Migração, trabalho e violação de direitos no Brasil Migration, work and violation of rights in Brazil

Eridiana Pauli 
y Luciane Pinho de Almeida 

https://doi.org/10.25965/trahs.4720

Diante da globalização e das facilidades trazidas pelas tecnologias, a migração se expandiu no mundo todo e com isso, foi necessário pensar leis e políticas públicas que garantisse os direitos sociais dos migrantes/refugiados, principalmente no que tange a questão do trabalho. Contudo, apesar dos avanços das novas legislações existentes, sobretudo a Lei 13.445/2017, que trata da migração brasileira, percebe-se que ainda existem muitas violações e a mais grave delas e passível de análise nesse trabalho é a exploração do trabalho análogo a escravidão. Ainda, fez-se necessário refletir, quais aspectos sociais podem ser angariados na busca de fiscalização e cumprimento das garantias básicas de direitos à população migrante, que ainda sofre em virtudes dessas violações. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, na qual utilizamos livros, artigos e conteúdos midiáticos para coletar e reunir informações acerca da temática, bem como utilizamos do materialismo histórico-dialético, que busca compreender a desenvoltura do capital e a forma que este afeta as relações humanas.

Face à la mondialisation et aux facilités apportées par les technologies, la migration s'est étendue dans le monde entier aussi a-t-il fallu réfléchir à des lois et des politiques publiques garantissant les droits sociaux des migrants/réfugiés, notamment en ce qui concerne la question du travail. Cependant, malgré les avancées de la nouvelle législation existante, en particulier la loi 13.445/2017, qui traite de la migration brésilienne, on constate qu'il existe encore de nombreuses violations ; la plus grave d'entre elles et sujette à analyse dans ce travail est l'exploitation du travail analogue à l'esclavage. Cependant, il était nécessaire de réfléchir aux aspects sociaux qui peuvent être soulevés dans la recherche de l'inspection et du respect des garanties fondamentales des droits de la population migrante, qui souffre encore de ces violations. Il s'agit d'une recherche bibliographique, dans laquelle nous utilisons des ouvrages, des articles et des contenus médiatiques pour collecter et rassembler des informations sur le thème, ainsi que l'utilisation du matérialisme historico-dialectique, qui cherche à comprendre l'ingéniosité du capital et la manière dont il affecte les relations humaines.

Ante la globalización y las facilidades que traen las tecnologías, la migración se ha expandido a nivel mundial y con ello, fue necesario pensar en leyes y políticas públicas que garanticen los derechos sociales de las personas migrantes/refugiadas, especialmente en lo que se refiere al tema del trabajo. Sin embargo, a pesar de los avances de la nueva legislación existente, especialmente la Ley 13.445/2017, que trata de la migración brasileña, se advierte que aún existen muchas violaciones y la más grave de ellas y sujeta a análisis en este trabajo es la explotación de trabajo análogo. a la esclavitud. Aún así, fue necesario reflexionar, qué aspectos sociales pueden ser planteados en la búsqueda de la fiscalización y cumplimiento de las garantías básicas de derechos de la población migrante, que aún sufre producto de estas violaciones. Se trata de una investigación bibliográfica, en la que utilizamos libros, artículos y contenidos de los medios de comunicación para recopilar y recopilar informaciones sobre el tema, así como utilizar el materialismo histórico-dialéctico, que busca comprender el ingenio del capital y la forma en que afecta las relaciones humanas.

Faced with globalization and the facilities brought by technologies, migration has expanded worldwide and with that, it was necessary to think about laws and public policies that guarantee the social rights of migrants/refugees, especially regarding the issue of work. However, despite the advances of new existing legislation, especially Law 13.445/2017, which deals with Brazilian migration, it is noticed that there are still many violations and the most serious of them and subject to analysis in this work is the exploitation of work analogous to slavery. Still, it was necessary to reflect, which social aspects can be raised in the search for inspection and fulfillment of the basic guarantees of rights to the migrant population, which still suffers because of these violations. This is a bibliographical research, in which we use books, articles and media content to collect and gather information about the theme, as well as use historical-dialectical materialism, which seeks to understand the resourcefulness of capital and the way it affects relations human.

Índice

Texto completo

Introdução

Os deslocamentos humanos tiveram lugar em todos os tempos e sob várias circunstâncias, apresentando atualmente uma vertente acentuada devido à fatores que intensificaram seus movimentos, como conflitos, guerras, fatores climáticos, fatores econômicos e dentre outros.

Diante do contexto globalizado do mundo contemporâneo, no qual os deslocamentos humanos forçados acontecem com uma intensidade cada vez maior, é necessário compreender como ocorrem as violações de direitos e quais são as normas existentes aos migrante/refugiado, para que estes busquem proteção social para reconstruir suas vidas. As leis e tratados existentes, buscam diminuir o impacto de uma sociedade excludente e capitalista na vida dos migrantes que chegam no Brasil com pouca ou nenhuma condição econômica.

A temática das migrações tem sido objeto constante dos estudos vinculados ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Teoria Sócio-Histórica, Migrações e Políticas Sociais – GEPEMPS, grupo do qual somos membros. O GEPEMPS é um grupo inscrito pelo CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações para incentivo à pesquisa científica no Brasil. Também foram realizados trabalhos de Iniciação Científica em três ciclos nos anos de 2016 à 2019, no qual estudamos violação de direitos para migrantes e refugiados na América Latina.

