A história de vida de pessoas em situação de rua na cidade de Campo Grande/MS - Brasil Récit de vie de personnes vivant dans la rue dans la ville De Campo Grande / Mato Grosso do Sul – Brésil

Andressa Meneghel Arruda ,
Carlos Heber Oliveira 
et Luciane Pinho de Almeida 

https://doi.org/10.25965/dire.583

Au Brésil, les études portant sur la population sans-abri – en majorité de sexe masculin- sont récentes. Les raisons pour lesquelles ces hommes vivent dans la rue diffèrent en fonction du contexte social. La recherche qui est présentée ici analyse les récits de vie de personnes vivant dans les rues de la ville de Campo Grande - MS. Elle évalue les aspects psychosociaux qui font partie du processus de leur construction identitaire. Dix individus de sexe masculin ont été interviewés et ont raconté leur histoire de vie ; comment, alors qu’ils faisaient partie de la société, ils en ont été exclus. Les principaux résultats montrent que ce sont des situations de conflit qui les ont conduits à l'exclusion progressive et les ont coupé de tout contact avec leur famille et amis, jusqu`à ce qu`ils se retrouvent à la rue. Or la vie dans les rues les expose à des situations constantes de violence physique et psychologique; leurs identités sont ainsi constamment modifiées. Le sans-abri perd alors tous ses droits sociaux et devient une personne invisible pour la société.

No Brasil são recentes os estudos com população em situação de rua, considerando que a maior parte dessa população é do sexo masculino. Os motivos destes encontrarem-se nas ruas são diversos, de acordo com cada contexto social ao qual o indivíduo está inserido. A presente pesquisa analisa a história de vida de pessoas em situação de rua na cidade de Campo Grande – MS, e avalia aspectos psicossociais que fazem parte do processo de tornar-se morador de rua. Foram entrevistadas 10 pessoas do sexo masculino, que relataram suas histórias de vida, e de como se encontravam inseridos no convívio social até se tornarem pessoas excluídas da sociedade.  Os principais resultados demonstram que situações conflituosas os levaram a exclusão gradativa do convívio com a família e amigos, até encontrar-se em situação de rua. A vida nas ruas os expõe a constantes situações de violência física e psíquica, na qual suas identidades são constantemente modificadas. O morador de rua perde todos os direitos sociais e torna-se uma pessoa invisível para a sociedade.

Sommaire

Texte intégral

Introdução

No decorrer dos anos a população que vive em situação de rua tem chamado a atenção de pesquisadores ligados a questões sociais, pois se encontram em condição de completa vulnerabilidade social e apresentam aspectos de fragilidade nas suas relações sociais e psicológicas.

No Brasil são recentes os estudos com a população em situação de rua, e de acordo com Andrade, Figueiredo e Faria (2008) no final da década de 1980 surgiu a organização de um movimento social para identificar esses moradores nas cidades de Belo Horizonte e São Paulo. A partir desse movimento foi criada uma metodologia de estudo que possibilitou a criação do censo da população em situação de rua, que foi aplicado nessas duas cidades. O término desse trabalho influenciou na criação do Movimento Nacional da População de Rua no Brasil.

Atualmente, a compreensão e o conhecimento sobre as experiências de vida do morador de rua tornaram-se de extrema importância no âmbito das políticas sociais, para que se possa criar políticas públicas e medidas que beneficiem essa população. Segundo a Pesquisa Nacional de População em Situação de Rua realizada em 2008, constatou-se que 313 pessoas viviam em situação de rua na cidade de Campo Grande – Mato Grosso do Sul (Brasil, 2008).

Esse artigo trata das histórias de vida de moradores de rua na cidade de Campo Grande e baseia-se no estudo realizado para compor a dissertação apresentada ao Programa de Mestrado da Universidade Católica Dom Bosco, intitulado “A vida nas ruas: Aspectos psicossociais das vivências de moradores de rua de Campo Grande – Mato Grosso do Sul”.

