a prática da atenção à saúde mental conta com uma área técnica na SESAI, composta por psicólogos, assistentes sociais e antropólogos, entre outros integrantes que juntos formam uma equipe multiprofissional. Eles planejam as ações interdisciplinares em saúde mental, tanto na própria secretaria, quanto nos DSEIs, com diferentes metodologias e com base na particularidade de cada demanda. Conforme a SESAI publicou no portal do Ministério da Saúde, o suicídio é a questão mais preocupante e, inclusive, foi lançado em 2014 o Material Orientador para Prevenção do Suicídio em Povos Indígenas, voltado para as equipes. De modo geral, são preconizadas estratégias de prevenção e promoção em saúde, com o fortalecimento das redes sociais de apoio e da identidade cultural das comunidades. Assim, há o desenvolvimento de grupos de apoio e escuta, Projeto Terapêutico Local, Grupos de Discussão, entre outros, com participação das Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena em parceria com psicólogo e/ou assistente social (Brasil, 2016).

Outra linha de cuidado está sob responsabilidade da FUNAI e do Ministério da Saúde (SESAI e Secretaria de Atenção à Saúde – SAS), que atuam através do Grupo de Trabalho Intersetorial sobre Saúde Mental e Povos Indígenas - GTI. Desde 2013, o grupo analisa as prioridades e constrói estratégias conjuntas a serem realizadas nos territórios. O GTI aborda o sofrimento psíquico e o uso de álcool e outras drogas, promovendo discussões em busca na compreensão de como se dão esses processos dentro das comunidades. Como resultado, em 2016, foi realizada a I Oficina Sobre Povos Indígenas e Necessidades Decorrentes do Uso do Álcool: Cuidado, Direitos e Gestão. O encontro teve como resultado o reconhecimento da necessidade do protagonismo indígena sobre sua saúde na busca de um projeto terapêutico integral (Fiocruz, 2018).

Como os DSEIs são voltados para a atenção básica e o tema é complexo, tais práticas ainda estão em progressiva estruturação pela SESAI. Portanto, aquilo que não possui resolutividade a esse nível deve ser referenciado para a rede de serviços do SUS, de acordo com a realidade de cada DSEI. Isso significa que o indígena que necessita de cuidados em saúde mental é inserido no SUS, da mesma forma que qualquer indivíduo no território brasileiro. Sendo assim, ele pode ser referenciado para um ambulatório, uma Unidade Básica de Saúde ou um Centro de Atenção Psicossocial – CAPS (Pereira et al., 2013).

A Política Nacional de Saúde Mental é uma ação do Governo Federal, coordenada pelo Ministério da Saúde, que compreende as estratégias e diretrizes adotadas para organizar a assistência às pessoas com sofrimento psíquico, abrangendo a atenção preventiva e curativa de transtornos mentais e dependência química. Ela é organizada em uma Rede de Atenção Psicossocial, a RAPS, que propõe atendimento plural e integral, em diferentes graus de complexidade e com condutas baseadas em evidências científicas. O CAPS pode ser considerado seu principal ponto de atenção estratégico. Até então, a Política caminha no sentido de fortalecer a autonomia, o protagonismo e a participação social (Brasil, 2013b).

Embora muitos avanços tenham ocorrido desde a Reforma Psiquiátrica, sabe-se que essas estruturas de retaguarda, em sua maioria, ainda possuem um modelo de atenção médico hegemônico orientado por manuais adotados na medicina ocidental, como a Classificação Internacional de Doenças – CID, da Organização Mundial de Saúde e o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM, da Associação Americana de Psiquiatria (Pereira et al., 2013). Esse padrão de atendimento tem orientação pragmática, curativa e medicalizante. Ou seja, não considera a dimensão integral do sujeito, com sua história e cultura, o que vai de encontro às etnomedicinas adotadas por grupos indígenas (Langdon & Grisotti, 2016).

A articulação com os serviços de média e alta complexidade deve se adequar e considerar a realidade socioeconômica, territorial e cultural dos povos indígenas. Por conseguinte, desde 1999, existe o Incentivo para a Atenção Especializada aos Povos Indígenas - IAE-PI, que visa fomentar estratégias de acolhimento dentro desses níveis de atenção. Em 2017, foi publicada a Portaria nº 2.663, que define critérios de adequação de acordo com reivindicações do movimento indígena. Entre os estabelecimentos visados para a qualificação do cuidado está o CAPS (Brasil, 2018d).