Este trabalho se inscreve no âmbito dos trabalhos desenvolvidos no GEPEMPS e faz parte dos resultados parciais que compõem os estudos da dissertação de Mestrado em Psicologia da Universidade Católica Dom Bosco – UCDB.

Estudar violação de direitos nem sempre se constitui uma tarefa fácil, pois sempre requer compreender questões que extrapolam além das aparências, constituindo em muitas das vezes questões que nos fogem à visibilidade social. Assim, o presente trabalho busca retratar a discussão sobre o direito do migrante/refugiado ao trabalho, de acordo sob o viés da atual legislação brasileira procurando compreender a situação em que do trabalho análogo à escravidão no Brasil.

O Brasil reviu em 2017 sua normatização com relação às questões migratórias, sejam elas provenientes da migração, do refúgio e/ou da apátrida. Antes desta nova Lei implementada em 2017, o país possuía uma lei alicerçada na segurança nacional e no não reconhecimento do migrante como um sujeito de direitos, de forma que a nova normatização procura afirmar a garantia desses diretos, contudo, veem-se ainda grandes lacunas no campo da regulamentação da lei, abrindo espaços para a sua não efetivação e/ou invisibilidades latentes que se verificam no cotidiano social.

Em que pese a Lei nº 13.445/2017, conhecida como Lei de Migração, ter incorporado os princípios dos direitos humanos e atender de fato as necessidades do migrante ao legislar sobre direitos sociais, percebe-se que existe uma dificuldade em efetivar a legislação existente e em razão dessa lacuna no momento de sua aplicação, muitos migrantes sofrem com a violação de seus direitos que já foram constituídos. Em razão da necessidade pela manutenção da sua subsistência e de seus dependentes, os migrantes acabam por ocupar posições de subempregos que muitas vezes são precárias e as consequências, surge graves violações de direitos, como é o caso do trabalho análogo a escravidão.

Com isso, buscamos compreender a forma estruturada da economia e da sociedade, bem como os desafios da sociedade contemporânea na defesa dos direitos dos migrantes e refugiados com relação aos direitos sociais, principalmente no que tange a garantia a uma vida digna, livre de explorações e pautada no princípio da dignidade da pessoa humana.

A metodologia utilizada neste trabalho baseou-se inicialmente em pesquisa bibliográfica a partir da análise de violações de direitos humanos de migrantes trabalhadores, a fim de compreender a desenvoltura da sociedade alicerçada sob o capitalismo, na qual obrigou trabalhadores a migrarem em busca de melhores condições para sua subsistência.

Este trabalho apresenta os resultados parciais do estudo de mestrado intitulado “Os direitos dos trabalhadores migrantes: Análise de casos processuais sob a perspectiva dos Direitos Humanos”, nos quais buscamos compreender como ocorre a exploração do trabalho migrante e como os direitos humanos desses migrantes acabam sendo violados, seja na desenvoltura de trabalhos degradantes ou em razão da omissão do poder judiciário.

1. Crise do Capital e Crise Humanitária Migratória

“O que distingue, de antemão o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça antes de construí-lo em cera” (Marx, 2008). O que tanto diferencia os seres humanos de outros animais, é o trabalho do qual emana todas as formas de existência do homem perante a sociedade. Mais do que satisfazer a necessidade humana de subsistência, o trabalho em si possuiu o poder de pertencimento, criação, reconhecimento e tantas outras facetas que estão intrínsecas a essa única atividade

Neste sentido, é pelo trabalho que a pessoa humana transforma a natureza e ao mesmo tempo transforma-se. Assim, o trabalho é definido por Marx como a atividade pela qual o ser humano provê a sua subsistência e/ou sobrevivência e, portanto, é um elemento essencial na constituição do ser social. Entretanto, o trabalho na sociedade moderna capitalista mediatiza o homem para além da garantia da sua subsistência promovendo o trabalho no qual o mesmo é produtor, mas não beneficiário de seu resultado, e é justamente neste trabalho o qual configura-se como explorador da força de trabalho que tem a capacidade de tornar o ser humano, um trabalhador alheio à atividade a que ele se submete e para o qual estará desempenhando seu trabalho de forma mecânica e alienada de todo o processo de produção. Esta reflexão remete a pensar essas formas de exploração que atingem seu ápice na forma da exploração do trabalho humano de forma escrava e sem propiciar o mínimo de dignidade social e de vida, ou seja, não oferecendo nem as condições primárias e mínimas para a sobrevivência e saúde da pessoa humana.

A mobilidade humana sempre existiu ao longo da história, mas com o início do capitalismo esse processo tornou-se muito mais intenso e perverso na medida em que as pessoas migram forçosamente em busca de sobrevivência, abandonando muitas vezes seus familiares e todo o esforço de construção de vida anteriormente efetuado.

O surgimento da propriedade privada, o enriquecimento gradativo dos comerciantes ao mesmo tempo da destituição dos direitos no campo e mais especificamente no século XVIII com a introdução da máquina no lugar do trabalho artesanal, impulsionaram grandes massas de trabalhadores para as cidades, que começavam a crescer. Com o avanço industrial, já no século XIX, ocorreu o aumento demográfico que foi facilitado pelo transporte, que por consequência facilitou o processo produtivo e disseminou a agricultura empresarial (Zamberlam, 2004). Nos dias atuais presenciamos uma crise sem precedentes, esta crise se faz mais intensa na medida em que denota ser estrutural e sistêmica. É uma crise estrutural, pois demonstrar atingir todos os domínios da nossa vida social, econômica e cultural permeando de fato todos as instâncias da realidade social em sua globalidade, pois não se trata mais de atingir uma parte apenas do planeta, mas sim todas as suas esferas e instâncias. O covid-19 confirmou isto, na medida em que fez surgir uma crise sanitária no planeta.