A importância do vínculo familiar e as histórias de vida de moradores de rua em Campo Grande-MS

A existência humana é estabelecida e ordenada por grupos de pessoas que se relacionam entre si, e a partir dessa relação podemos encontrar as diversidades culturais que existem no mundo, as quais devem ser entendidas a partir da convivência dessas pessoas em sociedade, considerando seu contexto social, que é determinado por um período de tempo e lugar. Em estudo sobre como a realidade social é construída numa sociedade, os autores Berger e Luckmann (2004), afirmam que, o conhecimento humano na vida em sociedade ocorre a partir da experiência individual, provendo uma ordem de significados, que embora se reporte a uma condição sócio-histórica, surge para o indivíduo como uma maneira natural de conceber o mundo.

De acordo com Bock, Furtado e Teixeira (2001), a psicologia sócio-histórica compreende que o ser humano constrói sua existência quando realiza uma ação sobre a realidade, procurando satisfazer suas necessidades, no entanto, essa ação e essas necessidades possuem um aspecto fundamental, o de serem sociais, e são produzidas de acordo com a história das pessoas que vivem em sociedade.

O cotidiano de vida das pessoas é revelado por meio de uma conduta subjetiva repleta de sentidos que produzem a história de suas vidas. O indivíduo quando nasce se relaciona com o mundo externo de forma complexa, e torna-se pessoa a partir de sua relação com o ambiente, conforme afirmam os autores Berger e Luckmann (2004, p.71),

A socialização acontece em um determinado contexto a partir de especificidades de uma estrutura social. E o processo de socialização ocorre quando o indivíduo, no início de sua vida, começa a absorver do mundo social a realidade objetiva presente, sendo que essa última se relaciona com a história de vida que cada um produz, ou seja, a realidade subjetiva do indivíduo. Nesse sentido, faz-se fundamental a reflexão sobre a história de vida de pessoas para que possamos compreender as vivências e as necessidades sociais que surgem no cotidiano e que podem contribuir para a melhoria de políticas públicas que atendam à população que delas necessitam.

A presente pesquisa trata de fragmentos da história de vida de pessoas em situação de rua. Inicialmente os participantes dessa pesquisa narraram suas experiências de vida com sua família. Ao relatarem sobre seu passado e constituição familiar, constata-se que todos nasceram e passaram por um processo de socialização primária com suas respectivas famílias. É importante considerar que embora muitas dessas famílias encontravam-se em situação de pobreza nunca estiveram antes em situação de rua, ou seja, os participantes da pesquisa não eram provenientes de famílias que teriam passado por situação de rua. Também podemos considerar que todos os nossos participantes da pesquisa tiveram experiência sócio-familiar, ou seja, nenhum destes esteve durante sua infância numa Casa de Acolhimento para crianças e adolescentes.

Consideramos, portanto, que a família constitui uma parte importante na vida dessas pessoas que no decorrer da vida, em seus processos de socialização, foram progressivamente tendo seus vínculos fragilizados até serem totalmente rompidos até tornarem-se moradores de rua.

A seguir apontamos um breve relato sobre a vida passada dos moradores de rua desta pesquisa.

Note de bas de page 1 :

 Os nomes dos sujeitos participantes da pesquisa foram trocados para preservá-los no anonimato. Os nomes escolhidos para cada sujeito são apelidos muito comuns e frequentes entre as pessoas que vivem em situação de rua, que mudam seus nomes e dos companheiros por apelidos de acordo com alguma característica da pessoa, algumas vezes são chamados pela profissão que exerciam, pelo estado ou cidade que moravam, por alguma característica física, por lembrar algum personagem, entre outras características marcantes da pessoa.

  • O Gibi1 tem 49 anos, tem o ensino fundamental completo, nasceu em Alto Paraná no interior do Paraná, mas se mudou, ainda quando criança, com a família para São Paulo, na capital. Foi preso com 20 anos de idade por envolvimento com tráfico de drogas, saiu com 40 anos da prisão e desde então, vive em situação de rua. Atualmente seus pais e irmãos são falecidos, não constituiu família, e os parentes que tem são tios e sobrinhos, que vivem em cidades do interior de São Paulo.

