Prólogo
Desafios atuais em políticas públicas: gestão neoliberal da vida e os enfrentamentos possíveis Prologue

Neuza Maria de Fátima Guareschi 
and Giovana Barbieri Galeano 

Full text

Gostaríamos de iniciar este prólogo agradecendo o convite que nos fora feito para escrevê-lo. Trata-se da edição do quarto número especial da Revista Trayectorias Humanas Trascontinentales da Rede Internacional da América Latina, África, Europa e Caribe (ALEC) “Territórios, Populações Vulneráveis e Políticas Públicas” da Universidade de Limoges (França), cuja temática são "Políticas Públicas: desafios nos contextos atuais".

A pertinência da temática constituída para o referido número especial dá visibilidade não apenas a indissociação epistemológica, ética e política da Revista, mas, sobretudo, pela potente possibilidade de reunirmos discussões, análises e reflexões sobre as urgências que têm incidido nas Políticas Públicas, tanto no que as constitui como campo profissional de atuação, como enquanto campo problemático de pesquisa.

A presente escrita objetiva problematizar os desafios atuais que têm tensionado o campo das políticas públicas, ao mesmo tempo que apontamos como, nesse mesmo contexto, é possível criar práticas potentes com relação aos denominados desafios. Para iniciar, portanto, o que estamos chamando de desafios e como a atualidade dos mesmos nos coloca diante das políticas públicas?

Muito embora estejamos nomeando-os de atuais, tais desafios têm-nos – a nós profissionais e pesquisadores desse campo – desacomodado desde, de fato, os períodos que serviram de cenário para a constituição de tais políticas (Almeida, 2015). Tratam-se dos jogos de forças que se estabelecem entre os domínios econômicos, jurídicos e dos saberes que produzem e administram não apenas o campo enquanto tal, mas seus elementos, quais sejam, em especial, os sujeitos que são produzidos como usuários dessas políticas.

No ano de 2016 foi aprovada a Proposta de Emenda à Constituição nº 241 cujo conteúdo visa instituir um novo regime fiscal, incidindo sobre o estabelecimento de um teto de gastos para os próximos 20 anos, a contar do ano de 2018. Tal estabelecimento visa à limitação do crescimento das despesas do governo com a finalidade de restabelecer um equilíbrio das contas públicas.

Essa configuração das justificativas e estratégias de corte de gastos públicos extrapola, no entanto, o âmbito financeiro contido na dimensão econômica. Dentre os setores mais afetados pelas medidas indicadas anteriormente estão a saúde, educação e assistência social. Tais setores, ademais, têm sido alvos de persistentes ações de desinvestimento que recaem, como podemos constatar, na operacionalização dos serviços prestados e nos sujeitos que deles fazem uso (Granemann, 2016; Piana, 2009).

Nessa esteira de pensamento, dois principais problemas se apresentam com maior força: o asseverar de processos de destruição dos serviços públicos; e, ainda, as práticas que incidem junto aqueles sujeitos que compõem o campo das políticas públicas. Cada um dos dois problemas indicados anteriormente implica desafios. Dentre esses, elencamos dois para que possamos discuti-los e analisa-los, quais sejam: a. De que modo o corte de gastos produz efeitos no cotidiano junto às políticas públicas?; b. Como produzir práticas que façam enfrentamentos a tais processos?

Cabe ressaltar que, por problema, não entendemos apenas a constituição de situações que produzem transtornos, mas, certamente, de um conjunto de questões que nos exige esforço para que seja pensado. Do mesmo modo, os desafios que indicamos não pressupõem a criação de uma resposta universal e final, mas da produção de tensionamentos que nos façam pensar estratégias de lutas localizadas e, também, não violentas com relação à vida.

Sobre o primeiro desafio: De que modo o corte de gastos produz efeitos no cotidiano junto às políticas públicas? Certamente é possível dizer que um dos efeitos mais contundentes é o processo não somente de desinvestimento na política, mas, justamente, o que nessa política diz respeito à vida (Foucault, 2008a, 2008b; Agamben, 2009, 2014). Ao retirar os investimentos, o que se coloca em questão são os meios e fins da política: enquanto os meios são afetados pela precarização das condições de possibilidade dos serviços prestados, os fins, isto é, a garantia e acesso aos direitos, são insistentemente impossibilitados e dificultados.

As políticas públicas enquanto campo que possibilita o acesso à direitos implica, também, a colocação da vida em todo um mecanismo de gestão. Por gestão entendemos a criação de técnicas e estratégias que tem como princípio a administração dos elementos que fazem parte e constituem a vida da população/sujeitos. Isto é, se, por um lado, por exemplo, as políticas de saúde criam formas singulares de incidir nos sujeitos, a partir de tecnologias médicas, psicológicas, sociais; as mesmas estratégias são direcionadas aos espaços coletivos e à população como um todo (Foucault, 2008a). O mesmo vale para as políticas de educação, assistência e segurança que dizem respeito aos sujeitos e ao coletivo.

O problema, no entanto, é que, com os desinvestimentos nas políticas públicas, os processos de gestão dos sujeitos/coletivos, espaços públicos urbanos e rurais são, ao invés de atribuídos enquanto tarefas dos setores que compõem o Estado, privatizados e individualizados, isto é, progressivamente tomados e operados a partir de uma lógica neoliberal (Foucault, 2008b, Ibarra, 2011).

Modificam-se, assim, todo um conjunto de domínios que organizam o campo das políticas públicas, quais sejam o domínio econômico em que o Estado reduz os investimentos e isso produz como efeito a colocação da vida e seus elementos sob a insígnia do âmbito privado; no domínio jurídico a figura do cidadão passa a ser visibilizada enquanto um sujeito que deve ser seu próprio provedor; no âmbito dos saberes (científicos e não científicos) uma instrumentalidade dos conhecimentos produzidos a fim de solucionar lucrativamente, ou vantajosamente, problemáticas inseridas em um contexto mais amplo.