Segundo Mézaros (Mészáros, 2011) o sistema do capital parece estar chegando à seu ápice, na medida em que o capitalismo denota “não ter limites para a sua expansão e acaba por converter-se numa processualidade incontrolável e profundamente destrutiva” (Antunes, 2020, p.11). Vemos, portanto, se revelar uma profunda crise econômica que se desdobra em crises de outras naturezas, como uma crise nas instituições políticas e nas polarizações de direita e esquerda extremas, assim como na conduta de nossos representantes políticos; uma crise sanitária, que se intensificou a partir do aparecimento do covid-19 revelando as fragilidades do planeta para o combate de novas doenças; uma crise ambiental que denota e manifesta-se em constantes desastres naturais como que nos alertando permanentemente das agressões do capital ao planeta, no consumo intermitente e sem medidas, e ainda uma crise social que se mostra nos desdobramentos racistas, discriminatórios agressivos de uns contra outros, sejam estes alicerçados em diversos motivos, como de raça, cor, política, religioso dentre outros.

Essa crise também apresenta desdobramentos cada vez maiores no campo dos deslocamentos forçados constituindo-se na maior crise humanitária migratória presenciada pela humanidade, até então. Essa crise migratória se dá impulsionada por diversos motivos, como conflitos, guerra, motivações políticas ou religiosas, econômicas e ainda ambientais.

Segundo Zamberlam (2004) os deslocamentos migratórios podem ser vistos sob duas vertentes. O primeiro com enfoque na migração, que seria o movimento de pessoas ou grupos por diversos motivos, permanente ou temporário. O segundo enfoque compreende a migração em decorrência do capitalismo que acentua a desigualdade social, ou seja, percebe esse fenômeno a partir da necessidade que os indivíduos possuem em migrar por não serem aceitos dentro de sua classe social, o que resulta na perda de direitos básicos.

No contexto vivido atualmente, os migrantes não são mais vistos como contribuintes para o desenvolvimento dos Estados como primordialmente eram reconhecidos. A presença do migrante nas sociedades do capitalismo avançando tornou-se incomoda por tratar-se do diferente, de indivíduos com culturas distintas que são reconhecidos por ser uma ameaça a garantia de trabalhos aos ocupantes de determinada região.

Os motivos que impulsionam indivíduos a migrarem desdobram-se em duas faces traduzidas por Maria Rita Faria (2015), a primeira é o chamado “pullfactors” ou fatores de atração, que pode ser compreendido pela busca do indivíduo por melhores condições de vida, com isso, são pautados em fatores econômicos como oferta de emprego, padrão salarial e ascensão social. Por outro lado, existe outra categoria de migrantes que são forçados a retirar-se de seu país de origem, o que é denominado “pushfactors” ou fatores de repulsão, situação essa que deriva de desastres naturais, conflitos civis, perseguição política, racial e religiosa, o que torna impossível sua permanência sem sofrer graves violações de direitos (Faria, 2015)

Os fatores acima são utilizados como uma forma simples de diferenciação para que haja uma facilidade na compreensão de ambos os determinantes, ocorre que, na prática, na maioria dos casos, ambos fatores operam de forma conjunta e se relacionam a todo momento.

Portanto, é perfeitamente compreensível que esses deslocamentos sejam intensificados a partir do atual panorama do mundo globalizado em que vivemos e de sua complexidade, cujos avanços tecnológicos facilitaram o deslocamento humano e ao mesmo tempo aumentam a precarização deste fenômeno, situação essa que é um reflexo da própria expansão capitalista que ocorre de forma desenfreada e manifesta-se hoje numa crise estrutural global.

Desde 1970, as migrações ao redor do mundo triplicaram, sendo que foi possível verificar um salto de 77 milhões em 1975 para 281 milhões que ocorrem atualmente, segundo o Instituto de Migrações e Direitos Humanos (2022). Além do fator tecnológico mencionado anteriormente, existem diversas outras determinantes que se enquadram nos fatores de repulsão mencionados, como as crises políticas, climáticas e guerras que é considerado uma determinante no impulsionamento de refugiados e deslocados ao redor do mundo. Fatores de atração podem ser percebidos como a desburocratização de certos países para fornecer passaportes, bem como o papel da mídia ao impulsionar a migração para determinados países (Marinucci; Milesi, 2007)

Torna-se, assim, necessário pensar os aspectos desses deslocamentos humanos, nos quais a pessoa migrante encontra-se num país diferente do seu, tendo que reconstruir sua vida e lutar por sua sobrevivência. As dificuldades vivenciadas em razão do deslocamento somadas às questões culturais (cultura do país de origem e do país de destino) e ainda preconceitos e discriminações, muitas vezes podem se tornar algo difícil de ser superado e que faz com que o migrante necessite de uma rede de apoio, para que possa vir a compreender seus direitos, bem como ser acolhido em um momento de total estranhamento da sociedade ao seu redor.