  • O Aviador tem 44 anos, nasceu em Aquidauana no interior de Mato Grosso do Sul e estudou até o sexto ano do Ensino Fundamental, atualmente o pai é falecido e a mãe mora com a irmã em Campo Grande - MS. Quando se mudou com seus pais para Campo Grande constituiu família com esposa e dois filhos, adquiriu bens materiais como casa, carro, e tinha um emprego estável.  Depois de um pouco mais de dez anos de casado se divorciou deixando a esposa os dois filhos que moram em Campo Grande, MS.

  • O Brother tem 53 anos, tem ensino médio completo, nasceu em Florianópolis no estado de Santa Catarina, viveu com os pais até a fase adulta, nessa fase houve a separação dos pais, e seu pai se mudou e constituiu outra família no estado de Alagoas, a mãe mora com um dos dois irmãos em Florianópolis, e por fazer tempo que não tem contato com a família acredita que eles moram no mesmo local onde viviam em Santa Catarina.

  • O Tiririca tem 35 anos, nasceu em Ferraz de Vasconcelos no interior em do estado de São Paulo, estudou até o terceiro ano do Ensino Fundamental, e cresceu ao lado da família, atualmente a mãe e os irmãos moram no interior de São Paulo, constituiu família, mas se separou deixando com a esposa uma filha.

  • O Gaúcho tem 23 anos, estudou até o primeiro ano do ensino médio, nasceu em Sussuapara no estado do Piauí, e mudou-se com um ano e meio de idade com a família para Campo Grande, MS, os pais moram com um dos irmãos, e outro irmão é casado e mora com a família, ele não constituiu família.

  • O Gordinho tem 35 anos, nasceu em Bonito no interior de Mato Grosso do Sul, estudou até o oitavo ano do Ensino Fundamental, mudou-se para Curitiba onde constituiu família. Após o falecimento de sua mãe, os problemas com a esposa se intensificaram e se separou um ano meio depois do nascimento da filha, devido à violência física e psicológica com que tratava a esposa. Após 15 anos, para proteção da ex-mulher e da filha os conhecidos na cidade de Curitiba não revelam o lugar onde elas vivem.

  • O Maranhão tem 41 anos, nasceu em Guaíra no interior do Paraná e com quatro anos de idade mudou-se com a família para Várzea Grande no estado do Mato Grosso, estudou até o terceiro ano do Ensino Fundamental. Casou-se e em seguida, mudou com a esposa para Maringá no Paraná, e depois que os filhos nasceram se mudaram para Campo Grande, MS. Atualmente está divorciado e não tem contato com a esposa e filhos há uns dois anos e os irmãos há uns cinco anos.

  • O Bugão tem 21 anos, nasceu em Campo Grande, MS, estudou até o primeiro ano do Ensino Médio, morou com a família até os 14 anos de idade, depois morou um tempo com uma tia, e começou a fazer uso de drogas.  Então, conheceu uma mulher com quem morou junto um ano e quando se separou não voltou mais para casa dos pais, tem pouco contato com a família atualmente.

  • O Corumbá tem 30 anos, nasceu em Coxim no interior do Mato Grosso do Sul, estudou até o oitavo ano do Ensino Fundamental, morou com a mãe até os seus 18 anos e devido aos problemas com o abuso excessivo do álcool começou a dormir nas ruas da cidade. Com o intuito de ajudar os irmãos o trouxeram para Campo Grande e de acordo com os seus relatos aos poucos começou a dormir nas ruas da cidade e voltava só para tomar um banho e aos poucos sua freqüência em casa foi diminuindo, até que atualmente, tem pouco contato com os irmãos e com a mãe.

  • O Pastor tem 63 anos, estudou até o oitavo ano do Ensino Fundamental, nasceu em Ribeirão Cascalheira no interior do Mato Grosso, os pais são falecidos e não tem contato com os irmãos. Constituiu família em Cruzília no estado de Minas Gerais, depois de algum tempo ficou viúvo e não se casou novamente.