Opera-se, assim, um deslocamento da ideia de bem-estar social cujo agente provedor seria o Estado, para uma racionalidade de propriedade/provisão individual de serviços de saúde, educação e segurança. Por sua vez, esse Estado, nos moldes como tem se constituído o neoliberalismo brasileiro, não será mínimo em sua função repressiva, basta constatarmos as intervenções públicas das forças policiais e militares, gestão dos espaços de uso coletivos como praças e vias públicas, que têm sofrido processos de expropriação do livre uso por parte dos cidadãos, demandando, cada vez mais, solicitações de autorização para suas ocupações. Isto é, burocratização das possibilidades de vida (Agamben, 2007, 2014).

Por fim, é preciso indicar o efeito devastador produzido pelo gradual e constante esvaziamento/destruição da política presente nos espaços públicos. Se tomarmos o público enquanto instância de uso (aqui entendido enquanto a possibilidade de circular, habitar e viver ao mesmo tempo em que esse público é constituído e não apenas enquanto aquilo que não pertence a ninguém) e o político enquanto o espaço que somente é possível de existir a partir da relação entre os sujeitos (Arendt, 2018; Foucault, 2016), o desinvestimento financeiro e, por sua vez, a privatização da relação com o espaço e entre sujeitos cria, assim, uma impossibilidade não apenas do uso, mas do estabelecimento de uma vida coletiva.

O uso, nesses termos, não corresponde a uma ação utilitarista dos espaços, mas da possibilidade de constituir e produzir o espaço público o que implica a participação ativa nas decisões sobre sua gestão, direcionamento de dinheiro público e demais exercícios de cidadania referentes ao controle social. A vida coletiva aqui em aposta não é aquela que pressupõe a homogeneidade de relações ou, ainda, a coexistência sem conflitos. Ao contrário: toda vida coletiva tensiona forças no estabelecimento das relações entre sujeitos (Foucault, 2016).

No que concerne ao segundo desafio: Como produzir práticas que façam enfrentamentos a tais processos? É preciso situar que a psicologia, especialmente aquela constituída por ações atreladas às políticas e ao social, produz um conjunto de ações estratégicas, tecnologias, instituições e saberes com vistas a responder a demandas.

As políticas públicas não são, como vimos, um conceito abstrato ou domínio teórico. Mas, sim, operam uma série de estratégias no coletivo e em todas as dimensões do que chamamos de espaço público, bem como em nossa constituição enquanto sujeitos. Além disso, as políticas públicas não são um campo imutável, contudo, para que as possibilidades de mudanças sejam possíveis é necessário que, além dos esforços/trabalho dos profissionais junto aos usuários todo um conjunto de investimento financeiro seja realizado.

Como argumentamos durante o desenvolver desta escrita, tais cortes de investimento não têm operado unicamente um desmonte das políticas públicas, mas a sua destruição e, por conseguinte, a criação de condições de impossibilidades de sua montagem (Agamben, 2015). O processo contínuo de destruição das políticas públicas tem se constituído como o desafio atual que nos demanda exercícios de resistência. Por resistências podemos compreender as manifestações públicas de categorias profissionais, entidades estudantis, coletivos e movimentos sociais que tem se organizado em termos de resposta às ações violentas de retirada/corte de investimentos.

Argumentamos, nesta escrita inspirada por Walter Benjamin (1987), que não percamos de vista em nossas práticas de resistência e lutas, a memória que as ruínas, deixadas pelas ações de destruição, comunicam. A ruína é o estado posterior à morte. Ela é “lábil e exigente, muda e amistosa, intensa e distante” (Agamben, 2010: 53). Nela o que se pode ver é o incorpóreo de algo que, um dia, foi e já não é. Se nos esforçarmos é possível ouvir o seu ranger, ver os sinais que nos envia. A ruína é o que de mais histórico é possível existir.

Os discursos acerca do progresso econômico e de desenvolvimento colocados em prática pelas formas de gestão neoliberal da vida no contexto brasileiro, têm se operado tal qual Benjamin (1987) refletiu sobre o caráter destrutivo: “o caráter destrutivo só conhece um lema: criar espaço; só uma atividade: despejar. Sua necessidade de ar fresco e espaço livre é mais forte que todo o ódio” e “está sempre trabalhando de ânimo novo” (p. 236).

Se as ruínas são os elementos históricos por excelência. Se, ainda, as políticas públicas têm sido transformadas em ruínas por essa força violenta cujo espírito destrutivo tem objetivado fazer-nos esquecer os escombros deixados pelo caminho por onde passa. Nossa tarefa, nestes textos e nas lutas cotidianas – sejam elas travadas nas universidades, nos estabelecimentos de trabalho, nas ruas, dentre outras – é fazer com que o esquecimento não se efetive.

É aceitável que não seja possível recordarmos de tudo o que já nos aconteceu. No entanto, o que esta escrita demanda é um exercício da insubstituibilidade. A história e, mais sensivelmente, a vida, não é substituível. Preencher a vacância implica em negar a existência e separar, na memória, aquilo que ela pode e pode não. É preciso coragem para viver a tristeza sem sufocar a vida. Os enfrentamentos possíveis diante dos desafios atuais junto às políticas públicas se constituem pelo exercício da insubstituibilidade, pois é urgente compreender, de fato, que vidas não devem ser objeto de descarte/esvaziamento das possibilidades de existência.