O deslocamento, principalmente nos casos em que ocorre de forma forçada, resulta muitas vezes em uma dor generalizada, que causa uma alteração das emoções e pode ser equiparada ao sentimento de perda de um ente próximo, pois ao migrar a pessoa acaba por interromper o seu sentido de comunidade e acaba por perder a sua identidade comunitária e de espaço geográfico, sendo obrigado a se readaptar e buscar pertencimento na nova localidade.

Os problemas encontrados pelos migrantes que buscam melhores condições de vida começam a partir da sua classe econômica, sendo que grande parte dos países de destino buscam formas seletivas de permitir a entrada de migrantes, sendo facilitada a entrada de profissionais qualificados que acabam por encontrar trabalho formal enquanto uma gama de migrantes que não se enquadram nesse padrão procurado por países desenvolvidos, tendem a ter que enfrentar as problemáticas de trabalhos precarizados e a informalidade que gera uma série de insegurança aos trabalhadores, pois são privados dos seus direitos trabalhistas. É justamente quanto à questão do acesso ao trabalho e a garantia de seus direitos no Brasil que nos reportamos neste artigo.

2. Desenvoltura da legislação e dos direitos sociais do migrante

O migrante encontra-se em uma posição extremamente vulnerável por tratar-se de uma população que é distanciada de suas origens e que muitas vezes, por força da situação política e econômica da sua terra natal sofre um processo de êxodo para diferentes localidades, em busca de seguridade.

Conforme a resolução n. 45/158 realizada pela Assembleia Geral da ONU, no dia 18 de dezembro de 1990 foi adotada a Convenção Internacional sobre a Proteção de direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros de suas famílias, que só entrou em vigor no dia 1 de julho de 2003.

A ONU expressou sua primeira preocupação em relação aos trabalhados migrantes em 1972 e somente em 1990 recomendou a elaboração sobre os Direitos dos Trabalhadores Migrantes. Sob a ótica dos Direitos Humanos, a Convenção trata de parâmetros protetivos que devem ser aplicados aos trabalhadores migrantes e suas famílias, levando em consideração a situação de vulnerabilidades em que se encontram.

A Convenção preceitua o princípio da não discriminação é um princípio fundamental da Convenção, endossando a Convenção que os Estados-partes se comprometem a respeitar e a garantir os direitos previstos a todos os trabalhadores migrantes e membros da sua família que se encontre em seu território e sujeitos à sua jurisdição, sem distinção alguma.

O crescente número de migrantes que chegam ao Brasil traz consigo algumas indagações. É preciso compreender os recursos possíveis que o governo deverá despender para a manutenção do mínimo necessário para que esses migrantes possam manter-se sem que a dignidade de sua existência seja ferida em detrimento da ausência de recurso, dessa forma é necessário compreender a gama de direitos sociais existentes, conforme mencionado a seguir:

A partir disso, ao se empreender uma tentativa de definição dos direitos sociais, cumpre aceitar a vontade expressamente enunciada do Constituinte, no sentido de que o qualificativo de social não está exclusivamente vinculado a uma atuação positiva do Estado na implementação e garantia da segurança social, como instrumento de compensação de desigualdades fáticas manifestas e modo de assegurar um patamar pelo menos mínimo de condições para uma vida digna (o que nos remete ao problema do conteúdo dos direitos sociais e de sua própria fundamentalidade). Tal consideração justifica-se pelo fato de que também são sociais direitos que asseguram e protegem um espaço de liberdade e a proteção de determinados bens jurídicos para determinados segmentos da sociedade, em virtude justamente de sua maior vulnerabilidade em face do poder estatal, mas acima de tudo social e econômico, como demonstram justamente os direitos dos trabalhadores (Sarlet; Figueiredo, 2008:5)

Percebe-se que os autores fizeram uma ressalva quanto à atuação do Estado, que nem sempre será positiva, pois muitas vezes será necessária uma atuação negativa, ou seja, são direitos subjetivos que passam a ser protegidos a partir do momento que a atuação é restritiva, impedindo que sejam violados.

Com esses apontamentos, a partir de uma análise dos conceitos e da atuação estatal, percebe-se que com a garantia do mínimo existencial, é possível a compatibilidade entre a efetivação dos direitos sociais com a teoria da reserva do possível. A proporção de direitos fundamentais indispensáveis para a manutenção da vivência digna não pode ter condicionamentos, enquanto para a proporção remanescente, que apesar de contribuir para uma melhoria na qualidade de vida da população, não é imprescindível a sua dignidade não compõe o mínimo existencial, sendo possível nesse caso a aplicabilidade da reserva do possível, conforma a existência de recursos financeiros necessários à sua efetividade.

Como foi discutido até o momento, as migrações ocorrem constantemente ao redor do mundo, seja em decorrência da globalização, da busca pela subsistência ou em razão da mera mudança de ambiente. O que poucos se perguntam ou tem conhecimento é do aspecto jurídico que envolve todo o contexto migratório.