É relevante considerar que, de certa forma, todos pertenciam anteriormente a um grupo familiar, conforme Jodelet (2011), o ser humano tem a necessidade de pertencimento social e o ajustamento e o comprometimento emocional com relação ao grupo ao qual a pessoa pertence faz com que sua identidade seja aplicada ao grupo e vice-versa. Considerando que no processo de socialização o grupo interfere na realidade subjetiva e consequentemente na formação da identidade, ou seja, a imagem que a pessoa tem de si própria encontra-se vinculada à imagem que a pessoa tem do grupo.

Os conflitos familiares e a quebra de vínculos no contexto familiar atual

Conforme Passos (2005), a noção de família compreende a relação de pessoas com laços biológicos que se relacionam entre si dentro de um espaço privado, nesse relacionamento mútuo existem trocas de afetos e a possibilidade de reconhecimento entre os sujeitos, e como frutos desse relacionamento surgem experiências dos impasses, dos conflitos, e enfim dos prazeres e desprazeres que esse tipo de intimidade estabelece.

No entanto, atualmente compreende-se por família a relação de pessoas que coabitam em um mesmo local, e para que haja um entendimento das funções internas da família, é necessário um olhar sobre suas diferentes formas de construção de laços, entre as pessoas que constituem o grupo familiar e sua caracterização em um determinado contexto social.

Observamos isso, quando um dos participantes demonstra a fragilidade dos vínculos ao longo da sua história de vida. Neste caso, as condições de emprego do pai, que trabalhava como guarda noturno à noite agravou o surgimento de conflitos como a falta de diálogo, a violência e o abuso de álcool por parte deste pai, gerando desavenças dentro de casa, e por fim, formando um círculo vicioso que contribuiu para o processo da quebra de vínculo e seu afastamento da família.

Note de bas de page 2 :

 As verbalizações apresentadas resguardam as falas originais dos participantes da pesquisa.

Gaúcho: eu me lembro que aos seis ano começou as dificuldade, já foi por aí...a dificuldade foi o seguinte: que eu ia pra escola, eu queria era mais brinca, e aí meu pai pegava eu de purrete, entendeu? Aí ele bebia demais, e começou a se embriagar demais, e quando ele chegava, ele queria silêncio porque ele trabalhava noturnamente de guarda, e queria silêncio. E, eu como dormia a noite toda, acordava dando trabalho. Eu ia pra escola tirava nota baixa, não dava muito valor, eu era muito desobediente, na verdade. 2

A constituição da família moderna de acordo com Reis (1987), independente de sua forma e composição, foi influenciada por uma ideologia familiar criada a partir do capitalismo com a formação de padrões da família burguesa que foi plenamente estabelecida no início do século XIX, ou seja, os membros das famílias desempenhavam determinadas funções que se relacionavam diretamente com a divisão no trabalho entre homem e mulher.

A vida do Gaúcho e de sua família foi permeada por conflitos gerados a partir de ideações advindas do capitalismo, primeiro em relação à importância do trabalho mesmo que seja em condições difíceis como trabalhar a noite toda como vigia.

Gaúcho: Aí, no decorrer disso eu passei pra adolescença. Aí nisso, uns treze pra catorze ano, aí eu já comecei a saí de dentro de casa, de onze ano em diante comecei a sai de dentro de casa, e meu pai  espancava muito ainda eu, (ele) bebia demais entendeu? [...] Depois aí comecei a usá cigarro, fumá cigarro, veio a bebida, aí depois desse ponto com doze ano eu já conheci a maconha. Aí, com treze ano eu passei a usá já a cola de sapateiro, poucas vezes, isso aí não foi tanto. Nesse tempo eu tava em casa ainda, e eu mantinha escondido isso da família (...) sempre o pai tem que ta acompanhando... dos dez ano de idade, que é um período difícil do jovem.

Podemos perceber nesse relato que o morador tem consciência dos processos pelos quais passou e da perda de vínculos, da condição do adolescente e principalmente da importância da família no que se refere ao apoio para um bom desenvolvimento e amadurecimento psíquico e emocional mais equilibrado enquanto pessoa.