O Manual do IAE-PI, lançado em 2018, traz que o financiamento de recursos direcionado ao CAPS advém do reconhecimento das dificuldades de acesso dessa população à RAPS, que se configuram pela distância: seja geográfica – entre as comunidades e os serviços especializados -, seja sociocultural – entre os modos de lidar com o sofrimento psíquico. Cabe ressaltar que desde a instituição da RAPS em 2011, através da portaria nº 3.088, os indígenas já eram considerados prioritários ao atendimento (Brasil, 2011; Brasil, 2018d). O manual visa orientar a articulação entre a RAPS e os DSEIs, o que exige aproximações a nível técnico e de gestão. Para isso é importante um trabalho intersetorial, com a participação dos gestores e profissionais dos DSEIs nos fóruns de pactuação da RAPS, além do envolvimento da FUNAI e outras instituições afins. A Portaria nº 2.633 visa, portanto, que os CAPS sejam apoiados pela Secretaria de Saúde Estadual ou Municipal e define o DSEI de referência do território como principal norteador a respeito da subjetividade cultural de cada etnia e da compreensão do sofrer e cuidar psíquico das mesmas (Brasil, 2018d).

Para tentar compreender o que é o processo de saúde-doença para os indígenas, antes, é necessário ressaltar que “índio” não se reduz a uma categoria só, remetendo ao período colonial. Desde antes dessa época, esses povos já viviam em grupos separados, cada qual com um modo de vida, línguas e cosmologias próprias. Generalizar os povos indígenas é ignorar suas subjetividades (Vianna, 2012). É importante ressaltar, também, que os 36,2% de indígenas que vivem na área urbana do Brasil, apesar de estarem mais próximos aos serviços de saúde, sofrem com o desrespeito às diferenças vindo das políticas universalizantes. É aí, da generalização, que advém a importância da antropologia, da territorialização dos DSEIs e da participação do indígena na composição dos campos da saúde - aspectos que vêm sendo documentados e lentamente colocados em prática (Soave, 2017; Brasil, n.d.).

O termo “saúde mental”, comumente utilizado pela sociedade dominante, não está inserido na cosmologia dos povos indígenas, considerando que o entendimento de saúde tradicional está intimamente ligado à natureza e à dimensão espiritual (Stock, 2010). Langdon e Garnelo (2017) afirmam que é preciso cuidado para não limitar a visão a respeito da etnomedicina a um xamanismo genérico desprovido de conhecimentos complexos. As autoras dizem que, ao contrário, há um caráter dinâmico, de vitalidade e capacidade de reinvenção.

Faz-se necessária, para além da defesa superficial, uma definição crítica e concreta do que é a atenção diferenciada para o Estado; capaz de construir um diálogo entre os agentes desses saberes, sejam ocidentais, sejam indígenas e, enfim, operacionalizar as práticas em saúde de modo mais equânime. Essa é a interculturalidade, componente fundamental das políticas que tratam de grupos étnicos. Como exemplos de pontos de encontro que podem ser produzidos dentro do campo psíquico são ressaltados a luta antimanicomial e a redução de danos (Langdon & Garnelo, 2017; Mota & Nunes, 2018; Stock, 2010)

Considerações finais

O presente artigo buscou conhecer de que modo as políticas públicas brasileiras tratam a saúde mental indígena. Foi constatado que, apesar de a Portaria de nº 2.759/2007 ter lançado as diretrizes para uma Política Nacional de Atenção Integral a Saúde Indígena, sua execução é falha em diversos aspectos que serão considerados adiante.

As diretrizes de tal política são bem-intencionadas, porém superficiais, de modo que ela não vem sendo operacionalizada. A atenção à saúde mental indígena está sob responsabilidade de uma área técnica dentro da SESAI, cujas ações englobam a atenção básica e estão restritas, praticamente, à prevenção e promoção de saúde. São movimentos pontuais, que carregam consigo limitações impostas pelo baixo número de profissionais - especialmente psicólogos, pela distância entre as aldeias e os Pólos-Base e pela dificuldade em oferecer uma atenção verdadeiramente diferenciada às cerca de 305 etnias diferentes que vivem no território brasileiro.

O atendimento psicossocial aos indígenas, portanto, está para além das atribuições da SESAI e conta com a retaguarda do Ministério da Saúde e sua Política Nacional de Saúde Mental, através da inserção dos mesmos à Rede de Atenção Psicossocial da mesma forma que qualquer outro indivíduo no Brasil. Assim sendo, encontram-se presentes, também, as distâncias físicas - entre os centros de atendimento e as aldeias - e socioculturais – entre o modelo médico hegemônico e as etnomedicinas.

Saúde mental é um assunto delicado e presente na vida de todos os seres humanos – mesmo quando não é compreendida pela visão ocidental. A população indígena - que há tantos séculos vem sofrendo com a marginalização social e imposições, com elevadas taxas de morbimortalidade -, carece de um olhar atento, profundo e acolhedor sobre seu sofrimento psíquico, não de documentos genéricos que levantam o assunto, mas não colocam em prática a interculturalidade e, por conseguinte, a melhora da qualidade de vida.