Atualmente, segundo dados da Organização Internacional para Migrações, em seu World Migration Report 2013, mais de 230 milhões de pessoas vivem em países distintos do seu país de nacionalidade, e cerca de 40% do movimento de pessoas, ao contrário do que se pensava há pouco, ocorre entre países em desenvolvimento (IOM, 2013). Outro elemento oculto nessas estatísticas, mas essencial para compreender a dimensão humana, é a diversidade e a multidimensionalidade dos fluxos migratórios. Migra-se tanto por cálculo quanto por urgência, por projeto quanto por sonho e por temor tanto quanto por amor ou afeto. Civilizações nasceram, fruto de movimentos migratórios, e a mobilidade humana selou o destino de sociedades inteiras (Zamberlam, 2004: 51)

Em 1969, foi criado no Brasil o Estatuto do Estrangeiro por meio de um Decreto lei nº 417, baseado em uma ideologia opressiva devido às influências do período do Estado Novo. O decreto citado anteriormente discorria sobre inúmeras vedações, dentre elas estavam diversos cargos que tinham a justificativa de serem restringidos com o objetivo de proteger a economia do país, afastando estrangeiros da vida social pela simples justificativa da nacionalidade. O Estatuto do Estrangeiro possuía diversas práticas excludentes que encontravam respaldo na segurança nacional e na proteção do mercado de trabalho (Galindo, 2015).

Com a mudança da sociedade, o surgimento de multinacionais e a necessidade de extensão dos direitos aos estrangeiros, fez surgir a implementação dos direitos já existentes, assim, o Conselho Nacional de Migração vinculou-se ao Ministério do Trabalho e Emprego para atingir tal finalidade. Foi elaborada então a Resolução Normativa nº 27 que atribui autonomia do próprio Conselho para julgar casos omissos. Apenas em 2009 com a Lei n° 5.655, que mantém as estruturas do Estatuto vigente, foi reconhecida a necessidade de explicitar um rol taxativo de direitos que independem da situação migratória que se encontra o indivíduo (Galindo, 2015).

Em contrapartida, o estatuto não especificou situações que deixam margens para violações que constantemente ocorrem e são contrárias aos textos constitucionais. As situações que estavam em aberto era a permanência do migrante no país e o oferecimento de políticas públicas e outros serviços de características públicas que são indispensáveis a manutenção e estabilidade de pessoas em um ambiente sadio. Essa pode ser considerada a lacuna mais prejudicial no implemento da lei, que desde 2010 estava pendente e aberta à discussão, porém, demonstra um caráter urgente, pois a falta de regulamentação de questões como essas contribuem para a ausência de legitimação e a manutenção de situações desumanas que constantemente acontecem e violão direitos de inúmeras pessoas (Human Rights Watch, 2017).

Com a criação da Lei de Migração promulgada por meio do projeto de lei de nº 288 de 2017 por meio do Senador Aloysio Nunes Ferreira, muitos foram os benefícios trazidos a população imigrante, dentre os mais importantes estão a diminuição na burocracia para obtenção de documentos e regularização da permanência do indivíduo no país, evitando-se violações de direitos, não sendo mais justificável a deportação por falta de documentação (Made For Minds, 2018).

Com isso, a nova Lei de Migração está em consonância com o princípio da não devolução ou non-refolument, com origem no direito internacional dos refugiados, foi estabelecido no artigo 33 da Convenção, que tem por objetivo proibir que o Estado realize deportações de refugiados para seu país de origem, onde irá continuar sendo perseguido pelas condições anteriormente elencadas. Além disso, este princípio também compõe os principais instrumentos regionais e internacionais de direitos humanos (Galindo, 2015).

Apesar da sanção da lei não ter se dado de uma forma receptiva, contando com 20 vetos, a nova roupagem da legislação proporciona novas expectativas tantos para os migrantes que a aqui chegam, quanto para aqueles que deixam o país. Logo no artigo 3° da referida lei, tratar se de diversos pontos, dentre eles:

[...] a universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos; o repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação; a não criminalização da migração; a não discriminação em razão dos critérios ou dos procedimentos pelos quais a pessoa foi admitida em território nacional; a promoção de entrada regular e de regularização documental; a acolhida humanitária; a garantia do direito à reunião familiar; a igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante e a seus familiares; a inclusão social, laboral e produtiva do migrante por meio de políticas públicas; o acesso igualitário e livre do migrante a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social; a promoção e difusão de direitos, liberdades, garantias e obrigações do migrante; a cooperação internacional com Estados de origem, de trânsito e de destino de movimentos migratórios, a fim de garantir efetiva proteção aos direitos humanos do migrante; a proteção integral e atenção ao superior interesse da criança e do adolescente migrante; a proteção ao brasileiro no exterior; a promoção do reconhecimento acadêmico e do exercício profissional no Brasil, nos termos da lei; e o repúdio a práticas de expulsão ou de deportação coletivas (Oliveira, 2017:1).

Ademais, o artigo 4° da mesma lei destaca diversas garantias sociais, que também se tornou um dos pontos mais relevantes na reformulação da legislação migratória, sendo esses;

[...] direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicos; direito à liberdade de circulação em território nacional; direito à reunião familiar do migrante com seu cônjuge ou companheiro e seus filhos, familiares e dependentes; medidas de proteção a vítimas e testemunhas de crimes e de violações de direitos; direito de transferir recursos decorrentes de sua renda e economias pessoais a outro país, observada a legislação aplicável; direito de reunião para fins pacíficos; direito de associação, inclusive sindical, para fins lícitos; acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social, nos termos da lei, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória; direito à educação pública, vedada a discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória; garantia de cumprimento de obrigações legais e contratuais trabalhistas e de aplicação das normas de proteção ao trabalhador, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória; direito de sair, de permanecer e de reingressar em território nacional, mesmo enquanto pendente pedido de autorização de residência, de prorrogação de estada ou de transformação de visto em autorização de residência; e direito do imigrante de ser informado sobre as garantias que lhe são asseguradas para fins de regularização migratória (Oliveira, 2017:1).