Em outro caso, um dos participantes da pesquisa, relata que, ainda muito jovem se envolveu com a criminalidade, e relatou que devido a esse envolvimento, os vínculos com os familiares se tornaram frágeis, e sentiu dificuldade em se reaproximar da família, devido à situação de vulnerabilidade em que ele se encontrava ao sair do presídio, onde ficou preso por 20 anos.

Gibi: Tenho o endereço deles {de familiares], mas eu não sou bem-vindo, não sou bem aceito, talvez possa ser, que eu seja aceito dum dia pro outro, mas no segundo dia já tô vendo política, já tô vendo algo diferente por causa d’eu estar alí, infiltrado alí, e principalmente com esses problemas de doenças que eu tenho, né? Que é esses problema que a Sra. sabe! Que é o HIV, hepatite, sífilis. E é um monte de doença, então, já tem um álibi pra que eu não fique ali. (...) Já procurei, procurei, procurei, mas eu vi que ... me senti muito rejeitado, né?

Nesse relato é possível identificar que a fragilidade nos vínculos familiares pode acontecer por diversos motivos, pois a maneira como o indivíduo se comporta na sociedade influencia na atitude da família em aceitá-lo ou não no convívio familiar. Avaliando o contexto em que o participante se encontrava ao sair do presídio, é possível que ao passar por situação de exclusão perante a sociedade, assim como diante de pouca oferta de emprego para pessoas recém saídas do presídio a família não soube lidar com essa situação e também o excluí do convívio familiar. Cabe ressaltar que, dos entrevistados, esse é o único caso em que o sujeito teve seu vínculo familiar fragilizado e quebrado devido o seu envolvimento com a criminalidade, e em seguida por sofrer o preconceito em relação às Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs e AIDS).

Em estudos com base na vertente psicossociológica a categorização divide o meio social em grupos, nos quais as pessoas são avaliadas como equivalentes de acordo com suas características, atitudes e intentos em comum, ou seja, as pessoas fazem parte de um grupo social na medida em que se identificam com os outros componentes do grupo, e quando as características diferem muito entre si, há a possibilidade de discriminação e de exclusão (Jodelet, 2011).

Sobre a questão da exclusão social, é interessante observar o processo de desqualificação social, estudado e elaborado por Paugam (2011, p. 78), o qual avalia que a ruptura dos vínculos sociais é a última fase desse processo, e é caracterizado como:

[...] um acúmulo de fracassos que conduz a um alto grau de marginalização. Sem esperança de encontrar uma saída, os indivíduos sentem-se inúteis para a coletividade e procuram o álcool como meio de compensação para sua infelicidade.

Nessa fase as pessoas rompem o vínculo com a família e com a sociedade, pois estão enfrentando dificuldades em todos os setores de sua vida como a falta de apoio familiar, de moradia, de emprego, sem as mínimas condições de saúde, entre outros fatores, que o levam a ficar em situação de rua e a passar por um processo de desqualificação social.

Nesse processo a pessoa passa por situações que a desqualifica no meio social em que vive, e de acordo com Paugam (2011), aquelas pessoas que não conseguem  prover seu sustento dignamente e que não tem condições de suprir as suas necessidades básicas, recebem os atendimentos ofertados pelos serviços socioassistenciais, e em alguns casos essas pessoas tornam-se dependentes desses serviços prestados, uma vez que, sempre volta ao estado de vulnerabilidade inicial, necessitando novamente de atendimento. Esse processo cria uma relação de dependência com os serviços socioassistenciais e, na maioria das vezes, faz com a pessoa se torne passiva diante de sua situação de vulnerabilidade.

Após passar pelo processo de desqualificação social, a pessoa se sente envergonhada por não conseguir corresponder aos padrões sociais, principalmente no ambiente familiar. Nesses casos, a pessoa prefere se afastar do convívio familiar, ao invés de pedir ajuda e só volta a reatar os laços com os parentes, caso consiga se restabelecer no meio social (Paugam, 2011).

De acordo com Bauman (2004), a sociedade contemporânea apresenta fragilidade em seus relacionamentos humanos, que por sua vez, produz um sentimento de insegurança que acaba por impulsionar no ser humano sentimentos conflitantes em relação ao desejo de manter os vínculos apertados e/ou frouxos ao mesmo tempo.