Apesar da nova lei trazer muitos benefícios à população migrante e garantias antes não visadas, ainda existem muitas barreiras para que essas pessoas possam ter acesso aos direitos garantidos por lei. A lei de migração garante o acesso do migrante à direitos básicos como saúde, educação e assistência social, independente da situação migratória. Contudo, são obstáculos para a efetivação desses direitos a dificuldade do migrante em se comunicar em razão da diferença linguística, a dificuldade do migrante em acessar informações sobre seus direitos e sobre os serviços disponíveis, a discriminação existente, além de enfrentar longas jornadas de trabalho, moradias insalubres e baixa remuneração.

Assim, é possível perceber que apesar da reformulação da Lei que foi criada ainda no período da ditadura militar no Brasil, os avanços são visíveis, contudo, necessitam do constante impulso para serem colocados em prática, para que não se permita que o retrocesso supere a desenvoltura social e que seja assegurado os direitos de migrantes que se encontram em solo nacional, respeitando a sua situação de vulnerável, principalmente nesse momento em que ainda se enfrenta o desfecho pandêmico, no qual o Brasil enfrenta crises econômicas, políticas e sanitárias, o que intensifica ainda mais a vulnerabilidade vivenciada por esses grupos.

3. Violações da legislação migratória brasileira: o trabalho escravo e suas consequências

Conforme foi possível verificar, ao longo do tempo a legislação brasileira voltada para questões que envolvem os processos migratórios, perdeu seu caráter protecionista dos estados nações e passou a ganhar um compilado humanitário, no qual foi possível atender aos preceitos dos direitos humanos e fornecer uma legislação protecionista ao migrante, preocupada principalmente com seus direitos sociais. Contudo, apesar das melhorias das legislações que foram construídas ao longo tempo, foi possível perceber que a aplicabilidade dessas leis ainda carece de efetividade e em razão da falta de uma política de estado mais ativa para aplicar a legislação existente, cobrar sua efetividade e sancionar os infratores, ainda existem muitas ocasiões em que é possível verificar a mitigação dessas leis ou a sua total ausência.

Apesar da escravidão ter sido abolida no Brasil em 1888, sua prática ainda persiste até os dias atuais, a prática atual muito se assemelha a do passado, na qual a cor da pele, a origem e etnia são fatores que influenciam para que ocorram, contudo, atualmente existem formas mais modernas e mais elaboradas de sua prática.

Nos dias atuais o trabalho escravo muitas vezes surge de uma forma velada, maquiado como uma oportunidade de emprego no qual a pessoa começa ganhando muito pouco ou nada, contraí dívidas com moradia e alimentação e quando percebe, está inserida em uma situação na qual trabalha para simplesmente sobreviver, sem nenhuma real contraprestação entre empregado e empregador, e muitas vezes a pessoa acaba por se alienar nessa situação sem formas de se desvencilhar.

A escravidão por muito tempo foi normalizada na sociedade, no qual a pessoa humana era estagnada nessa realidade, pois o próprio Estado tolerava a propriedade de uma pessoa por outra. A partir da abolição do trabalho escravo pela Lei Áurea em 13 de maio de 1888, o Brasil passou a criminalizar essa prática. E apesar da abolição, o emprego de mão de obra análoga ao trabalho escravo continuou a existir e conforme os casos eram expostos, essa questão passou a ser discutida no meio social e político, para só então tornar-se um tema a ser tratado pelos direitos humanos. Sabe-se que a primeira vez que o tema foi abordado de forma pública foi em 1971, por meio de uma carta pastoral escrita por Dom Pedro Casaldáliga, que denunciou a exploração de pessoas nos latifúndios em São Felix do Araguaia, em Mato Grosso (Lazzari, 2016).

Apenas em 1995, o Brasil reconheceu a existência de trabalho escravo em seu território perante a Organização Internacional do Trabalho (OIT). No mesmo ano foi criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, que estava inserido no âmbito da Secretaria de Fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, conforme a portaria nº 549 e 550 de 1995, que naquele momento tinha apenas atuação no meio rural. O projeto idealizado ainda na década de noventa, surte efeitos até os dias atuais, sendo esse um dos principais meios de investigação e repressão do trabalho escravo, principalmente nas áreas rurais (Lazzari, 2016).

O viés de direitos humanos veio a se segmentar a partir da constatação de situações nas quais as pessoas eram encontradas em condições desumanas de higiene, alimentação, habitação, saúde ou qualquer outro direito fundamental inerente a pessoa humana. Dessa forma, em 2003 surgiu o Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, criado pelo Poder Executivo, tornando-se pauta de política pública desenvolvida pela Estado.

Ao final do ano de 2003, foi sancionada a Lei nº 10.803, que tipificou a utilização de trabalho escravo no Brasil, sendo essa a seguinte redação do artigo 149 do Código Penal:

Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:
– cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
– mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem (Código Penal, 2003)

Ainda, como forma mais drástica de minimizar essa violação de direitos, em 2014 a Emenda Constitucional 81 trouxe a previsão legal do artigo 243 da Constituição Federal que prevê a expropriação de caráter sancionatório no caso de comprovação de trabalho escravo:

Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º (Constituição Federal, 1988).

O segundo Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo foi lançado em 2008, e teve por principal objetivo criar ações que possam auxiliar no combate ao trabalho escravo contemporâneo pelo poder público e entidades. O termo trabalho escravo contemporâneo é utilizado para caracterizar a situação na qual o indivíduo é submetido ao trabalho forçado, jornada exaustiva, servidão por dívidas, bem como condições precárias. Com apenas um desses elementos é possível identificar a exploração do trabalho escravo.

Conforme dados da OIT, desde 1995 até 2020, mais de 55 mil trabalhadores foram libertos de condições análogas à escravidão, sendo que 95% dessas pessoas são homens. A razão desse número ser mais alto entre os homens ocorre em detrimento do uso da força física. Não obstante, dados apontam que no setor têxtil as mulheres são as maiores vítimas e ainda estão sujeitas a subnotificação em atividades de exploração do trabalho doméstico e sexual (OIT, 2021).

O recebimento de migrantes e refugiados provenientes de países mais empobrecidos abrem enormes espaços para que estes sejam expropriados de seus direitos sociais, principalmente no campo do trabalho, favorecendo o aliciamento ao trabalho escravo.

Conforme dados da Pastoral do Migrante, existem aproximadamente 100 mil trabalhadores bolivianos em São Paulo e a maioria deles encontram-se em condições análogas à de escravidão. Além de possuírem poucos recursos financeiros, muitos não tem acesso à educação e informação, ou estão com a documentação irregular, o que facilita a exploração e a intimidação dessas pessoas, que são ameaçadas de serem denunciadas e deportadas (Senado Federal, 2011).

Sem o conhecimento da legislação trabalhista brasileira ou da lei de migração, bem como em razão da dificuldade em se comunicar e falta de uma comunicação direta entre esses trabalhadores e o sindicato, esse grupo torna-se alvo do trabalho escravo em razão da sua condição de vulnerabilidade, que é acentuada pelos motivos que foram expostos anteriormente.

Como forma de extinguir o emprego da mão de obra escrava, o governo brasileiro ao longo da história adotou medidas de fiscalização das propriedades privadas, pagamento das dívidas trabalhistas aos trabalhadores regatados, assim como a punição criminal, administrativa e econômica dos empregadores que se enquadram em tal prática. Mas além da busca por uma solução objetiva, foi necessário criar políticas públicas para dar assistência às vítimas, para que esses trabalhadores possam se desvincular da situação nas quais se encontravam. Uma das principais atividades empenhadas pelo governo como meio de prevenção, foram ações afirmativas no âmbito da educação, para que haja a promoção de informações e debates com o objetivo de enfrentamento do problema. Apesar das políticas de enfrentamento ao trabalho escravo, é público e notório que essa ainda é uma prática muito presente no território nacional. Um atual exemplo é a notícia que relatou o resgate 118 trabalhadores em condições análogas à escravidão.

A maior parte dos 118 trabalhadores libertados na "Operação Resgate" foram encontrados em áreas rurais —muitos catando laranjas no estado de Goiás, mas vários outros foram encontrados em oficinas de costura em São Paulo e duas trabalhavam como empregadas domésticas no Rio de Janeiro (CNN Brasil, 2021).

Diante dessa realidade, percebemos que apesar dos avanços existentes diante das medidas governamentais e da legislação existente, as violações de direito ainda são extensas e trata-se de direitos inerentes a dignidade da pessoa humana, como a liberdade, saúde, alimentação e outros, ou seja, são centenas de pessoas que nos dias atuais ainda vivem em condições sórdidas, desamparadas pelas medidas protetivas existentes.

Presenciamos a continuidade da exploração e de lutas interrompidas, seja por este impedimento legal de punir com a perda da propriedade particular, seja pelo processo de normalização do fenômeno, este último mais grave, pois possibilita a adequação deste tipo de prática, permanecendo intocável esta relação de servidão em pleno século XXI. Segundo Foucault, lei e discurso jurídico se equivalem, pois ambos significam manifestação da vontade do Estado, assegurando-lhe o uso legítimo da força e para o autor, a normalização é aquilo que prevalece (Lazzari, 2016: 62-82).

A partir do que foi exposto, é possível verificar que existe uma convivência com a realidade alheia, que seria o emprego do trabalho escravo contemporâneo. Com os números trazidos, muitas pessoas ainda vivenciam essa dura realidade. Com a abertura dessa temática para a pauta de direitos humanos muitas vezes aparenta uma minimização da responsabilidade de outros setores da sociedade. Por essa razão, é de suma importância questionarmos as formas de enfrentamento dessa atual problemática, isso será possível à medida que buscarmos trazer o debate do trabalho escravo para o cotidiano, seja nas escolas, nas universidades, nas mídias sociais e outros meios de comunicação. Ou seja, o campo de debate deve extrapolar órgãos e entidades específicas, para que a sociedade possa tomar consciência e se mobilizar como um todo.

Atualmente a maioria das ações são mobilizadas pelas organizações civis e pela Comissão Pastoral da Terra, o que se tornou referência para o próprio Ministério do Trabalho e para a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República do Brasil.