Note de bas de page 3 :

 De acordo com Bauman (2005, p.20) Ser redundante significa ser extranumerário, desnecessário, sem uso – quaisquer que sejam os usos e necessidades responsáveis pelo estabelecimento dos padrões de utilidade e de indispensabilidade.

 Devido a essa fragilidade dos vínculos em suas relações, as pessoas acabam se tornando redundantes3, ou seja, são os rejeitados, considerados lixo ou refugo humano, por não se ajustarem ou não corresponderem aos moldes de utilidade sugeridos pelos padrões da sociedade. Aquelas pessoas, que devido às circunstâncias da vida, não conseguem prover financeiramente um meio de sobrevivência para si são considerados fora dos padrões da sociedade capitalista, e por fim, consumista em que vivemos. Na condição de redundante a pessoa passa a desenvolver sentimentos de baixa autoestima, falta de propósito de vida, falta de dignidade e não se sentem úteis ao meio social em que vivem (Bauman, 2005).

O consumo tem se tornado o foco principal da sociedade contemporânea, de forma que, o “ter” algo é mais importante do que o “ser”, e a inversão desses princípios e valores acabam gerando as desigualdades sociais, favorecendo a competitividade e o individualismo. Diante desse quadro, e como consequência, as pessoas enfrentam um sentimento de insegurança em diversos setores da vida, seja na questão econômica, ética-moral, política entre outras questões relacionadas com a vida em sociedade (Buchele & Cruz, 2013).

Essa insegurança está relacionada ao medo que para Bauman (2008, p.11), pode se originar de diversas situações na vida da pessoa, conforme sugere:

[...] eles podem vazar de qualquer canto ou fresta dos nossos lares e de nosso planeta. Das ruas escuras ou das telas luminosas dos televisores. De nossos quartos e de nossas cozinhas. De nossos locais de trabalho e do metro que tomamos para ir e voltar. De pessoas que encontramos e de pessoas que não conseguimos perceber. De algo que ingerimos e de algo com o qual os nossos corpos entraram em contato.

Dessa forma, as pessoas se sentem inseguras no convívio relacional entre si, pois ao viverem em um meio social e cultural que apresentam ameaças à sua vida ou à sua integridade, esse sentimento orienta e influencia o comportamento das pessoas, pois se veem cercadas de perigos, e da probabilidade desses perigos se concretizarem em suas vidas. É uma sensação de insegurança por não conseguir prever se serão atingidas ou não por esses perigos, além de se sentirem vulneráveis por não confiarem nas defesas que estão disponíveis (Bauman, 2008).

O medo é algo inerente ao ser humano e na sociedade atual, é vivenciado e se exprime pela insegurança existente em suas relações com o outro, com o mundo e com o inevitável enfrentamento da morte como um fim inegociável. A ameaça de morte é sentida pelas pessoas desde o seu nascimento e continua presente constantemente, obrigando-a a construir e seguir uma sequência de condutas que a levem a evitar o encontro com a mesma, esse processo é denominado por Bauman (2008), como desconstrução da morte. Outra forma de se evitar o pavor da morte é por meio da banalização da mesma, na qual, a experiência de morte é encenada por várias vezes, suavizando assim o medo da morte.

Para Bauman (2008), nas relações entre as pessoas, os laços entre parentes e amigos são formas de vínculos que criam uma relação denominada pelo autor como eu-você, e quando a morte alcança um desses envolvidos nessa relação, aquele que fica, passa pela experiência de morte, sendo essa a forma singular que a pessoa experimenta a morte enquanto vive, e ao perder o outro se perde seu conteúdo também, e dá lugar ao vazio e a solidão.

Quando há fragilidade nas relações e ocorre uma quebra de vínculo na relação eu-você, apesar de não ser uma situação de separação causada por morte, a experiência serve como um aviso constante da mortalidade que faz parte e caracteriza a vida do ser humano. Nesse caso a quebra do vínculo causa uma morte relacional que segundo Bauman (2008, p. 64),

[...] torna-se um elo constante e indispensável a sustentar a interminável sequencia de “novos começos” e esforços para “renascer”, traços característicos da vida líquido-moderna, e um estágio necessário em cada uma das séries infinitamente longas dos ciclos de “morte-renascimento-morte”. No drama permanente da vida líquido-moderna, a morte é um dos principais personagens do elenco, reaparecendo a cada ato.

Na morte relacional a quebra do vínculo, na maioria das vezes, divide as pessoas da relação entre os que agridem e os que são vítimas, para um dos lados a separação proporciona o sentimento de estar liberto e ao mesmo tempo para o outro o sentimento experimentado é de ser rejeitado e/ou excluído (Bauman, 2008).

Os laços de família são rompidos, uma vez que, os integrantes do grupo familiar não conseguem ajudar e/ou enfrentar juntamente com um dos membros da família as dificuldades da dependência do álcool e das drogas, entre outras situações, que muitas vezes, requer auxílio de profissionais capacitados na área da saúde no caso da dependência química.

Nesse processo de fragilidade e rompimento dos vínculos, a família faz um “investimento” (que pode ser emocional e/ou material) para que a pessoa consiga sair da situação da dependência e do vício, no entanto, a pessoa ao sentir que a expectativa imposta sobre ela, está além das suas possibilidades para corresponder ao padrão de conduta esperado, se refugia ainda mais no mundo ilusório das drogas e do álcool.

De acordo com Reis (1987), esse padrão de conduta imposto pelo grupo familiar, foi formado a partir da constituição da família nuclear burguesa, que foi criada e fundamentada pelo sistema capitalista que delineou o papel a ser desempenhado por cada membro da família. Aqueles que não conseguiam desempenhar seu papel a altura acabavam se tornando desnecessários e inconvenientes tanto para a sociedade como para o grupo familiar.

Um dos entrevistados (Gordinho) mantinha o vínculo familiar com a esposa e filha no período em que a sua mãe estava viva. Após a morte da mãe, ele se mudou com a família para Curitiba, para ficarem mais perto dos familiares da esposa, e os conflitos e as dificuldades no relacionamento se intensificaram, pois ele foi ficando violento com a esposa, agredindo-a fisicamente e verbalmente com ameaças de morte. Devido o uso de substâncias químicas, o próprio entrevistado declara que se transformava em outra pessoa, e que não se lembrava de nada depois que passava o efeito da droga. Diante dessa situação, a família da ex-mulher a escondeu com a filha, e ele perdeu o contato. Atualmente fazem 15 anos da separação, já a procurou algumas vezes, mas não consegue reaver o contato com a família.

Gordinho: Eu me casei em Curitiba, moramos um tempo em Bonito quando minha mãe era viva. E indo pra Curitiba, voltando pra lá, a minha esposa sumiu, né? Nós nos separamos, e ela pegou minha filha e sumiu você entende?

Em conversa com o Gordinho, em outro momento fora da entrevista, foi possível perceber que a violência praticada por ele contra a esposa e a filha era uma reprodução da violência que ele havia sofrido com o pai, que era alcoolista, e além de bater na mãe, o espancava muito quando era criança. Os vínculos fragilizados pela violência e pelo vício de substâncias psicoativas se repetiram da família geracional para a família constituída.

Nesses relatos é possível perceber que a quebra de vínculo e o afastamento da família ocorreu em um processo gradativo, devido às circunstâncias e as dificuldades de relacionamento que as pessoas se encontravam, e se acentuaram pelos conflitos causados pela dependência de substâncias psicoativas como o álcool e as drogas. Percebe-se também que as regras e normas impostas pela sociedade, priorizam e valorizam as pessoas que trabalham e produzem, no entanto, a pessoa que acaba desenvolvendo por tendências biológicas ou circunstanciais uma dependência de álcool ou de drogas, não consegue acompanhar a rotina de trabalho, acaba sendo desvalorizada enquanto pessoa, e não recebe ajuda e nem tratamento adequado para redução dos problemas ligados ao vício do álcool e das drogas.