O individualismo presente na esfera de poder do soberano circula e se espalha por meio do exercício da biopolítica moderna propagando prioridades, ou seja, aquilo que importa ou que deixa de importar. Nota-se que não se investe na disseminação de novas sociabilidades, na formação e informação do problema, contemplando e esclarecendo que a relação que submete outro ser humano ao estado degradante e prisional em nome de sua sobrevivência deve estar fora da rotina de qualquer um, porém vemos que as ações governamentais ainda investem mais na fiscalização, neste caso bastante insipiente, justificando-se a continuidade do emprego deste tipo de mão de obra. (Lazzari, 2016: 62-82)

Uma forma eficaz de combate ao trabalho escravo que inclui a sociedade como um todo, seria a fiscalização dos produtos que a população consome. Atualmente podemos ter acesso fácil e rápido à informação, isso nos possibilita a busca por informações de produtos que consumimos. Sendo assim, a cada compra de um produto, seja vestuário, tecnológico ou alimentício, reside a importância de se buscar saber a procedência desse produto, a forma de fabricação, o local onde ocorre, o histórico da empresa e se está já sofreu alguma atuação em razão da prática irregular.

O estado com o maior número de notificações, bem como de trabalhadores resgatados, é Minas Gerais. Foram 12 empresas notificadas e 164 pessoas resgatadas em condições análogas à escravidão no estado. Logo atrás, vem Alagoas, que teve duas notificações e 90 trabalhadores resgatados. Ao todo, empresas de 14 estados brasileiros foram incluídas na lista em 2019. (...) As novas notificações estão distribuídas em seis setores econômicos, com destaque para dois: a produção agropecuária e a construção civil, responsáveis por 93% dos trabalhadores resgatados. Na produção rural, foram 34 empresas notificadas e 343 trabalhadores em situação de trabalho escravo. Já na construção civil, foram sete notificações e 109 trabalhadores resgatados. Também houve empresas notificadas nos setores da indústria têxtil, serviços, comércio e transporte (Fernandes, 2019:1).

Conforme demonstra a matéria, muitas são as empresas e os ramos nos quais há o envolvimento com o trabalho escravo, dentre os principais deles estão o setor rural, construção civil, indústria têxtil, comércios, serviços e transporte de resíduos. Ainda, segundo o site Brasil de Fato (2019), desde 2017 houve uma redução no número de empresas notificadas e no número de trabalhadores resgatados. Os dados não são animadores, pois não evidenciam uma redução de casos de exploração da mão de obra escrava, mas pode ser o reflexo de uma piora na fiscalização.

Portanto, o mapeamento dos locais onde é mais recorrente as situações de trabalho análogo à escravidão, a construção de uma sociedade mais empática e consciente, somado aos esforços já aplicados pelo poder público, pelo judiciário e entidades podem trazer mais efetividade para o trabalho que já vem sendo realizado.

Devemos sempre lembrar que os direitos sociais constitucionalizados são de suma importância e sua violação rompe não somente com a própria legislação e tratados, mas também roubam sonhos e marcam vidas. Prezar pelo bem-estar de todos e não normalizar situações de violações e rompimento com a dignidade humana deve ser sempre uma prioridade.

Considerações finais

Conforme discutido, as migrações contemporâneas ocorrem em grande escala, isso é ocasionado não somente em razão da globalização, mas também em decorrência dos fatores de repulsão, caracterizados pela fome, guerra, perseguições, catástrofes climáticas e a busca por melhores condições de vida.

Sob essa perspectiva, percebemos que em razão da disseminação do capitalismo no mundo, as pessoas se viram cada vez mais compelidas a migrarem em busca de melhorias e dignidade de vida. Esse aumento dos fluxos migratórios ocasionaram o aumento do exército de reserva, ou seja, um número muito grande de migrantes que chegam aos países desenvolvidos com pouca ou nenhuma qualificação em busca de trabalho ou ainda, pode-se citar, que muitos possuem qualificação profissional e ensino superior concluído, mas possuem dificuldades de conseguir a revalidação de seus respectivos diplomas, sendo assim obrigados a aceitarem subempregos e funções muito aquém de sua qualificação profissional.

Ainda que a legislação voltada ao migrante atualmente tenha características protecionistas e que esteja pautada nos direitos humanos, muitas vezes essas leis carecem de efetividade e mais do que a exclusão do migrante essa situação ocasiona violações irreparáveis, como é o caso do trabalho análogo a escravidão. Inda, com a falta de conhecimento da legislação pertinente, essas pessoas são muitas vezes obrigadas a se calarem e acabam por não denunciar a sua situação de trabalho análogo a escravidão, sob ameaças de deportação. Em contrapartida, muitas vezes esses trabalhadores nem mesmo se dão conta da situação vivenciada, pois entendem que estão trabalhando por alimentação e moradia, ainda que precários ou para pagamento de dívidas adquiridas com seu empregador.

Diante do exposto, ressalta-se a importância de debatermos da eficácia da lei de migração e sua aplicabilidade, principalmente entre a população migrante, para que com o acesso ao conhecimento de seus direitos, essa população que já é vulnerável, possa estar menos frente a gravosa forma de violação de seus direitos, como é o caso do trabalho escravo.

Por isso, é tão importante abordarmos o assunto em diferentes meios, para que possamos alcançar essas pessoas que possivelmente sofreram ou podem vir a sofrer com esse tipo de violação da dignidade da pessoa humana. Por fim, cumpre discutir o papel do Estado frente as questões migratórias em tempos de pandemia, no qual muitos migrantes sofrem com a constante ameaça de deportação, e diante da falta de acesso a direitos sociais básicos, acabam por se tornarem alvos da exploração de trabalho análogo a escravidão. Questão essa que deve ser revista com o um olhar mais voltado à vulnerabilidade dos migrantes e que promovam medidas que viabilizem o acesso a direitos básicos e possam coibir a exploração desses trabalhadores.