No relato a seguir, a história de vida do Aviador, nos mostra que este tinha uma vida considerada estável, pois constituiu família, tinha um bom emprego, conseguiu acumular bens como imóveis e outros, no entanto, devido ao uso abusivo do álcool e conflitos familiares gerados por esse uso, culminaram em um processo de quebra de vínculos, primeiro com a separação do casal, depois com venda dos bens, a perda do emprego, e em seguida para a situação de rua.

Aviador: Olha tudo por causa do álcool. É! eu bebia demais e a minha esposa chego um dia e falo "Ó! eu num suporto mais isso, num guento mais!", e eu tinha uma casa na Coophavila II, aí ela saiu da casa veio pra outra casa aqui na Coophatrabalho que era nossa também. E aí quando ela saiu de casa, eu em vez de me conscientizá e falá “Não! Perdi por causa do álcool”, aí que eu me afundei, aí que chegava em casa com aquele vazio, aquela coisa sabe? Aí fui bebendo cada vez mais, cada vez mais, eu trabalhava na Andorinha (Empresa de ônibus rodoviário), aí fui demitido da Andorinha, tinha onze anos de Andorinha aí fui demitido. Aí eu acabei com tudo, vendi carro, vendi casa e a parte dos meus filhos eu entreguei, fiz tipo uma poupança, eles já usufruíram por causa da faculdade deles. Eeee o resto eu invernei na bebida. Foi aonde que eu conheci a situação de rua.

São vários os motivos da quebra do vínculo familiar, e estes acabam se repetindo em todos os relacionamentos além do grupo familiar. A morte relacional abrange todas as relações socioafetivas do morador de rua, que é excluído em uma sociedade, na qual, a família segue os padrões e normas regidas pelo sistema capitalista, onde as pessoas são valorizadas pelo sua capacidade produtiva e não há outras qualidades humanas que se remetam ao desenvolvimento da vida. Portanto, essas pessoas são excluídas e mortas para vida relacional em sociedade e o que os leva a um comportamento autopunitivo, autodestrutivo, e a negação de si mesmos como pessoas que possuem valor.

Portanto, os participantes da pesquisa, acabaram envolvendo-se com o álcool e/ou drogas, num processo lento e gradativo. Após isso, rompem lentamente com seus relacionamentos familiares e perdem o emprego.  Esse processo de rompimento é demorado e processual, e não há uma única lógica, ou seja, a quebra do vínculo nunca acontece de forma rápida, é de forma lenta que as relações vão aos poucos se esvaindo e rompendo-se gradativamente até a exclusão completa por parte da família, dos amigos, das relações de trabalho e outras, porém não necessariamente nesta ordem dos fatos.

Considerações finais

O contexto social em que a família é constituída nos dias atuais foi influenciado pelo modelo familiar burguês, no qual, os membros da família são motivados e influenciados e orientados pela questão do trabalho. As crianças desde muito cedo são encaminhadas para as escolas com o objetivo de formação e preparação para o mercado de trabalho. O trabalho por sua vez é orientado pelo consumo, que faz com que as pessoas sejam valorizadas por aquilo que elas possuem.

Os conflitos familiares existentes nas famílias dos participantes da pesquisa são por essa forma de pensar da sociedade atual. No caso dos participantes da pesquisa que vivem em situação de rua, seus vínculos familiares foram quebrados, e por se encontrarem em situação de exclusão pela falta de oportunidades de emprego ficam à margem da sociedade, sobrevivem às dificuldades da rua, por meio de serviços socioassistenciais, que por sua vez, na maioria dos casos suprem somente as necessidades básicas do morador de rua.

Sendo assim, o processo de exclusão ocorre de forma gradativa na vida do morador de rua, começando com a fragilidade dos vínculos familiares, depois de um tempo a quebra dos vínculos, diante da dificuldade de uma nova oportunidade de trabalho a pessoa perde a motivação para novas buscas e acaba se tornando dependente dos serviços assistenciais, que incluem e excluem na medida em que não oferecem um atendimento e/ou apoio no qual o morador de rua possa reconstruir sua vida com dignidade.